Em entrevista à
Carta Maior, Rosa Cardoso, integrante da Comissão da Verdade, fala sobre os
trabalhos da comissão que entrega relatório final em dezembro.
Dario Pignotti -
@DarioPignotti – Carta Maior
Dizem que Rosa
Cardoso está entre as pessoas a quem Dilma Rousseff escuta com mais
atenção quando necessita de uma opinião sobre Direitos Humanos. A presidenta
sabe da lealdade de sua advogada defensora durante a ditadura a quem designou
como integrante da Comissão da Verdade que em dezembro apresentará seu informe
final. A doutora Cardoso não desperdiça o tempo: trabalha a pleno vapor para
concluir o relatório sobre os crimes da ditadura, que chama de “fábrica” de
mentiras, instalada há 50 anos com a derrubada do presidente João Goulart.
Apesar de sua agenda saturada de compromissos, Rosa conversou durante uma hora
com a Carta Maior, período no qual não evitou nenhum tema, abordando todos
de um modo direto, como quando, por exemplo, se referiu à atitude omissa dos
comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica frente aos delitos
perpetrados por seus colegas de armas nos anos de chumbo.
“Primeiro quero
dizer que até hoje as Forças Armadas devem um pedido de perdão à sociedade
brasileira, com o que estariam assumindo uma posição civilizada e democrática,
que é, afinal de contas, o que se espera dos militares no século 21.
Lamentavelmente, até agora, não recebemos nenhum sinal, nenhuma mensagem, que
nos indique que haja algum desejo, por parte dos militares, de pedir desculpas.
Assim como a Rede Globo, respondendo a motivos diversos e oportunistas,
inclusive a razões de mercado, fez uma autocrítica (sobre sua cumplicidade com
os militares), é preciso que as Forças Armadas façam uma autocrítica política
sobre seu comportamento”.
Ela prossegue:
“Até hoje os militares escondem o que ocorreu, nas escolas militares segue se
estudando uma versão fantasiosa do que aconteceu. Chama a atenção a capacidade
que têm de fabricar histórias e de mantê-las ao longo do tempo. Devem deixar de
dizer coisas inverossímeis. Eles continuam com a farsa do suicídio de Vladimir
Herzog e a versão absurda de que Rubens Paiva morreu em um enfrentamento. A
Constituição de 46 fez com que as Forças Armadas assumissem um papel como poder
moderador, uma visão que ainda perdura na corporação. Volta e meia algum
general enuncia essa ideia. O general Leônidas Pires ainda repete que as Forças
Armadas não deveriam estar submetidas ao poder civil”.
Anistia, Barbosa e STF
Há cerca de um ano, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa,
disse a correspondentes estrangeiros que era a favor que, em algum momento,
fossem revisados os alcances da Lei da Anistia, um assunto sobre o qual houve
posições divergentes dentro da própria Comissão da Verdade. Rosa Cardoso
avalia:
“A mudança de posição do STF sobre a auto-anistia vai depender muito da
mobilização da sociedade. Se a mobilização for importante, isso pode contribuir
para que haja uma mudança de posição dos ministros. Há ministros sensíveis à
opinião pública. Em minha opinião, essa mobilização poderá ocorrer a partir da
apresentação do informe da Comissão que ocorrerá em dezembro. Não sei se o STF
vai dar esse passo sobre a auto-anistia em 2014, ano do cinquentenário do
golpe. Talvez dê, talvez não dê. Mas não considero adequado que, neste momento,
os integrantes da Comissão da Verdade iniciem uma luta contra a auto-anistia no
STF. Mas creio que, necessariamente, dentro das considerações finais de nosso
relatório, deve se recomendar o cumprimento de uma sentença da Corte
Interamericana de Direitos Humanos, a qual somos obrigados a cumprir, que
questiona essa auto-anistia”.
A advogada prossegue:
“A Corte Interamericana se pronunciou sobre o Araguaia, dizendo que o Brasil
tem que punir os crimes de lesa humanidade que são imprescritíveis, como a
tortura, a desaparição e o ocultamento de cadáver. Os trabalhos da Comissão terminam
em dezembro. Ia ser até maio. Nosso desafio é enfrentar todas as tarefas e
realiza-las, principalmente escutar as vítimas, dar-lhes voz, escutar todas as
pessoas interessadas, ver todo o material nos arquivos estaduais e no Arquivo
Nacional. É preciso trabalhar na elaboração das recomendações enlaçando o
passado e o presente, a revisão dos currículos das escolas públicas, das
escolas militares, das escolas de polícia. Temos que fazer audiências
exemplares porque não podemos cumprir todos os casos dos torturadores. Temos
que aprofundar a investigação sobre a Casa da Morte de Petrópolis, que era um
centro de extermínio. Talvez tenha sido o mais importante centro de extermínio.
Temos que fazer uma audiência na Casa da Morte, uma audiência no Araguaia, uma
audiência sobre o Riocentro, que é o exemplo mais claro das farsas montadas”.
Washington, 1964: converter o Brasil e um Vietnã
Rosa Cardoso falou também sobre o golpe de 1964:
“O golpe foi realizado pela elite militar, não por todos os militares, mas
muitos dos que participaram da deposição do presidente Goulart em 64 haviam
participado em outras conspirações que serviram como ensaio. Por exemplo, a que
se fez contra Getúlio Vargas. É preciso lembrar que Getúlio se suicidou para
evitar um golpe. Mais tarde, os militares quiseram impedir que Juscelino
assumisse o governo. Houve outra tentativa de golpe quando se quis impedir que
Goulart assumisse em 1961”.
“Na Comissão da Verdade, estamos revisitando o golpe. É importante a
reconstrução desde uma ótica própria, revisar essa ditadura tão longa que
deixou tantas marcas profundas. A recente liberação de documentos e a
possibilidade de reconstruir a história oral ouvindo as vítimas permitem que
abordemos outros ângulos. Cada vez fica mais evidente a participação no golpe a
partir da penetração norte-americana desde o final da Segunda Guerra,
compreender a visão estratégica que os Estados Unidos tinham acerca do Brasil e
o que queriam do Brasil. Desde os anos 50, os Estados Unidos exigiam posições e
pressionavam os governos brasileiros para que se alinhassem a Washington. Os
EUA chegaram a planejar uma guerra civil, como a das duas Coreias, ou a do
Vietnã, contando com o apoio de alguns membros das forças de segurança.
Interessava a eles dividir o país. Isso quebraria a hegemonia do Brasil na
América Latina. Chegaram a escolher Minas Gerais como estado independente do
resto”.
Obama e Kissinger
Rosa Cardoso nos recebeu em um escritório simples, sem adornos ou móveis
suntuosos, pertencente à Presidência da República. Ela desmente a ideia,
propalada na imprensa tradicional, de que a ditadura é uma peça do passado e,
como exemplo de sua atualidade, conta que o governo de Barack Obama não prestou
apoio à Comissão da Verdade, seguramente pressionado por grupos de interesse e
ex-líderes como Henry Kissinger, de larga e suspeita amizade com o chanceler
Azeredo da Silveira (1974-1979) e, sobretudo, fiador do Plano Condor.
“Nós pedimos formalmente documentos aos Estados Unidos, por meio do Itamaraty,
no início de nossa atividade como Comissão da Verdade, e até hoje não recebemos
nenhuma resposta. Pensamos que na visita da presidenta Dilma (prevista para
outubro do ano passado) seria possível apresentar outra vez o pedido, creio a
presidenta estaria de acordo em respaldar essa solicitação, mas a viagem foi
suspensa em protesto contra a espionagem dos Estados Unidos. Seja como for,
creio que em alguns meses será propício pedir novamente documentos aos EUA e
seja possível se chegar a um entendimento para que o próximo governo possa
retomar esse requerimento também”.
“Você pergunta por que é tão demorada a liberação de papeis sobre a ditadura
brasileira, que é a caixa preta do período do Condor. Essa talvez seja uma
manobra protelatória para proteger personagens vivos. É uma suposição, mas é
uma suposição racional imaginar que se proteja personagens como Kissinger. É
claro que isso é possível. Nós temos documentos que não deixam dúvida sobre
isso (a cumplicidade de Kissinger com o Plano Condor). Até agora conhecemos
muito poucos documentos sobre a operação Condor, resta muito por conhecer sobre
a participação de Kissinger nessa rede terrorista. O Plano Condor é o momento
mais revelador do terrorismo de estado, em uma plano que revela claramente a
índole da ditadura. Seguramente há documentos secretos muito importantes. Tive
acesso a alguns papeis publicados por uma professora norte-americana que mostra
o quanto Kissinger sabia e estava envolvido”.
Tradução: Louisa Antônia León
Créditos da foto: Arquivo
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