Daniel Oliveira –
Expresso, opinião
Depois de violar a
Constituição duas vezes, o governo tenta de novo. Agora é a vez de, através
da convergência da segurança social com a Caixa Geral de Aposentações, reduzir
as pensões. Não as futuras, mas as que já estão a ser recebidas. Uma
aplicação retroativa da lei que, parece-me, viola a Constituição. Porque uma
reforma não é um salário. É resultado dos descontos que se fizeram. É uma devolução.
E porque essa devolução se baseia num contrato que não pode ser mudado a meio,
de forma unilateral. A quem enche a boca com "honrar os
compromissos" isto nem sequer deveria ter de ser explicado.
Na realidade, esta
receita, para ser, como Gaspar quer, imediata, só poderia ser conseguida através
de uma taxa ou de um imposto. Mas Paulo Portas, e agora Passos Coelho, gosta de
dizer que não aumenta impostos. Que prefere cortar na despesa. E para continuar
este jogo semântico, que é sentido, de uma ou de outra forma, da
mesmíssima maneira nos bolsos dos trabalhadores e reformados, inventam
estratagemas que violam a lei e os princípios da credibilidade do Estado.
Dirão: o
problema é a Constituição e os "direitos adquiridos". Eles são
incompatíveis com o que tem de ser feito. Nestas matérias, a Constituição
limita-se a pôr em papel as regras normais de um Estado de Direito. O Estado
não pode dispor, a seu bel-prazer, de dinheiro que não lhe pertence. Não pode
reduzir 10% reformas que já estão a ser pagas e que resultam de descontos
feitos numa vida inteira. Pode mudar o futuro. Não pode mudar o passado. A
não retroatividade das leis é uma regra geral de qualquer ordenamento jurídico
normal.
Conclusão: o
que supostamente tem de ser feito é que é incompatível com qualquer ideia de
Estado de Direito e de democracia. Já muitos o disseram: não é possível
fazer, em crise e em poucos anos, os cortes na despesa, o aumento na receita e
a contração do PIB que a austeridade receitada pela troika nos quer exigir.
Porque a democracia é, por natureza, avessa a engenharias sociais pensadas em
gabinetes de burocratas.
Esta
impossibilidade democrática não resulta exclusivamente da lei. Resulta da
própria vontade dos povos. Um povo esmifrado até ao tutano tende a reagir.
Se o saque é feito pelos poderes eleitos tende a correr com quem o governa. E
é por isso que, por essa Europa fora, nenhum governo de países em crise
consegue manter o mínimo de confiança dos cidadãos mais do que dois ou três
meses.
A questão é sempre
a mesma: quanto tempo aguenta o regime democrático viver sob esta pressão
insuportável? Pouco. É nesse pouco tempo que ou a Europa muda de caminho
por pressão dos cidadãos ou teremos nós, e todos os que estão como nós, de nos
proteger desta Europa. Ou a democracia salva a Europa ou a democracia se
salva da Europa.
Tudo o resto a que
estamos a assistir, da simulação de idas aos mercados às rábulas de Paulo
Portas, das inconstitucionalidades aos buracos que elas deixam nos orçamentos,
das medidas de austeridade aos seus resultados trágicos e previsíveis, são
episódios de uma novela com um epílogo mais do que certo. Pondo-nos nas mãos de
outros, que, como é evidente, tratam de si, estamos apenas a fugir da
realidade. Por cada dia que passa sem fazermos o corte que tem de ser feito com
o euro (que sustentei há mais de um mês na edição impressa do
"Expresso"), mais difícil será reconstruirmos a nossa economia e
salvarmos o que resta da nossa democracia.
Sem comentários:
Enviar um comentário