segunda-feira, 4 de junho de 2012

A AMPLA CIDADE



Rui Peralta

O Cazaquistão e os amigos

Na cimeira de Segurança Nuclear de Seul, Coreia do Sul, realizada em finais de Março deste ano, Nursultan Nazarbayev reuniu-se conjuntamente com Medvedev e com Obama e depois, bilateralmente, com Obama. Neste último ano o Cazaquistão converteu-se no maior produtor mundial de uranio, ultrapassando a Austrália e o Canadá, sendo também uma importante fonte de gás natural e petróleo. As grandes empresas norte-americanas estabelecem contractos de milhares de milhões de USD com as empresas estatais do Cazaquistäo nas reservas de minerais, uranio, gás natural e petróleo.

O Cazaquistäo é o quarto país maior do mundo, equivalente a quatro Estados do Texas e maior que toda a Europa Ocidental, localizado numa região estratégica vital a Eurásia, exactamente no centro da Eurásia. Os interesses norte-americanos nesta região ampliaram-se durante a administração Carter tendo o seu conselheiro nacional de segurança, Zbigniew Brzezinski, por diversas vezes chamado a atenção desta região que ele designava por núcleo euroasiático que considerava ser de extrema importância para os USA manter a sua hegemonia nesta região.

O Cazaquistäo é um daqueles países em que o suborno é lei e a corrupção um assunto de família. O seu regime é conhecido por todas as estâncias internacionais pela sua repressão, sendo o seu nome um assunto diário nos relatórios da Amnistia Internacional, Human Rights Watch, Freedom House, etc. As liberdades civis parecem não existir no dicionário cleptocrático do regime, sendo substituída pela quase obrigatoriedade de obrigar a sociedade ao suborno e á corrupção. Desde o vendedor de rua ao chefe de estado, passando pelos responsáveis corporativos das grandes empresas estatais e ministérios, a cleptocracia é aqui uma ideologia dominante, que estende-se do estado ao resto da estrutura social. Aliás é talvez a único pais do mundo em que a cleptocracia é uma superestrutura cultural, bastantes pontos acima do Paraguai de Strossner, da Nicarágua dos Somoza ou da Cuba de Baptista e fazendo parecer os regimes neocoloniais em Africa uns meninos de coro das catedrais. Por falar em catedrais, vou continuar o meu relato da Peregrinação do Chris Two, que desejo partilhar convosco. Aqui vai:

Os dois Peregrinos chegaram ao Inferno Cristão, onde as almas condenadas são lançadas para um enorme forno a arder. É um inferno de fogo e enxofre. As almas dos hereges são encerradas em túmulos de fogo. As dos ingratos em cavernas com chão de lava ardente, onde as lágrimas gelam sob o rosto quente. Os preguiçosos continuam com o sangue nas veias, sendo sugados por vermes, trabalhando sem descansar. Os piores castigos são os aplicados aos ateus. Neste Inferno, Chris e o Anjo, percorreram a Via de Dante e visitaram a Praça de Jerónimo Bosch, onde pernoitaram num templo Copta, destinado aos visitantes. Aí despediram-se do Inferno do Ocidente e prepararam a sua entrada no Inferno do Oriente.

O Portão de Entrada do Inferno do Oriente é uma ilha remota, um pedaço de cinzas quentes, rodeado por um mar de chamas. Localiza-se no extremo oeste do submundo. Nela habitam enormes serpentes e algumas almas que para aí são levadas, num barco de amianto, cada mil anos. O barco transporta as almas para a ilha e no regresso leva as almas que deixou no milénio anterior. Como as almas que ficam na ilha não sofrem tormento algum, enquanto aí permanecerem, a Ilha é conhecido por Ilha do Alivio.

Saindo desta Ilha e subindo o mar de chamas, chegaram a um Inferno, onde o fogo não é preponderante. A sua entrada consiste em 3 portas e tem 7 divisões. O guardião desta região tem mais de 80 mil léguas de altura. Aqui os suplícios das almas consistem em longas caminhadas pelas serras elevadas. As almas são atacadas por tigres alados, lobos vermelhos, disformes serpentes enormes e aranhas gigantes. Quando terminam a caminhada, as almas, sofrem os mais variados castigos, desde rolarem por cima de lâminas de machado, até passarem por buracos de agulhas, ou serem eternamente devoradas por abutres ou corvos. Por aqui transitam as almas condenadas por concupiscência, avareza e fúria e têm de ser almas com origem nas regiões da Índia. Naraka é o seu nome. Chris e o Anjo permaneceram por vários dias neste Inferno, nas altas serras, onde a paisagem é de grande beleza.

Na próxima Ampla Cidade continuarei o relato de Chris Two nos infernos e volto agora ao tema de hoje: o Cazaquistäo. Perante todo este panorama de repressão e corrupção é claro que os trabalhadores sofrem na pele as amarguras de uma exploração selvagem e de baixo custo. Uma das maiores greves da história deste país foi iniciada em Maio do ano passado, no centro petrolífero de Zhanaozen, no Mar Cáspio, que o regime decidiu terminar de forma abrupta e brutal, no dia 16 de Dezembro, quando o exército abriu fogo sobre os trabalhadores em greve. As cifras oficiais falam em 16 mortos e 20 feridos (em alguns dados oficiais esta cifra aumenta para 50) enquanto os sindicatos cifram em 70 mortos, 500 a 800 feridos e mais de mil grevistas detidos. Os dirigentes grevistas ainda hoje estão detidos (37 trabalhadores) e os advogados, jornalistas e repórteres que trabalharam com os trabalhadores foram detidos pela polícia no exercício das suas funções, agredidos na rua por grupos de homens encapuçados ou ameaçados de morte. Segundo um informe da Human Rights Watch no passado mês de Maio, os 37 trabalhadores são continuamente submetidos a actos de tortura, proibidos de serem visitados e estão detidos em celas solitárias, de onde só saem para os interrogatórios e para uma saída semanal ao pátio da prisão. Isto desde Dezembro. Apresentam sinais de má nutrição, fraqueza, escorbuto, cegueira e problemas nervosos da mais diversa ordem (tremuras, irritabilidade, fobia ao barulho e perca de capacidades motoras).

Um exemplo do nível desmedido de repressão é um decreto presidencial que proíbe o uso de pastilhas elásticas em público, sendo condenados os prevaricadores a pesadas multas e em caso de reincidência ao encarceramento automático até ao máximo de 3 anos. Segundo o presidente Nazarbayev a medida é a primeira entre muitas, retiradas do exemplo de Singapura (um dos locais preferidos de Nazarbayev e com certeza considerada por ele um modelo a seguir, pela aberração das suas instituições e alto nível de condicionamento social a que os cidadãos desse laboratório capitalista que é Singapura, são sujeitos).

No entanto os USA falam da vontade de Nazarbayev em construir um estado democrático e pluralista e elogiam a forma como o Cazaquistäo aceita o conselho e as orientações dos países democráticos ocidentais, no sentido da transparência. Mas a realidade é outra. Nursultan Nazarbayev é presidente vitalício de um Estado de partido único (concorrem ás eleições dois partidos apoiantes de Nazarbayev). Mas além dos USA, a federação Russa e a Republica Popular da China têm grandes laços de amizade com o regime de Nazarbayev. Existe um oleoduto que vais desde o mar Cáspio até á China e a Rússia mantem no Cazaquistão (que foi o centro do programa espacial soviético) rampas de lançamento e instalações relacionadas com o seu programa espacial (os satélites russo são lançados ali). Todos eles têm uma preocupação comum: o controlo dos recursos da eurásia.

Para além de ser o maior produtor de urânio do mundo, o Cazaquistão participa em pontos importantes da cadeia nuclear, desde a mineira ao processamento e construção de reactores nucleares. Neste sector tem um acordo com a norte-americana Westinghouse e com a japonesa Toshiba (a maior accionista da Westinghouse, detendo um consorcio estatal do Cazaquistäo 7,7% das acçöes da Westinghouse), na construção de reactores, que engloba ainda uma parceria com a General Electrics. Aliás a Toshiba é um intermediário nas relações de Nazarbayev com o Japão, organizando os embarques de urânio, do Cazaquistäo para o Japão, depois dos acidentes de Fukushima.

No sector petrolífero a Exxon Mobil e a Chevron, participam na exploração de gás natural e de crude, com as estatais do Cazaquistão. Ao nível militar as relações com os USA e com a OTAN são estreitas. Simulações militares conjuntas, treinamento, armamento, programas de ajuda, são frequentes entre o Cazaquistäo, a OTAN e os USA, assim como programas militares e policiais conjuntos com a Rússia e uma estreita cooperação em termos de equipamento e treinamento de forças de segurança com a China. Todos são grandes amigos do Cazaquistäo, não importando o uso de mão-de-obra infantil na colheita do tabaco, o desrespeito pelos mais elementares direitos cívicos, pelas liberdades individuais e sociais, não importando que as greves sejam reprimidas e os trabalhadores torturados. Nada disso importa, pois o Cazaquistäo está no bom caminho.

Enquanto escrevo, está a ser implementado um programa universitário de cooperação entre as Universidades norte-americanas de Wisconsin, Pitt, Duke, Houston e Pensilvânia e a recém-criada Universidade Nazarbayev, localizada na nova cidade de Astana (conhecida por pequena Dubai), uma cidade construída com o dinheiro do petróleo e convertida em nova capital do país. A Universidade Nazarbayev é frequentada por 20 mil estudantes e funciona só em língua inglesa e com programa de estudos norte-americanos. Aliás em termos de educação a UE financia o Instituto Superior de Comercio Internacional, a Rússia o Instituto de Aeronáutica, a Universidade de Pequim tem um convénio com o Instituto Superior de Telecomunicações e o Japão suporta uma rede de centros de formação profissional no sector mineiro.

Complexos, os jogos euroasiáticos…


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