Ser contrário a um
bombardeio da Otan ou a uma invasão dos EUA não significa defender o regime de
Assad
Pascual Serrano, no
eldiario.es, traduzido por Jair de Souza e publicado no Viomundo – Revista Forum
Tudo parece indicar
que os EUA bombardearão a Síria nos próximos dias. É o que a mídia e a
diplomacia denominam eufemisticamente como “intervenção”.
Para começar,
devemos esclarecer que temos a humildade de reconhecer que, embora pareça
indiscutível que houve um massacre por armas químicas, não sabemos quem foram
os responsáveis.
É por isso que a
ONU enviou inspetores à região.
Ignorado isto,
podemos apresentar algumas deduções lógicas.
A primeira delas é
o princípio estabelecido no Direito Romano e utilizado em criminalística de
“cui prodest” (quem se beneficia?).
Há semanas que na
agenda das potências ocidentais e de seus subordinados árabes estão as
acusações contra o governo sírio pelo uso de armas proibidas.
O mais absurdo que
poderia fazer esse governo seria assassinar um milhar de civis, incluindo
crianças, num bairro que não faz parte da frente de combate e, assim, pôr na
bandeja a justificativa para uma intervenção militar dos EUA ou da OTAN.
Ou seja, a resposta
de “quem se beneficia” com o massacre por agentes químicos aponta os
partidários dessa intervenção militar contra a Síria.
O que comprovamos a
seguir foi a rápida difusão da notícia assinalando a autoria do governo sírio.
Tão rápida que já
no dia 21 a mídia internacional estava informando sobre um massacre de 650
pessoas cometido pelo exército sírio utilizando como fonte informativa um tuíte
da oposição síria, nada mais!
Não me vem à cabeça
nenhum agente social que possa conseguir ser manchete mundial com apenas um
tuíte.
Imediatamente, os
governos que vêm externando seu apoio aos rebeldes sírios começaram a exigir a
presença dos inspetores na zona para confirmar o ataque e determinar seus
responsáveis, e acusaram o governo sírio de não colaborar.
No entanto, quatro
dias depois, esse governo estava autorizando a presença dos inspetores e
dotando-os de escolta para seu deslocamento à zona.
Ao se dirigirem ao
terreno, estes inspetores sofrem um tiroteio. Novamente, o governo é acusado da
responsabilidade dos disparos de franco-atiradores sobre a comitiva.
Seria uma coisa
curiosa que um dos lados escolte alguns inspetores da ONU e, ao mesmo tempo,
dispare contra eles.
À continuação, os
mesmos que exigiam a presença de inspetores dizem que já é tarde, que não
precisam dos inspetores.
Sem esperar as
conclusões da equipe de investigadores das Nações Unidas, o secretário de
Defesa estadunidense, Chuck Hagel, diz que já têm a informação de inteligência
que demonstrará que “não foram os rebeldes e que o governo sírio foi o
responsável”.
Não adianta nada
que o governo sírio negue isto, ou que Médicos sem Fronteiras afirmem que “não
podem determinar a autoria do ataque”.
A informação do
governo sírio, difundida pela televisão nacional desse país, assegurando que o
exército localizou no dia 24 um depósito dos opositores armados em Jobar,
localidade na periferia de Damasco, onde encontrou vários barris de agentes
tóxicos com a inscrição “feito na Arábia Saudita”, além de máscaras antigas e
pastilhas para neutralizar os efeitos da exposição a tais agentes químicos, só
a Prensa Latina difundiu essa notícia.
O governo que mais
mortes já provocou na história por armas atômicas (Hiroshima e Nagasaki) e por
armas químicas (agente laranja no Vietnam) é o que se apresenta como protetor
mundial contra os danos dessas armas.
O governo que
iniciou uma guerra no Iraque, a qual ainda está em andamento, justificada por
umas armas de destruição massiva que não existiam, agora propõe fazer o mesmo
por umas armas químicas fundadas nas mesmas provas.
A sensação de dejá
vu com a invasão do Iraque é inevitável. Naquele então, pediram inspetores e,
quando estes se encontravam no terreno, obrigaram-nos a sair precipitadamente
porque começavam a bombardear.
São os mesmos
governos que se ampararam numa resolução da ONU para proteger os líbios e
acabaram bombardeando a comitiva do presidente para que uma turba de
mercenários o linchasse e postasse o vídeo na internet.
É a mesma OTAN que
bombardeou a Yugoslávia sem autorização do Conselho de Segurança argumentando
uma limpeza étnica que os legistas demonstraram ser falsa e que, uma vez mais,
voltarão a fazê-lo na Síria sem se importar com a legislação internacional.
Os mesmos países
que invadiram o Afeganistão para liberar as mulheres dos talibã, as quais hoje
continuam sendo lapidadas, e o país aumentando seu recorde de produção de ópio,
corrupção e pobreza.
A todas essas
pessoas bem-intencionadas que dizem que não podemos permanecer impassíveis
diante do massacre de centenas de civis na Síria devemos explicar que esses
libertadores, que esgrimem o direito de proteger, a defesa dos direitos humanos
e a implantação da democracia, carregam antecedentes em excesso para que
possamos acreditar em suas boas intenções.
Como ressalta Jean
Bricmont (Imperialismo humanitário. O uso dos Direitos Humanos para vender a
Guerra, El Viejo Topo, 2008), estamos vendo que grande parte do discurso ético
da esquerda considera a necessidade de exportar a democracia e os direitos
humanos lançando mão das intervenções militares do primeiro mundo, e tacham de
relativistas morais e indiferentes ao sofrimento alheio àqueles que criticam
essas ingerências.
De modo que é
precisamente essa esquerda a que inventa e interioriza “a ideologia da guerra
humanitária como um mecanismo de legitimação”.
É um erro
argumentar que existem governos bons – que podem invadir – e maus, que merecem
ser invadidos e derrubados.
Não nos esqueçamos
que, se aceitarmos essa opção, a invasão legítima, no fundo, estaremos
autorizando a do forte sobre o fraco.
Por acaso o Brasil
(tão democrático como os EUA) invadirá o Iraque para instaurar a democracia?
Aceitaríamos que o
Líbano bombardeasse Israel em caráter preventivo?
Recordemos que o
Líbano foi atacado algumas vezes por esse país e seu ataque preventivo estaria
muito fundamentado.
Esquecem-se também
que o poder sempre se apresenta como altruísta. Dizer que bombardeia a
Yugoslávia para impedir uma limpeza étnica, que invade o Afeganistão para
defender os direitos das mulheres, ocupa o Iraque para levar a democracia e
libertar o país de um ditador, ou ataca a Síria para derrotar um tirano não
difere muito do discurso da Santa Aliança para enfrentar as ideias do
Iluminismo que inspiraram a Revolução Francesa, ou do discurso de Hitler que
justificou sua invasão dos Sudetos checoslovacos para defender a minoria alemã.
Parece que essa
esquerda de fervor internacionalista humanitário se esquece que, já nos tempos
mais recentes, o intervencionismo estrangeiro ocidental, que vem a ser o mesmo
que dizer estadunidense, é o que apoiou Suharto contra Sukarno na Indonésia,
aos ditadores guatemaltecos contra Arbenz, a Somoza contra os sandinistas, aos
generais brasileiros contra Goulart, a Pinochet contra Allende, ao Xá do Irã
contra Mossadegh e aos golpistas venezuelanos contra Chávez.
Se se trata de
intervir para salvar vidas, bastaria “bombardear” muitos países da África com
tetra briks de leite, em lugar de bombas de fragmentação.
Não é que estejamos
defendendo os talibã, Sadam, Gadafi, nem Al Assad.
Estar contra um bombardeio
da OTAN ou uma invasão estadunidense não exige um rechaço expresso a esses
regimes, como se buscasse protegê-los.
A questão que
devemos debater é a violação da legislação internacional por parte de uma
potência invasora — e as mentiras nas quais se ampara para justificá-la.
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Revista Forum
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