segunda-feira, 17 de junho de 2013

O BRASIL ESTÁ ALUGADO À FIFA



João Almeida Moreira – Dinheiro Vivo, opinião

Em março de 2012, o secretário geral da FIFA, o francês Jerôme Valcke, disse que por causa dos atrasos na organização no Mundial de futebol de 2014 o Brasil merecia “um chute no traseiro”. Mais tarde recorreu ao expediente a que recorrem todos aqueles que dizem uma enormidade e não têm coragem de arcar com as consequências dela. “Fui mal interpretado”, disse o assustado funcionário do mal afamado organismo suíço no dia seguinte a ofender um país soberano.

A cada vez mais comum tese da “má interpretação”, que absolve o emissor e passa um atestado de estupidez a todos os milhares de recetores da mensagem, serviu a Valcke. De lá para cá, tal como antes da frase, o dirigente continuou a ter tratamento VIP no país, bajulado pelo longo séquito de co-organizadores do evento, da CBF (Confederação Brasileira de Futebol), ao COL (Comité Organizador Local), passando pelo Ministério do Esporte e por cidadãos avulsos, como Ronaldo ou Bebeto, as caras do Mundial-2014.

Mas os dados estavam lançados: depois do Caso Chute no Traseiro, a correlação de forças entre FIFA e Brasil nunca mais foi a mesma. Se a FIFA pode dizer o que quer, pode fazer o que quer.

E eis o que a FIFA tem feito: no Brasil, os estudantes e os membros ‘da terceira idade’ (ou para usar o eufemismo brasileiro ‘da melhor idade’) pagam meia entrada em espetáculos, entre os quais, o futebol. Pagavam: no Mundial (e na Taça das Confederações, que está a começar) pagam o mesmo que os outros. A Lei da FIFA vai impor-se à lei brasileira.

No Brasil, não se vende cerveja nos estádios. Não vendia: como a Budweiser é patrocinadora do Mundial-2014, a lei da FIFA vai sobrepor-se à do país.

No Brasil, sobretudo na Bahia, os adeptos têm por hábito comer acarajé, uma especialidade culinária local de origem africana, nos arredores do estádio, antes e depois dos jogos. Tinham. Durante o Mundial de futebol será vetada a venda daquele património cultural imaterial brasileiro para não prejudicar a McDonald’s, cadeia de fast-food patrocinadora do evento.

Em junho, o Brasil celebra as Festas Juninas, uma versão tropicalizada dos Santos Populares portugueses. Celebrava: as entidades que tem requisitado o aluguer de espaços para a realização das festas viram as suas municipalidades negarem autorização porque as principais praças estão reservadas às “fan fest”, as reuniões de adeptos oficiais promovidas pela FIFA.

No Brasil, Mané Garrincha é uma das mais altas divindades da ‘religião futebol’, só superada pelo Rei Pelé, o Deus dos Deuses. Como tal, há estádios de nome Rei Pelé espalhados pelo país e há o Estádio Nacional Mané Garrincha, na capital federal Brasília, um dos escolhidos para sediar o Mundial. Havia. A FIFA determinou que o Estádio será apenas conhecido como Nacional por ser de mais fácil compreensão internacional, apagando ‘Mané Garrincha’ das propagandas oficiais.

Claro que parte destas decisões da FIFA estavam contratualizadas desde o dia em que a organização do mais importante evento desportivo do planeta foi atribuído ao Brasil. Há assinaturas de governantes que provavelmente não leram as letrinhas todas do contrato a comprová-lo. Mas outra parte não.

E é compreensível que por causa disso autoridades federais, estaduais ou municipais se tenham oposto a este aluguer do país à FIFA, fazendo, se não rejeitar, pelo menos demorar a aprovação das diretrizes do organismo liderado desde 1998 por Sepp Blatter, o suíço que tem um longo currículo de suspeitas de corrupção ao serviço da entidade.

Por causa dessas oposições e demoras, Jerôme Valcke, o tal secretário-geral e braço direito de Blatter que o mundo interpretou mal quando juntou as palavra “chute” e “traseiro” na mesma oração, voltou a intervir, nas últimas semanas.

Disse ele: “Às vezes, menos democracia é melhor para se organizar um Mundial. Quando há um chefe de Estado forte que decide tudo, como Putin (a Rússia organiza o Mundial seguinte, em 2018), é mais fácil para nós organizadores.”

No dia seguinte, para amenizar o impacto negativo das suas declarações junto de Dilma Rousseff, indiretamente apelidada de fraca, e de Vladimir Putin, indiretamente apelidado de ditador, Valcke disse o quê? Isso mesmo: “Fui mal interpretado”. E siga a festa.

Jornalista - Escreve à quarta-feira - Crónicas de um português emigrado no Brasil

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