João Almeida Moreira
– Dinheiro Vivo, opinião
Em março de 2012, o
secretário geral da FIFA, o francês Jerôme Valcke, disse que por causa dos
atrasos na organização no Mundial de futebol de 2014 o Brasil merecia “um chute
no traseiro”. Mais tarde recorreu ao expediente a que recorrem todos aqueles que
dizem uma enormidade e não têm coragem de arcar com as consequências dela. “Fui
mal interpretado”, disse o assustado funcionário do mal afamado organismo suíço
no dia seguinte a ofender um país soberano.
A cada vez mais
comum tese da “má interpretação”, que absolve o emissor e passa um atestado de
estupidez a todos os milhares de recetores da mensagem, serviu a Valcke. De lá
para cá, tal como antes da frase, o dirigente continuou a ter tratamento VIP no
país, bajulado pelo longo séquito de co-organizadores do evento, da CBF
(Confederação Brasileira de Futebol), ao COL (Comité Organizador Local),
passando pelo Ministério do Esporte e por cidadãos avulsos, como Ronaldo ou
Bebeto, as caras do Mundial-2014.
Mas os dados
estavam lançados: depois do Caso Chute no Traseiro, a correlação de forças
entre FIFA e Brasil nunca mais foi a mesma. Se a FIFA pode dizer o que quer,
pode fazer o que quer.
E eis o que a FIFA
tem feito: no Brasil, os estudantes e os membros ‘da terceira idade’ (ou para
usar o eufemismo brasileiro ‘da melhor idade’) pagam meia entrada em
espetáculos, entre os quais, o futebol. Pagavam: no Mundial (e na Taça das
Confederações, que está a começar) pagam o mesmo que os outros. A Lei da FIFA
vai impor-se à lei brasileira.
No Brasil, não se
vende cerveja nos estádios. Não vendia: como a Budweiser é patrocinadora do
Mundial-2014, a lei da FIFA vai sobrepor-se à do país.
No Brasil,
sobretudo na Bahia, os adeptos têm por hábito comer acarajé, uma especialidade
culinária local de origem africana, nos arredores do estádio, antes e depois
dos jogos. Tinham. Durante o Mundial de futebol será vetada a venda daquele
património cultural imaterial brasileiro para não prejudicar a McDonald’s,
cadeia de fast-food patrocinadora do evento.
Em junho, o Brasil
celebra as Festas Juninas, uma versão tropicalizada dos Santos Populares
portugueses. Celebrava: as entidades que tem requisitado o aluguer de espaços
para a realização das festas viram as suas municipalidades negarem autorização
porque as principais praças estão reservadas às “fan fest”, as reuniões de
adeptos oficiais promovidas pela FIFA.
No Brasil, Mané
Garrincha é uma das mais altas divindades da ‘religião futebol’, só superada
pelo Rei Pelé, o Deus dos Deuses. Como tal, há estádios de nome Rei Pelé
espalhados pelo país e há o Estádio Nacional Mané Garrincha, na capital federal
Brasília, um dos escolhidos para sediar o Mundial. Havia. A FIFA determinou que
o Estádio será apenas conhecido como Nacional por ser de mais fácil compreensão
internacional, apagando ‘Mané Garrincha’ das propagandas oficiais.
Claro que parte
destas decisões da FIFA estavam contratualizadas desde o dia em que a
organização do mais importante evento desportivo do planeta foi atribuído ao
Brasil. Há assinaturas de governantes que provavelmente não leram as letrinhas
todas do contrato a comprová-lo. Mas outra parte não.
E é compreensível
que por causa disso autoridades federais, estaduais ou municipais se tenham
oposto a este aluguer do país à FIFA, fazendo, se não rejeitar, pelo menos
demorar a aprovação das diretrizes do organismo liderado desde 1998 por Sepp
Blatter, o suíço que tem um longo currículo de suspeitas de corrupção ao
serviço da entidade.
Por causa dessas
oposições e demoras, Jerôme Valcke, o tal secretário-geral e braço direito de
Blatter que o mundo interpretou mal quando juntou as palavra “chute” e
“traseiro” na mesma oração, voltou a intervir, nas últimas semanas.
Disse ele: “Às
vezes, menos democracia é melhor para se organizar um Mundial. Quando há um
chefe de Estado forte que decide tudo, como Putin (a Rússia organiza o Mundial
seguinte, em 2018), é mais fácil para nós organizadores.”
No dia seguinte,
para amenizar o impacto negativo das suas declarações junto de Dilma Rousseff,
indiretamente apelidada de fraca, e de Vladimir Putin, indiretamente apelidado
de ditador, Valcke disse o quê? Isso mesmo: “Fui mal interpretado”. E siga a
festa.
Jornalista - Escreve à quarta-feira - Crónicas de um português emigrado no Brasil
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