Pedro Bacelar de
Vasconcelos – Jornal de Notícias, opinião
Suscitou reações
indecentes e perversas a deliberação do Tribunal Constitucional que, a pedido
do Presidente da República, "condenou" o decreto do Governo que
pretendia excluir os trabalhadores do Estado do âmbito de proteção contra o
"despedimento sem justa causa" - uma garantia consagrada
universalmente na Constituição da República e na Carta dos Direitos
Fundamentais da União Europeia.
As insinuações de
irrealismo e de falta de bom senso endereçadas aos juízes pelo
primeiro-ministro são expressão inédita de grave irresponsabilidade política e
de uma cultura democrática deficitária. Outros membros do Governo, alguns
correligionários de serviço e certos comentadores oficiosos logo vieram em seu
socorro. Alguns apontaram a Constituição como a verdadeira causa dos repetidos
fracassos do Governo, outros acusaram os juízes que a interpretam, mas todos
decretaram, do alto da sua leviandade, a urgência de restringir os direitos
fundamentais que, segundo eles, não passariam de luxo supérfluo alimentado pela
abundância imerecida de que a pátria, ocasionalmente, desfrutou num passado
recente. Ocultando os erros próprios e a desregulação financeira internacional
de que são cúmplices, acusam agora o Tribunal Constitucional de proteger velhos
privilégios adquiridos à custa das gerações futuras. Afrontam a independência
judicial, degradam os serviços públicos e as instituições da administração que
deviam tutelar, incitam a população ativa contra os reformados, os mais novos
contra os mais velhos e os trabalhadores do setor privado contra os
funcionários públicos. Promovem a inveja e o medo e radicalizam todos os
conflitos, indiferentes ao risco de guerra civil que aflora no país.
O
"Estado" é uma comunidade de pessoas livres e iguais. É este o
sentido que a cultura europeia lhe conferiu há mais de 300 anos. Uma comunidade
de pessoas é algo que supõe uma "diferenciação identificadora" e um
"destino comum". Mas é a "liberdade" e a
"igualdade" dos seus membros que definitivamente impedem que a
comunidade e o território que habita se confundam com um mero atributo do
"príncipe", como um troféu de conquista, um valor permutável ou um
bem hereditariamente transmissível. E foi por este modo que os privilégios e
prerrogativas particulares de cada grupo social foram substituídos por direitos
universais, que os súbditos se transformaram em "povo soberano" e que
começou, por fim, a construção política do "Estado de Direito" e da
"Democracia Constitucional".
O respeito pela
dignidade humana inscreve-se no cerne desta nova conceção de comunidade
política e servirá de bandeira às lutas sociais que vão exigir o seu inevitável
alargamento, primeiro, às mulheres, aos trabalhadores dependentes, aos
analfabetos, depois, ao trabalho doméstico, aos prisioneiros de guerra, aos
refugiados e aos estrangeiros. Desde o "Manifesto do Partido
Comunista" de Marx e Engels, em 1848, a social-democracia foi um
protagonista histórico destes movimentos sociais. Os direitos humanos, nas suas
múltiplas formulações e proclamações, são a expressão solene de um compromisso
indissolúvel entre o bem comum e a liberdade, o interesse público e a autonomia
pessoal. É deste compromisso fundamental que o Tribunal Constitucional é o
supremo árbitro. É sua missão específica garantir a permanente atualização dos
valores incorporados na lei fundamental e, simultaneamente, protege-los da
vontade ou dos caprichos de maiorias legislativas conjunturais, porque as regras
do jogo democrático não podem variar ao sabor das conveniências dos titulares
do poder e porque os poderes delegados pelo voto são constitucionalmente
limitados e transitórios. A reforma do Estado seria a tarefa prioritária para
quem, de boa-fé, quisesse libertar o país do "resgate financeiro"
para que foi empurrado. Mas o Estado, para eles, é um preconceito obsoleto.
Apenas procuram novos expedientes para prosseguir o seu plano de empobrecimento
da sociedade portuguesa e a destruição sem critério das nossas instituições
públicas. A isto se reduz o debate sobre a Constituição que agora se lembraram
de inventar.
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