quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Brasil: A PERVERSA MODERNIDADE LÍQUIDA




Rodolpho Motta Lima* - Direto da Redação

O governo brasileiro, dando seguimento a ações que buscam o enquadramento dos planos de saúde , resolveu suspender por três meses as atividades de venda de 255 deles, vinculados a 28 operadoras, em razão do descumprimento de prazos máximos fixados para consultas, cirurgias e exames diversos.

Esse é um cenário que, como outros do gênero, nos convida a refletir sobre a importância do debate – hoje central e crucial em muitos pontos do planeta - que coloca em oposição o público e o privado, com as respectivas responsabilidades.

Em livro que motiva o título deste artigo (“A Modernidade Líquida”), escrito há alguns anos mas que mantém integral atualidade, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman trata, em diversos níveis, das mudanças experimentadas pela Humanidade nos tempos mais recentes, cuidando de múltiplos aspectos que exemplificam o advento do que ele denomina “modernidade líquida”, como contraposição a uma anterior modernidade posta de lado, tida como “sólida”, “pesada”. Entre os aspectos envolvidos nessa transformação (que muitos consideram evolutiva) estariam presentes temas como emancipação, individualidade, tempo/espaço, trabalho e comunidade, cada um deles merecendo expressivas análises do autor e todos eles, seguramente, constituindo um bom assunto para debate aqui no DR, não para produzir pretensiosos documentos da ciência social, mas para colocar em questão a importância que merecem tais assuntos, por marcarem o mundo de hoje.

Entre as características de um mundo “pesado”, do mundo das coisas sólidas, de complicada dissolução, que a realidade moderna pretendeu ver superadas por elementos mais “flexíveis”,”leves”, esteve sempre em destaque a chamada “esfera pública” com o domínio considerado opressivo de um Estado onipotente, inibidor das potencialidades do indivíduo. Em nome da “leveza” – como componentes da modernidade líquida - surgiram as teses neoliberais que propugnavam pelo Estado mínimo, defendendo para a esfera particular a missão de “colonizar o espaço público”, e conferindo à iniciativa privada, em escala crescente, funções que eram prerrogativas estatais.

Uma dessas atividades em que se foi expulsando o publico em detrimento do privado diz respeito à saúde e suas diversas nuances. Alguns países – mesmo com o peso de ícones do capitalismo, como a Inglaterra e a França – conseguiram, nesse âmbito, manter o poder público como protagonista das ações. Mas essa não foi a realidade, em termos planetários. Estamos hoje, aliás, percebendo como o tema é explosivo nos Estados Unidos, sendo uma das diferenças entre as óticas da administração Obama e dos republicanos.

A transformação em elementos “líquidos” das coisas tidas como “sólidas” - às quais era preciso dar fluidez - passou também por outra sutil metamorfose que colocou no lugar da cidadania – com a consciência do social que ligava as pessoas - a individualidade, ou seja, seres “emancipados” em relação a qualquer obrigação comunitária. Cidadãos tornaram-se indivíduos apreciadores do próprio umbigo, consumidores contumazes e vorazes, paradoxalmente insensíveis quanto à defesa, com a força do coletivo, de seus próprios interesses.

Os valores e ações da cidadania cedendo lugar aos que tipificam o individualismo – dentro dos princípios de “substituição do sólido pelo líquido” – constituíram e constituem ainda um dos motes que propiciou essa diminuição da interferência do Estado em assuntos como a saúde, cuja natureza – diretamente vinculada ao interesse público – deveria merecer a preocupação do cidadão. Mas esse também estava sendo diminuído pelos novos tempos.

No Brasil, esse processo não foi diferente e os governos que precederam o de Lula – principalmente os conduzidos pelo tucanato - tentaram consolidar os ideais da modernidade líquida ,em processo que buscava o Estado mínimo e a participação máxima da iniciativa particular. A tão decantada administração da saúde naqueles governos só fez propiciar a proliferação dos planos de saúde, relegando a um descuidado estágio inferior as atividades públicas.

Os planos de saúde, com a perversa lógica do mercado voltada para o lucro, são instrumentos que exemplificam claramente os malefícios da iniciativa privada, se deixada livre para agir apenas segundo suas conveniências. Seguramente, um Estado que contasse com todos os recursos (muitas vezes abusivos) carreados para os Planos , e que assumisse como missão prioritária o bem comum traria muito mais benefícios e segurança aos seus governados.

Na impossibilidade de, a curto prazo, reverter essa perversa situação, o governo Dilma – como já o fez recentemente com as empresas de telecomunicações – tenta, com providências de fiscalização e punição, salvar os destroços e, mal ou bem, recuperar a importância do Estado na gestão de assuntos viscerais para o nosso povo.

Fica bem fácil entender determinadas reações do pessoal da ”modernidade líquida” diante de posturas de governos como o nosso, todas as vezes em que se assume a defesa dos interesses populares. É facílimo entender a raivosa oposição que se faz, por exemplo, ao governo de Hugo Chavez, na Venezuela, marcado fortemente pela presença do Estado, com ações que redundaram na expressiva diminuição da pobreza, na erradicação do analfabetismo e na democratização do acesso à comunicação.

E fica mais fácil ainda perceber a importância de buscar-se a recuperação do público em relação ao privado, com o retorno do primado do cidadão diante do indivíduo, através de participações coletivas que denunciem, inibam e ao final destruam os agentes contrários aos interesses da população.

* Advogado formado pela UFRJ-RJ (antiga Universidade de Brasil) e professor de Língua Portuguesa do Rio de Janeiro, formado pela UERJ , com atividade em diversas instituições do Rio de Janeiro. Com militância política nos anos da ditadura, particularmente no movimento estudantil. Funcionário aposentado do Banco do Brasil.

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