Rodolpho Motta Lima*
- Direto da Redação
O governo
brasileiro, dando seguimento a ações que buscam o enquadramento dos planos de
saúde , resolveu suspender por três meses as atividades de venda de 255 deles,
vinculados a 28 operadoras, em razão do descumprimento de prazos máximos
fixados para consultas, cirurgias e exames diversos.
Esse é um cenário
que, como outros do gênero, nos convida a refletir sobre a importância do
debate – hoje central e crucial em muitos pontos do planeta - que coloca em
oposição o público e o privado, com as respectivas responsabilidades.
Em livro que motiva
o título deste artigo (“A Modernidade Líquida”), escrito há alguns anos mas que
mantém integral atualidade, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman trata, em
diversos níveis, das mudanças experimentadas pela Humanidade nos tempos mais
recentes, cuidando de múltiplos aspectos que exemplificam o advento do que ele
denomina “modernidade líquida”, como contraposição a uma anterior modernidade
posta de lado, tida como “sólida”, “pesada”. Entre os aspectos envolvidos nessa
transformação (que muitos consideram evolutiva) estariam presentes temas como
emancipação, individualidade, tempo/espaço, trabalho e comunidade, cada um
deles merecendo expressivas análises do autor e todos eles, seguramente,
constituindo um bom assunto para debate aqui no DR, não para produzir
pretensiosos documentos da ciência social, mas para colocar em questão a
importância que merecem tais assuntos, por marcarem o mundo de hoje.
Entre as
características de um mundo “pesado”, do mundo das coisas sólidas, de complicada
dissolução, que a realidade moderna pretendeu ver superadas por elementos mais
“flexíveis”,”leves”, esteve sempre em destaque a chamada “esfera pública” com o
domínio considerado opressivo de um Estado onipotente, inibidor das
potencialidades do indivíduo. Em nome da “leveza” – como componentes da
modernidade líquida - surgiram as teses neoliberais que propugnavam pelo Estado
mínimo, defendendo para a esfera particular a missão de “colonizar o espaço
público”, e conferindo à iniciativa privada, em escala crescente, funções que
eram prerrogativas estatais.
Uma dessas
atividades em que se foi expulsando o publico em detrimento do privado diz
respeito à saúde e suas diversas nuances. Alguns países – mesmo com o peso de
ícones do capitalismo, como a Inglaterra e a França – conseguiram, nesse
âmbito, manter o poder público como protagonista das ações. Mas essa não foi a
realidade, em termos planetários. Estamos hoje, aliás, percebendo como o tema é
explosivo nos Estados Unidos, sendo uma das diferenças entre as óticas da
administração Obama e dos republicanos.
A transformação em
elementos “líquidos” das coisas tidas como “sólidas” - às quais era preciso dar
fluidez - passou também por outra sutil metamorfose que colocou no lugar da
cidadania – com a consciência do social que ligava as pessoas - a
individualidade, ou seja, seres “emancipados” em relação a qualquer obrigação
comunitária. Cidadãos tornaram-se indivíduos apreciadores do próprio umbigo,
consumidores contumazes e vorazes, paradoxalmente insensíveis quanto à defesa,
com a força do coletivo, de seus próprios interesses.
Os valores e ações
da cidadania cedendo lugar aos que tipificam o individualismo – dentro dos
princípios de “substituição do sólido pelo líquido” – constituíram e constituem
ainda um dos motes que propiciou essa diminuição da interferência do Estado em
assuntos como a saúde, cuja natureza – diretamente vinculada ao interesse
público – deveria merecer a preocupação do cidadão. Mas esse também estava
sendo diminuído pelos novos tempos.
No Brasil, esse
processo não foi diferente e os governos que precederam o de Lula –
principalmente os conduzidos pelo tucanato - tentaram consolidar os ideais da
modernidade líquida ,em processo que buscava o Estado mínimo e a participação
máxima da iniciativa particular. A tão decantada administração da saúde
naqueles governos só fez propiciar a proliferação dos planos de saúde,
relegando a um descuidado estágio inferior as atividades públicas.
Os planos de saúde,
com a perversa lógica do mercado voltada para o lucro, são instrumentos que
exemplificam claramente os malefícios da iniciativa privada, se deixada livre
para agir apenas segundo suas conveniências. Seguramente, um Estado que
contasse com todos os recursos (muitas vezes abusivos) carreados para os Planos
, e que assumisse como missão prioritária o bem comum traria muito mais
benefícios e segurança aos seus governados.
Na impossibilidade
de, a curto prazo, reverter essa perversa situação, o governo Dilma – como já o
fez recentemente com as empresas de telecomunicações – tenta, com providências
de fiscalização e punição, salvar os destroços e, mal ou bem, recuperar a
importância do Estado na gestão de assuntos viscerais para o nosso povo.
Fica bem fácil
entender determinadas reações do pessoal da ”modernidade líquida” diante de
posturas de governos como o nosso, todas as vezes em que se assume a defesa dos
interesses populares. É facílimo entender a raivosa oposição que se faz, por
exemplo, ao governo de Hugo Chavez, na Venezuela, marcado fortemente pela
presença do Estado, com ações que redundaram na expressiva diminuição da
pobreza, na erradicação do analfabetismo e na democratização do acesso à
comunicação.
E fica mais fácil
ainda perceber a importância de buscar-se a recuperação do público em relação
ao privado, com o retorno do primado do cidadão diante do indivíduo, através de
participações coletivas que denunciem, inibam e ao final destruam os agentes
contrários aos interesses da população.
* Advogado formado
pela UFRJ-RJ (antiga Universidade de Brasil) e professor de Língua Portuguesa
do Rio de Janeiro, formado pela UERJ , com atividade em diversas instituições
do Rio de Janeiro. Com militância política nos anos da ditadura, particularmente
no movimento estudantil. Funcionário aposentado do Banco do Brasil.
Sem comentários:
Enviar um comentário