domingo, 1 de setembro de 2013

SÍRIA, UM FILME REPETIDO

 


Ser contrário a um bombardeio da Otan ou a uma invasão dos EUA não significa defender o regime de Assad
 
Pascual Serrano, no eldiario.es, traduzido por Jair de Souza e publicado no Viomundo – Revista Forum
 
Tudo parece indicar que os EUA bombardearão a Síria nos próximos dias. É o que a mídia e a diplomacia denominam eufemisticamente como “intervenção”.
 
Para começar, devemos esclarecer que temos a humildade de reconhecer que, embora pareça indiscutível que houve um massacre por armas químicas, não sabemos quem foram os responsáveis.
 
É por isso que a ONU enviou inspetores à região.
 
Ignorado isto, podemos apresentar algumas deduções lógicas.
 
A primeira delas é o princípio estabelecido no Direito Romano e utilizado em criminalística de “cui prodest” (quem se beneficia?).
 
Há semanas que na agenda das potências ocidentais e de seus subordinados árabes estão as acusações contra o governo sírio pelo uso de armas proibidas.
 
O mais absurdo que poderia fazer esse governo seria assassinar um milhar de civis, incluindo crianças, num bairro que não faz parte da frente de combate e, assim, pôr na bandeja a justificativa para uma intervenção militar dos EUA ou da OTAN.
 
Ou seja, a resposta de “quem se beneficia” com o massacre por agentes químicos aponta os partidários dessa intervenção militar contra a Síria.
 
O que comprovamos a seguir foi a rápida difusão da notícia assinalando a autoria do governo sírio.
 
Tão rápida que já no dia 21 a mídia internacional estava informando sobre um massacre de 650 pessoas cometido pelo exército sírio utilizando como fonte informativa um tuíte da oposição síria, nada mais!
 
Não me vem à cabeça nenhum agente social que possa conseguir ser manchete mundial com apenas um tuíte.
 
Imediatamente, os governos que vêm externando seu apoio aos rebeldes sírios começaram a exigir a presença dos inspetores na zona para confirmar o ataque e determinar seus responsáveis, e acusaram o governo sírio de não colaborar.
 
No entanto, quatro dias depois, esse governo estava autorizando a presença dos inspetores e dotando-os de escolta para seu deslocamento à zona.
 
Ao se dirigirem ao terreno, estes inspetores sofrem um tiroteio. Novamente, o governo é acusado da responsabilidade dos disparos de franco-atiradores sobre a comitiva.
 
Seria uma coisa curiosa que um dos lados escolte alguns inspetores da ONU e, ao mesmo tempo, dispare contra eles.
 
À continuação, os mesmos que exigiam a presença de inspetores dizem que já é tarde, que não precisam dos inspetores.
 
Sem esperar as conclusões da equipe de investigadores das Nações Unidas, o secretário de Defesa estadunidense, Chuck Hagel, diz que já têm a informação de inteligência que demonstrará que “não foram os rebeldes e que o governo sírio foi o responsável”.
 
Não adianta nada que o governo sírio negue isto, ou que Médicos sem Fronteiras afirmem que “não podem determinar a autoria do ataque”.
 
A informação do governo sírio, difundida pela televisão nacional desse país, assegurando que o exército localizou no dia 24 um depósito dos opositores armados em Jobar, localidade na periferia de Damasco, onde encontrou vários barris de agentes tóxicos com a inscrição “feito na Arábia Saudita”, além de máscaras antigas e pastilhas para neutralizar os efeitos da exposição a tais agentes químicos, só a Prensa Latina difundiu essa notícia.
 
O governo que mais mortes já provocou na história por armas atômicas (Hiroshima e Nagasaki) e por armas químicas (agente laranja no Vietnam) é o que se apresenta como protetor mundial contra os danos dessas armas.
 
O governo que iniciou uma guerra no Iraque, a qual ainda está em andamento, justificada por umas armas de destruição massiva que não existiam, agora propõe fazer o mesmo por umas armas químicas fundadas nas mesmas provas.
 
A sensação de dejá vu com a invasão do Iraque é inevitável. Naquele então, pediram inspetores e, quando estes se encontravam no terreno, obrigaram-nos a sair precipitadamente porque começavam a bombardear.
 
São os mesmos governos que se ampararam numa resolução da ONU para proteger os líbios e acabaram bombardeando a comitiva do presidente para que uma turba de mercenários o linchasse e postasse o vídeo na internet.
 
É a mesma OTAN que bombardeou a Yugoslávia sem autorização do Conselho de Segurança argumentando uma limpeza étnica que os legistas demonstraram ser falsa e que, uma vez mais, voltarão a fazê-lo na Síria sem se importar com a legislação internacional.
 
Os mesmos países que invadiram o Afeganistão para liberar as mulheres dos talibã, as quais hoje continuam sendo lapidadas, e o país aumentando seu recorde de produção de ópio, corrupção e pobreza.
 
A todas essas pessoas bem-intencionadas que dizem que não podemos permanecer impassíveis diante do massacre de centenas de civis na Síria devemos explicar que esses libertadores, que esgrimem o direito de proteger, a defesa dos direitos humanos e a implantação da democracia, carregam antecedentes em excesso para que possamos acreditar em suas boas intenções.
 
Como ressalta Jean Bricmont (Imperialismo humanitário. O uso dos Direitos Humanos para vender a Guerra, El Viejo Topo, 2008), estamos vendo que grande parte do discurso ético da esquerda considera a necessidade de exportar a democracia e os direitos humanos lançando mão das intervenções militares do primeiro mundo, e tacham de relativistas morais e indiferentes ao sofrimento alheio àqueles que criticam essas ingerências.
 
De modo que é precisamente essa esquerda a que inventa e interioriza “a ideologia da guerra humanitária como um mecanismo de legitimação”.
 
É um erro argumentar que existem governos bons – que podem invadir – e maus, que merecem ser invadidos e derrubados.
 
Não nos esqueçamos que, se aceitarmos essa opção, a invasão legítima, no fundo, estaremos autorizando a do forte sobre o fraco.
 
Por acaso o Brasil (tão democrático como os EUA) invadirá o Iraque para instaurar a democracia?
 
Aceitaríamos que o Líbano bombardeasse Israel em caráter preventivo?
 
Recordemos que o Líbano foi atacado algumas vezes por esse país e seu ataque preventivo estaria muito fundamentado.
 
Esquecem-se também que o poder sempre se apresenta como altruísta. Dizer que bombardeia a Yugoslávia para impedir uma limpeza étnica, que invade o Afeganistão para defender os direitos das mulheres, ocupa o Iraque para levar a democracia e libertar o país de um ditador, ou ataca a Síria para derrotar um tirano não difere muito do discurso da Santa Aliança para enfrentar as ideias do Iluminismo que inspiraram a Revolução Francesa, ou do discurso de Hitler que justificou sua invasão dos Sudetos checoslovacos para defender a minoria alemã.
 
Parece que essa esquerda de fervor internacionalista humanitário se esquece que, já nos tempos mais recentes, o intervencionismo estrangeiro ocidental, que vem a ser o mesmo que dizer estadunidense, é o que apoiou Suharto contra Sukarno na Indonésia, aos ditadores guatemaltecos contra Arbenz, a Somoza contra os sandinistas, aos generais brasileiros contra Goulart, a Pinochet contra Allende, ao Xá do Irã contra Mossadegh e aos golpistas venezuelanos contra Chávez.
 
Se se trata de intervir para salvar vidas, bastaria “bombardear” muitos países da África com tetra briks de leite, em lugar de bombas de fragmentação.
 
Não é que estejamos defendendo os talibã, Sadam, Gadafi, nem Al Assad.
 
Estar contra um bombardeio da OTAN ou uma invasão estadunidense não exige um rechaço expresso a esses regimes, como se buscasse protegê-los.
 
A questão que devemos debater é a violação da legislação internacional por parte de uma potência invasora — e as mentiras nas quais se ampara para justificá-la.
 
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