quarta-feira, 8 de agosto de 2012

O BOSQUE EM FLOR



Rui Peralta
I

Em 2010 o Partido Comunista da India (Maoista) – PCI (M) - nomeou Cherukuri Rajkumar, cujo pseudónimo era Azad, como seu principal negociador nas conversações de paz com o governo. Azad era membro do Politburo do PCI (M), um guerrilheiro experiente e um homem considerado capaz mesmo pelos seus adversários políticos, que lhe temiam a inteligência. Na madrugada do dia 2 de Julho desse ano, nos bosques de Adilabad, no estado do Andhra Pradesh, Azad foi vítima de uma operação da polícia estatal, quando ia caminho de uma reunião com representantes das forças armadas da India e do Ministério do Interior, morrendo com um tiro no peito. Azad era acompanhado por um jovem jornalista, Hem Chandra Pandey, que também faleceu, vítima de um tiro na cabeça. As autoridades lamentaram o ocorrido e iniciaram um inquérito.

Azad era uma figura demasiado respeitada, mesmo pelos militares governamentais, para que tal facto fosse ignorado sem nada ser feito. As culpas acabaram por recair sobre a polícia estatal de Andhra Pradesh, embora ninguém fosse julgado ou suspenso das suas funções. “Um erro lamentável das forças policiais” referiu um porta-voz militar num tom lacónico. E a paz foi adiada, uma vez mais, naquela que a propaganda considera ser a mais populosa democracia do mundo.

II

Existe em Nova Deli um antigo observatório astronómico, Jantar Mantar, construído no século XVIII e uma maravilha científica na época, que é hoje uma atracçäo turística, transformado em sala de exposições e de conferências. Como em Deli só são permitidas manifestações convocadas pelos partidos políticos com assento parlamentar ou organizações religiosas, estando proibidas quaisquer manifestações fora desse âmbito, Jantar Mantar é o único local onde as pessoas se podem manifestar e protestar livremente, embora cuidadosamente vigiadas pela policia. Gente de todas as partes da India convergem para esta local para aí fazerem-se ouvir. Uns vêm de comboio, outros a pé (como o fizeram os sobreviventes da fuga de gás no Bhopal), todos convergindo em Jantar Mantar. Aqui acampavam e faziam as suas declarações, proclamavam as suas revindicações e realizavam manifestações de protesto.

Durante os Jogos da Commonwealth de 2010 em Nova Deli as autoridades decidiram alterar esta situação excepcional de democracia, apenas durante o período de realização do evento. O Jantar Mantar funcionaria com horários, das 9h às 17h, para não afectar o normal funcionamento dos Jogos. Só que os Jogos terminaram e a restrição manteve-se até hoje. Terminaram os acampamentos. Protestos e reclamações só a partira das 9h e às 17h, em ponto, termina a democracia. Se as coisas ficarem fora do controlo, os canhões de água e as cargas policiais repõem a situação.

Não foi só o Jantar Mantar que mudou durante os jogos. Foi a própria cidade. Cerca de 400 mil pessoas viram as suas casas destruídas e foram expulsas da cidade, para acampamentos distantes, aguardando por uma decisão, se não tiverem dinheiro para pagar uma renda. Mais de 100 mil vendedores ambulantes viram os seus locais de venda desaparecerem da cidade e foram empurrados para os subúrbios, por ordem do Supremo Tribunal, distantes dos centros comerciais, para assim não afectarem os negócios destes. Dezenas de milhares de mendigos foram expulsos da cidade e mais de 100 mil prisioneiros foram utilizados na construção das habitações para os atletas, túneis, piscinas e estádios.

A nova India do capitalismo Brics não gosta de falar das 60 milhões de pessoas que vagueiam sem destino pela ruas das cidades, fugindo da miséria rural, da fome, da seca e das inundações, expulsas das suas terras pelas minas, fábricas de aço, fundições de alumínio e pelas Zonas Económicas Especiais, para além das autoestradas e dos grandes diques e barragens. Estes 60 milhões são parte dos 830 milhões que vivem com menos de 20 rupias (cerca de 20 cêntimos de euro) por dia e que morrem de fome enquanto milhares de toneladas de cereais são comidos pelos ratos ou queimados em grandes quantidades, para manter os “preços do mercado a um nível atractivo”. E para completar este quadro da Nova India do progresso irreversível, faltam as dezenas de milhões de crianças subnutridas e os 2 milhões de crianças com menos de 5 anos que morrem anualmente.

É essa multidão obscura que, por toda a India, travam batalhas sem fim: contra as grandes represas no vale de Narmada, em Polavaram e Arunachal Pradesh; contra as minas em Orissa, Chhattisgarh e Jharkland; contra a apropriação de terras para as industrias e Zonas Económicas Especiais. Com tenacidade, com sabedoria e coragem, pela sua dignidade, pelo direito a viver como seres humanos. Sabem que vivem num país que apesar de ter a segunda taxa mundial mais alta de crescimento do PIB, tem mais pobres em 8 dos seus estados que os 26 países mais pobres de África juntos. Sabem que 650 milhões deles dedicam-se e vivem da agricultura, são agricultores, camponeses e trabalhadores agrícolas, mas o seu esforço de trabalho não representa mais de 18% do PIB e que não podem competir com o sector das tecnologias industriais, que empregam apenas 0,2% da população activa e representa mais de 5% do PIB. Procuram soluções para resolverem essas assimetrias do crescimento de forma a terem uma vida melhor e que também eles possam usufruir do desenvolvimento económico. Têm perfeita consciência de habitarem num país em que 60% da força de trabalho está por sua conta e risco e que 90% dos seus trabalhadores são não-especializados. E que as estatísticas de desemprego apregoadas pelos sucessivos governos da Nova India do mercado e do progresso, esquecem-se tecnicamente do subemprego e dos chamados empregos temporários.

Esta multidão sabe, também, que a sua luta é pela apropriação. Da India.

III

Os 100 indianos mais ricos representam ¼ do PIB. São venerados pelo governo e assumidos valores morais da nação, considerados exemplos para todos os outros, estabelecendo-se á sua volta uma impressionante cadeia propagandística. Os pobres têm de ver neles exemplos de conduta. Se trabalharem muito saem da pobreza e trabalhar muito significa trabalhar para os 100 senhores. Só que esta centena de oligarcas do capitalismo BRICS indiano não emprega adivasis nem pobres malcheirosos e indolentes (a indolência da fome). Então o governo dos 100 Senhores criou um programa, não de combate ou erradicação á pobreza, mas de eliminação dos miseráveis. Eliminação física. Assim o exército e a polícia, a Força Central de Reserva da Policia, a Força de Segurança Fronteiriça, a Força Central de Segurança Industrial, a Policia da Fronteira Indo-Tibetana, a Força de Fuzileiros da Fronteira Ocidental, as Forças Especiais (os Escorpiões, os Galgos e os Cobras), todos mobilizados para esmagarem as insurreições dos mais pobres de entre os pobres, na cintura mineira – que é também a cintura florestal – em Nagaland, Manipur e mesmo em Cachemira. Neste Estado, onde mais de meio milhão de soldados espalham a “democracia indiana” e garantem a unidade territorial, ir a uma manifestação é demasiado arriscado, pois os manifestantes são considerados separatistas, ou militantes do Lashkar-e-Toiba (uma organização separatista islâmica) e como tal agentes dos serviços secretos paquistaneses. Nem que seja uma simples manifestação de protesto contra o desemprego, conforme aprenderam 60 jovens indianos de Cachemira que perderam a vida numa campanha contra o desemprego, cujas manifestações foram brutalmente reprimidas pelas forças de segurança.

O programa do governo é simples: Privatizar. E este conceito no progressista capitalismo BRICS indiano é entregar a água, a electricidade, os minerais, a agricultura, a terra, as telecomunicações, a educação, a saúde – e o mais que houver – às Corporações Oligárquicas dos 100 Senhores. Claro que de quando em vez satisfaz-se as demandas populares, até para manter a capa da democracia e do poder do Estado Democrático de Direito, aplacando a ira dos pobres e distribuindo umas migalhas pelos trabalhadores. Foi assim que o governo cancelou as licenças de exploração de bauxite em Niyamgiri, exploradas pela VEDANTA, uma multinacional indiana, depois de uma batalha judicial travada por uma coligação entre a tribo dos Dongria-Kondh e activistas sindicais e ambientais, durante anos.

Este corrupto programa de privatizações comporta uma divisão de funções nas elites políticas, de forma a não caírem no descrédito das massas e manterem os seus feudos e influencias políticas. É assim que as castas dominantes mantêm a fachada democrática. Os ministros estão dispensados de ganhar as eleições. Esse papel cabe aos partidos políticos, cujas cúpulas estão afastadas do executivo e mantêm um discurso misto, de apoio às medidas do governo e simultaneamente de algumas críticas vagas, cujo pano de fundo é o “sacrifício por uma vida melhor”. Este sistema permite duas coisas: implementar as políticas de privatização e aniquilação do sector público, permitindo aos ministros (que sabem ser curta a sua carreira) correm atrás das chorudas comissões atribuídas pelas corporações nacionais. Mesmo que nas eleições, políticos de vários partidos teçam criticas e ataques pessoais uns aos outros (inclusive aos seus próprios companheiros de partido) a única rivalidade de facto existente é a rivalidade comercial entre as empresas da oligarquia.

Mas as comissões chorudas das multinacionais indianas e o seu peso nos media indianos e internacionais também fazem-se sentir nos “fazedores de opinião”, “vigilantes dos direitos humanos” que têm uma língua aguçada em relação a África, aos elevados níveis de corrupção e pobreza no continente, mas que ficam mudos em relação á realidade indiana ou então apontam-na como um exemplo de democracia nas economias do sul. Como se o capitalismo canceroso que mina as novas ideologias desenvolvimentistas africanas e que representa a queda da máscara das independências africanas, revelando o que elas de facto representavam no processo de globalização da nova fase pós-industrial do capitalismo (que necessita das riquezas que percorrem as veias do continente africano, mas que necessita também de custos de investimento mais baixos, partilhando esses custos com as elites dominantes africanas nascidas no período pós-independência, que mais não foi do que um período de acumulação de capital), não fosse o mesmo cancro que mina a India.

A taxa de crescimento do PIB indiano, que passou de 6,9% em 2001, para os 9,4% em 2007 e atingiu os dois dígitos em 2009, os seus recurso minerais que incluem a quarta maior reserva mundial de carvão, o ferro, o manganésio, a bauxite, o titânio, o cromo, diamantes, gás natural e petróleo, a legislação completamente aberta às forças de mercado, nacionais e externas (o que em muitos casos mistura-se pois a burguesia indiana e as riquezas da oligarquia tradicional volatilizaram-se facilmente nos mercados externos, onde são fortes associadas de multinacionais estrangeiras, obtendo assim uma atmosfera óptima para a internacionalização das suas corporações), o facto de ser uma potencia nuclear regional e de se fazer representar com influencia nos fóruns mundiais, constituem um atractivo para os investidores internacionais, que conseguem obter e apropriar-se das riquezas (sobras) que a repleta burguesia nacional indiana já não tem interesse em deitar a mão.

No fundo o capitalismo BRICS na India é uma imensa operação de marketing e propaganda, uma realidade virtualizada, cujo objectivo é atrair investimento e tornar atractivo o investimento indiano no exterior, uma lição cujo sumário é: Como transformar um elefante de pés-de – barro (ou um tigre de papel se quisermos parafrasear Mao) numa sólida e apetecível ilusão.

IV

As lutas que têm lugar na India são lutas que, para além da sua componente de guerra de classes, tem como pano de fundo o respeito dos direitos constitucionais. Só que as elites dominantes da India já não têm necessidade de respeitar a Constituição. Para o governo representativo da oligarquia o preambulo constitucional que proclama: “Nós, o Povo da India, solenemente resolvemos constituir a India numa soberana e secular Republica Democrática Socialista (…) ”, é um contrassenso, que deveria ser substituído e rezar assim: “Nós, as castas e as classes superiores da India, depois de resolvermos, em segredo, constituir a India num estado satélite das empresas (…) ”.

A insurreição na cintura florestal e mineral indiana é um desafio radical da resistência. Coloca em duvida as ideias pré-concebidas de desenvolvimento e a ética alienante que caracteriza os valores morais do capitalismo. Mas também é um teste para a eficácia das estratégias de resistência que deve analisar em pormenor as vitórias alcançadas, como por exemplo no vale de Narmada, onde as populações constituíram um movimento forte e coeso contra o desalojamento imposto pelo governo e pelas mineiras. A resposta governamental foi a repressão e a aceleração do despejo, a típica falte de respeito, de foro patológico, que a oligarquia demonstra sobre o povo. A ira da “gente comum” como as casta denominam os pobres, foi incontrolável e as autoridades governamentais ficaram a braços com uma situação em que foram forçadas á negociação para não perderem o controlo sobre o vale. O governo retrocedeu e suspendeu o contrato com as empresas mineiras que operavam no vale de Narmada. Hoje as pessoas mais pobres do mundo podem proclamar a sua vitoria sobre as mais ricas corporações mundiais, no seu vale.

Os que ousam levantar-se são conscientes de que a India vive num estado de emergência e que os cidadãos foram despojados de direitos civis pela legislação de emergência, como a Lei da Segurança Pública instaurada em Cachemira, Manipur, Nagaland, Assam e Chhattisgarh, que penaliza todo o tipo de dissidência pela palavra, obra e intenção. Sabem que a Constituição não permite este tipo de legislação, mas conhecem bem o poder e a logica do capital que consegue paralisar todas as instituições públicas, comprando políticos, juízes e funcionários. Num passado recente, durante os governos de Indira Gandhi, a comunicação social indiana publicava editoriais em branco para protestar contra a censura. Hoje a comunicação social é propriedade da oligarquia e nem uma linha é escrita ou uma palavra é dita nos media sobre as lutas na India. É esta a mais populosa “democracia” do mundo dominada pela oligarquia.

O Che um ano antes da sua morte escreveu: "Cuando las fuerzas opresivas se mantienen en el poder contra las leyes que se establecieron, la paz debe considerarse ya rota”. De facto…

Fontes
Arundhati Roy; Walking with the comrades; http://www.zcommunications.org

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