Na madrugada de 17
de maio morreu como havia nascido, entre armas, na solidão e no ostracismo, tal
como devia morrer: na prisão, condenado por seus crimes contra a humanidade.
Nasceu entre baionetas e armas e morreu só, em uma cela, ao amanhecer, como
costumam morrer algumas ratazanas. Agora só lhe restará o consolo dos
obituários que seguramente muitos sobrenomes ilustres publicarão no jornal La
Nación, sintoma de que a oligarquia argentina chora o último de seus bandidos.
Por Oscar Guisoni, Especial para Carta Maior.
Oscar Guisoni, especial
para Carta Maior
Nasceu entre
baionetas e armas e morreu só, em uma cela, ao amanhecer, como costumam morrer
algumas ratazanas. O ex-ditador argentino Jorge Rafael Videla chegou ao mundo
em 2 de agosto de 1925 em uma pequena cidade da província de Buenos Aires. Seu
pai era militar e seu avô havia sido governador na província de São Luis, no
final do século XIX, em um período onde era amo e senhor da Argentina outro
assassino, Julio Argentino Roca, o homem que conduziu a campanha militar que
exterminou os indígenas na Patagônia e que instaurou o projeto oligárquico e
liberal reivindicado pelos ricos produtores agropecuários do porto de Buenos
Aires para impor seu projeto de república bananeira.
Foi assim como seu destino esteve ligado desde o início à casta militar a que
pertencia. Uma casta que, durante o século XX, se erigiu em guardiã da ordem
conservadora, interrompendo pela força os processos democráticos populares
desde 1930, sempre sob as ordens dessa oligarquia portenha que se acreditava
dona do país, que havia se aliado com a Inglaterra no século XIX e que, partir
de 1955, se aliaria com os Estados Unidos.
E como as armas sempre estão acompanhadas pela cruz, o futuro assassino dos
pampas se transformou desde jovem em um católico devoto. Ele se casou com uma
senhora de pomposo sobrenome anglo-saxão, filha de um embaixador, com quem teve
sete filhos, e em poucos anos ascendeu como estrela fulgurante entre a dura
hierarquia das baionetas. Em 1960 – enquanto a Argentina mergulhava em um dos
períodos políticos mais instáveis, com o peronismo proscrito desde 1955 e os
militares interrompendo a vida civil do país de forma contínua -, dirigiu a
Academia Militar, até que o então ditador Alejandro Agustín Lanusse o nomeou
diretor do Colégio Militar da Nação, uma das instituições aristocráticas nas
quais se formavam os futuros generais que depois conduziam os golpes de estado.
Em 1973, o ex-presidente Juan Domingo Perón consegue que se movimento político
possa participar nas eleições depois de 18 anos de proibição e regressa ao país
em meio a uma agitada situação política, com os militares em retirada em um
punhado de movimentos guerrilheiros surgidos nos anos sessenta que ameaçavam
encerrar também pelas armas a luta de poder no país. São os tempos da Guerra
Fria e em todo o continente as castas militares e seus aliados econômicos se
preparam para executar o que logo se conheceria como Plano Condor, uma
repressão sistemática e generalizada coordenada pelos Estados Unidos para
acabar para sempre com a insurgência armada e qualquer possibilidade de
estabelecer alianças e sistemas econômicos diferentes na América Latina em
relação aos então vigentes. Nesse ano, Videla se transformou o chefe do Estado
Maior do Exército, promovido pelos seus próprios pares.
Em 1974, o envelhecido Juan Domingo Perón morre e assume o governo sua mulher,
a direitista María Estela Martínez de Perón, “Isabelita”, que abre o caminho
para a formação de grupos de ultradireita como a Triple A, que, à sombra do
Estado, começam a executar dirigentes de esquerda, deputados, intelectuais,
abrindo as portas ao terrorismo de estado. Em 1975, “Isabelita” o nomeia
comandante em chefe do Exército, o lugar a partir do qual executará no ano
seguinte o último golpe de estado na história contemporânea argentina.
Desde o começo, ditadura inaugurada por Videla em 1976 teve muito claro seus
objetivos: “reorganizar” o país através de um “processo” sangrento (o governo
se autodenominou “Processo de reorganização nacional”), capaz de extirpar pela
raiz toda possibilidade de instaurar outro projeto econômico que não o apoiado
pelas elites portenhas proprietárias das ricas terras expropriadas a força dos
povos indígenas, um século antes.
O novo ditador assumiu com gosto sua função de exterminador, tal como havia
feito um século atrás Juan Lavalle, o primeiro militar argentino que colocou à
disposição dos latifundiários as armas do exército para dirimir pela força os
diferentes projetos de país em disputa que tinham surgido da Revolução de Maio
e da independência da Espanha, em 1816. Ele se sentia tão cômodo em sua nova
função que até se permitiu conceber um novo método para assassinar inimigos
políticos: a desaparição forçada de pessoas. Dessa maneira, explicou, se
poupavam o aborrecimento de ter que fuzilar os seus opositores. Para isso, os
militares sob seu comando criaram uma rede de campos de concentração
clandestinos nos quais os prisioneiros eram torturados primeiro e depois
lançados ao mar ou em uma fossa comum, impedindo que seus familiares
encontrassem seus corpos. Para completar o horror, as Forças Armadas se
apropriavam não só das propriedades dos presos desaparecidos, como também de
seus filhos, que eram distribuídos entre militares e empresários amigos.
O regime que inaugurou e que dirigiu até 1980, afundou na própria infâmia
depois da derrota na Guerra das Malvinas, em 1982. Em 1983, junto com o retorno
da democracia, chegam também os primeiros ares de justiça e, em 1984, começa o
mítico processo judicial das Juntas Militares que culmina com a condenação à
prisão perpétua de Videla e seus capangas. Em 1991, o peronista Carlos Menem os
indulta, como parte de seu projeto político neoliberal que implica ter as
Forças Armadas contentes enquanto os setores oligárquicos continuam desfrutando
do modelo econômico instaurado em 1976.
Em 2003, assume a presidência Néstor Kirchner, um peronista mais próximo da
esquerda, que anula os indultos e abre a porta para a continuidade dos
julgamentos. Videla volta á prisão e é envolvido em um punhado de julgamentos,
dos quais sai condenado. O mais simbólico ocorre em 2010, quando é apontado
como um dos principais responsáveis pelo roubo de bebês, um dos crimes mais
repugnantes da ditadura.
Passou seus últimos anos na cadeia, já que seu excelente estado de saúde não
permitiu que gozasse dos benefícios da prisão domiciliar, usufruído por alguns
de seus cúmplices. Da sua solidão e ostracismo até se permitiu questionar o
atual governo por ter permitido que se retomassem os julgamentos, mas nunca
quis pedir perdão nem se mostrou arrependido de seus crimes. Ao cair da noite
da quinta-feira, sentiu-se mal e comunicou o fato a seus carcereiros. Na
madrugada de 17 de maio morreu como havia nascido, entre armas, na solidão e no
ostracismo, tal como devia morrer: na prisão, condenado por seus crimes contra
a humanidade. Agora só lhe restará o consolo dos obituários que seguramente
muitos sobrenomes ilustres publicarão no jornal La Nación, sintoma de que a
oligarquia argentina chora o último de seus bandidos.
Tradução: Marco Aurélio Weissheimer
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