Fernanda Câncio –
Diário de Notícias, opinião
Diz o
primeiro-ministro, em resposta à greve geral de ontem, que este país precisa é
de trabalho. Sem trabalho, é certo, nada de jeito se faz. Mas é de trabalho
digno, tratado com dignidade, que precisamos. Se há trabalho não digno? Então
não há: o dos escravos, por exemplo. Podem os escravos ser dignos, e Epicteto,
a grande referência da escola estoica, bem o demonstra, mas são-no apesar de
serem escravos, da indignidade que tal implica.
Mas não é só o
trabalho forçado que é indigno; há trabalhos voluntários, até entusiásticos,
igualmente indignos. Como aquele que Passos, Portas, Gaspar e, não esquecer,
Cavaco (se porque quer ou porque foi a isso forçado de qualquer forma é
indiferente) estão a levar a cabo: o trabalho que tem como principal objetivo
diminuir, escarnecer, defraudar, castigar, precisamente, o trabalho.
Disse Carlos Silva,
o atual secretário-geral da UGT, em resposta a Passos, algo como "para
falar sobre trabalho, é preciso saber o que é". Deu como exemplo os
portugueses que trabalham pelo salário mínimo. Ora o problema não reside na
questão populista de saber se Passos alguma vez na vida teve de se levantar às
seis da manhã para ir para as filas de transportes públicos e para ganhar 485
euros antes de impostos. Sabemos que não, mas o essencial não é que nunca o
tenha feito, mas que desrespeite quem o faz. O essencial é que, havendo muitos
tipos de trabalho e de trabalhadores, o que Passos e companhia estão há dois
anos a fazer é a trabalhar para que o valor daquilo que fazem, do que são, seja
depreciado.
Para Passos, na sua
cabeça povoada por slogans pseudoliberais, o salário deve ser idealmente uma
coisa que depende do défice e dos juros da dívida e dos movimentos do mercado
(a começar pela taxa de desemprego), flutuando de acordo com as conveniências
do empregador e imune a quaisquer estipulações legais - essas só contam para
contratos com bancos e consultoras financeiras. É esse o exemplo que dá, o
sinal que transmite, enquanto empregador do sector Estado. O exemplo de quem
quer, um a um, anular todos os direitos conseguidos em décadas de luta (luta,
sim), do horário máximo de trabalho às férias pagas, do subsídio de desemprego
ao salário mínimo.
O que Passos pensa
do trabalho, de resto, ficou muito claro numa proposta que o seu PSD na
oposição apresentou, a de obrigar os de-sempregados a trabalhar de graça. O
trabalho como um castigo para madraços, como penitência; o trabalho como algo
que se impõe, não livre escolha mas sentença. Eis a essência do seu pensamento
- se tal se lhe pode chamar.
E por assim ser,
concordemos com ele nisto: precisamos de trabalho, do trabalho. Trabalhemos
juntos para o defender. E se greves gerais não resultam, puxemos pela cabeça.
Porque temos um Governo a trabalhar, dia e noite, contra ele - contra nós.
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