quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

LEGITIMIDADE, LEGALIDADE E PROCESSO DE EMANCIPAÇÃO

 

Rui Peralta, Luanda
 
I - Entre guerra e direito existem quatro tipos de relações: 1) A guerra como meio; 2) A guerra como objecto do direito; 3) A guerra como fonte de direito; 4) a guerra como antítese do direito. Do ponto de vista do direito internacional as suposições 1) e 2) – a guerra como meio (estabelecendo o direito) e a guerra como objecto do direito (juridicamente regulamentada) – são as tradicionais, sendo a 3) e a 4) – a guerra como fonte de direito e a guerra como a antítese do direito – suposições originadas pela (e na) crise das doutrinas tradicionais do direito internacional.
 
As doutrinas tradicionais sempre debateram a justa causa das guerras (e consequentemente a questão da guerra justa) e a regulamentação da conduta na guerra. Este debate comporta consigo as duas raízes doutrinais: a legitimidade e a legalidade da guerra. A guerra justa é legítima e a regulamentação da conduta dos participantes no campo de batalha é legal. Esta distinção assume relevo porque podem existir guerras legítimas (guerra por justa causa) mas sem serem legais, e podem existir guerras que respeitem as normas e regulamentações, mas que careçam de legitimidade (guerras injustas). Assim, as guerras poderão classificar-se (no âmbito da relação entre guerra e direito) como: a) guerras legítimas e legais; b) guerras legítimas e ilegais; c) guerras ilegítimas e legais; d) guerras ilegítimas e ilegais. 
 
A legitimidade é um processo de justificação e as acções podem ser justificadas a partir do seu fundamento ou pelo seu objectivo. A legitimação de uma guerra justa é sempre realizada pelo seu objectivo. A guerra torna-se um meio necessário ao restabelecimento do direito, ou seja, a guerra é o meio enquanto o direito é o fim, o objectivo. Mas a guerra justa, legítima, pode ser realizada de duas formas: a legal (respeitando as convenções) e a ilegal (caso das guerrilhas, movimentos de resistência armada, etc.).
 
A legalidade da guerra torna-a objecto de regulação jurídica, ou seja, a guerra é objecto de direito. Para que a guerra surja como um facto jurídico total (para que seja legal e legítima) é condição necessária que o direito surja como fim e como meio, ou seja, o complexo das operações componentes da guerra têm de estar voltados para o fim último (restabelecimento do direito violado) e estejam, em simultâneo, disciplinadas por regras jurídicas.
 
As normas reguladoras de comportamentos que têm por finalidade o restabelecimento de um direito violado são normas secundárias, ou seja, normas que conservam a ordem jurídica. A guerra quando realizada sobre o pressuposto da legalidade é, assim, uma forma de conservar a ordem jurídica. Mas quando se refere que a guerra é um meio de restabelecimento do direito, entende-se por direito o conjunto das regras primárias (aquelas normas cuja observância pode ser efectuada pela força, as normas reforçadas, que podem recorrer ao uso da força). Apenas quando entendemos por direito o conjunto das normas primárias e secundárias é que a guerra surge como meio (em relação ás normas primárias) e como conteúdo (em relação ás normas secundárias).
 
II - Estas duas doutrinas tradicionais (legitimidade e legalidade da guerra) desmoronam-se, fragmentam-se, desde a I Guerra Mundial e foram substituídas por duas novas relações: a guerra como fonte de direito e a guerra como antítese do direito. O primeiro destes modelos (a guerra como fonte de direito), parte do princípio de que a guerra é geradora de um direito novo, de uma nova ordem internacional. Esta relação está para as relações internacionais assim como as revoluções e as guerras civis apresentam-se no plano interno. O que muda neste conceito é a legitimidade, ou melhor, o critério de legitimidade. A guerra continua a ser considerada em função do direito, não para restabelecer um direito violado, mas sim para instaurar um novo direito.
 
O modelo que considera a guerra como antítese do direito assume que a guerra está para além deste, que está fora de qualquer controlo jurídico e onde quer que apareça ou sob que forma se manifeste, derruba o direito. Nesta concepção o direito é assumido como sendo um conjunto de regras ordenadas que têm por fim a paz. Onde avança o direito, avança a paz e recua a guerra. A vitória do direito consistiria, assim, na eliminação das relações de força desregulada, de que a guerra é a mais elevada expressão.
 
Pode, portanto, estabelecer-se um esquema que resuma as diversas justificações da guerra segundo estes parâmetros: Todas as guerras são boas (representada pela teoria da guerra como fonte de direito), é um pressuposto conducente ao belicismo absoluto; Todas as guerras são más (representada pela teoria da guerra como antítese do direito), é um pressuposto conducente ao pacifismo absoluto; As guerras podem ser boas ou más (esta a teoria tradicional, suportada pelas questões da legitimidade e da legalidade), é o pressuposto da guerra justa (o caso das guerras de libertação nacional) e do comportamento normativo na condução da guerra (a respeitabilidade das convenções internacionais, conducentes a uma “humanização” da guerra).
 
III - Vejamos agora como estas relações entre guerra e direito estão representadas na guerra de agressão movida á Síria. É nas cimeiras, nas reuniões internacionais e nos meetings, que estas relações ficam expostas, embora por detrás das intenções e dos ponderados compromissos negociados ou das invitáveis rupturas assumidas. A cimeira em curso na cidade de Genebra, ao fim de cinco dias, ainda não tinha representado qualquer “avanço importante”, segundo as palavras do mediador principal Lakhdar Brahimi. De facto o único avanço realizado tem sido em desacordos e acusações e os resultados estão longe das pretensões de Brahimi, que pretende alcançar um cessar-fogo, primeiro passo para um eventual acordo que termine com uma guerra que já provocou mais de 130 mil mortos e cerca de 6 milhões e meio de refugiados e desalojados.
 
As delegações do governo sírio e da oposição (representada pela Coligação Nacional Síria - CNS) acusam-se mutuamente. Os oposicionistas sentem-se desconfortados pelo facto da delegação governamental impor uma lista de princípios, controlando desta forma as conversações, impondo as suas condições e desviando o processo de negociação dos seus objetivos. A oposição aspira á criação de um órgão de governo transitório que substitua o actual governo do BAAS, que governa desde a década de 60.
 
Por sua vez o governo sírio questiona as propostas da oposição por não comtemplarem um processo de transição controlada, em que Bashar al-Assad tenha um papel preponderante. A delegação governamental síria comprometeu-se a permitir a saída de mulheres e crianças da cidade de Homs, cercada desde o início do ano passado, assim como deu acesso á assistência por parte da ONU, que enviou de imediato um carregamento humanitário (com alimentos e remédios) para mais de duas mil e quinhentas pessoas. No entanto o comboio está a guardar autorização de entrada, perto no Líbano, na zona fronteiriça. Faisal Makdad, um dos responsáveis da delegação síria, rechaçou qualquer responsabilidade do seu governo no bloqueio á cidade de Homs e da respectiva crise humanitária, pedindo, ainda, garantias á ONU de que o comboio humanitário não cairá em mãos das milícias oposicionistas, que controlam o centro da cidade.
 
Por sua vez a oposição síria não fala a uma só voz. No interior do país os grupos não pertencentes ao CNS, recusaram-se a comparecer em Genebra. Hassan Abud, líder da Frente Islâmica (FI), apelou á delegação do CNS que abandonasse a cimeira (Genebra II, como é conhecida), considerando que é “uma falta de respeito á vida” comparecer às negociações com “os representantes de Bashar al-Assad”, e acusou o CNS de “vender o sangue dos mártires”. Antes do início da conferência a FI recusou qualquer solução politica até que o governo sírio “liberte os prisioneiros, termine com os bloqueios às cidades libertadas e termine com os bombardeamentos e expulse as milícias sectárias” (esta ultima exigência é uma clara referencia á presença da milícias do Hezbollah, que apoiam o governo sírio e o Presidente Bashar al-Assad). A FI exigiu ainda que a ONU tem de dar garantias de que não haverá “ingerências estrangeiras após a saída de Bashar”.
 
IV - Estamos pois na presença de uma negociação onde se interligam todos os factores de relacionamento entre guerra e direito. A legitimidade e a legalidade, a nova ordem internacional e a perspectiva de pacificação, todas interconectadas, buscando não somente uma solução (embora esta seja a perspectiva apresentada, busca de uma solução que permita a pacificação do país, como passo essencial para a resolução do conflito) mas as soluções consubstanciadas nas perspectivas dos actores do conflito: o governo sírio, os seus aliados, a oposição, os Estados do Golfo e o Ocidente, surgindo ainda nas negociações o eco dos grupos terroristas, através destes últimos (produtos criados pelos USA e pela NATO com o suporte financeiro – e capital humano, também – das monarquias do Golfo. Claro que estes produtos são gerados por factores inerentes ás dinâmicas internas da região, mas aproveitados pelos factores de dinâmica externa).
 
A legitimidade é uma relação que neste conflitos (como em todos os conflitos) os actores em campo (principais e secundários) revindicam: a legitimidade de salvaguarda da soberania nacional (por parte do governo sírio); a legitimidade de combater “a tirania” por parte da oposição; a legitimidade de apoiar o estado agredido (posição dos aliados do governo sírio, do Hezbollah á Rússia) e a legitimidade de apoiar “os rebeldes que legitimamente lutam contra a opressão” (posição das monarquias do Golfo e do Ocidente).
 
Já a legalidade é uma questão mais controversa. Ela apenas existe em pleno por parte do governo sírio (a sua acção é legitima e é legal) e por parte dos Estados aliados da Síria. Surge como controversa (podendo criar a posição legitima, mas ilegal) por parte das forças paramilitares que o apoiam (caso do Hezbollah ou das milícias curdas). Do lado da oposição, o seu posicionamento, do ponto de vista tradicional será visto como ilegal, mesmo que legitimo. Quanto aos seus aliados o acto de apoiar rebeldes pode ou não ser legal, conforme a legislação em vigor nos seus Estados. Misturam-se aqui duas posições: a legal e a ilegal. Estas relações originam, em Genebra II, as relações legítimas e legais (no caso dos aliados cuja legislação permite apoiar grupos rebeldes) as legítimas e ilegais (o caso do CNS, por exemplo). É evidente que os oposicionistas poderão enveredar por uma posição legalista, mas fora do contexto tradicional, já no contexto da nova ordem. Nesse quadro as posições invertem-se, mas também invertem-se as posições assumidas em torno da relação legitimidade. Criam-se então as linhas da legitimidade/ilegalidade e da ilegitimidade/legalidade, assumidas em função dos interesses dos actores, abrindo espaço á nova ordem e quebrando o cenário tradicional do direito internacional.
 
Cruzadas que foram as relações entre guerra e direito, fundamentadas na justificação legitimista e na ordem jurídica (legitima/legal, legitima/ilegal e ilegítima/legal), resta a ultima: a ilegítima e ilegal. Mas esta, obviamente não está presente em Genebra II e apenas faz-se ouvir nos corredores. Está nesta posição a FI, ou as redes da Al-Qaeda na região e as milícias da extrema-direita sunita. Obviamente que esta é uma posição que não é compatível com as negociações, por uma razão muito simples: ilegítimo e ilegal é uma posição só para os joguetes e assumida apenas pelos peões de brega. Tem como função cansar o boi…
 
V - A questão da legalidade e da legitimidade assume particular importância na mudança política, principalmente quando esta mudança ultrapassa os mecanismos de alternância dos Estados de Direito. Para simplificar esta questão podemos seguir, a título de mero exemplo, os recentes acontecimentos no Egipto. O governo egípcio (saído de um golpe de estado, ou seja consequência de um processo que ultrapassa os mecanismos da ordem jurídica) anunciou o adiamento das eleições presidenciais, que serão realizadas em Abril deste ano e decidiu apresentar como candidato o marechal Abdel Fatah al-Sisi, Chefe do Estado Maior das Forças Armadas e Ministro da Defesa.
 
Após a indicação do candidato governamental, o presidente interino (e primeiro mandatário da campanha de Sisi), Adli Mansur, anunciou que a campanha presidencial decorrerá antes das eleições legislativas e avisou que o executivo egípcio tomará, se necessário, “medidas excepcionais”. Foi também anunciado que a Comissão Eleitoral Suprema recebeu instruções para preparar as inscrições dos candidatos.
 
A recente constituição prevê que as eleições legislativas sejam realizadas antes das eleições presidências, mas o governo decidiu adiantar as presidenciais, provavelmente devido ao facto do recém-nomeado marechal Sisi (ex-general) gozar de uma crescente popularidade. No entanto o triunfo alcançado pelo governo no referendo constitucional poderá ser enganador, se for levado em conta que votaram apenas cerca de 40% dos eleitores (embora esta seja a participação habitual no Egipto). A este factor (que é demasiado empolgado pela Irmandade Muçulmana – IM - e pela imprensa internacional e que poderá não ser relevante) deve ser adicionada alguma conflitualidade política e social. Os apoiantes do ex-presidente Morsi continuam a convocar acções de protesto contra o derrube do ex-presidente e a IM comemora nas ruas o 3º aniversário da queda de Hosni Mubarak. Por outro lado (e aqui as novas autoridades egípcias deverão ter atenção) os sindicatos egípcios (que foram decisivos na queda de Morsi e do governo da IM) têm manifestado algum descontentamento com a política social seguida pelo actual governo.
 
Segundo o Ministério da Saúde, os recentes choques entre a IM e as forças de segurança (e entre a IM e os apoiantes de Sisi), saldam-se em cerca de 50 mortos e 250 feridos, sendo o Cairo e Minya (uma importante cidade a sul do país) as cidades onde alguma instabilidade é manifesta. No ultimo domingo do mês de Janeiro a IM homenageou as vitimas dos enfrentamentos com as forças de segurança, mobilizando milhares de manifestantes, que ocuparam as ruas da capital egípcia, enquanto a Amnistia Internacional assinalava que o Egipto assiste a uma “escalada quantitativa e qualitativa em matéria de violações contra os direitos humanos, desde o derrube de Morsi”, uma atitude algo suspeita se for levado em conta que a AI nunca se manifestou sobre as violações cometidas durante o governo da IM.
 
VI - O novo poder egípcio assumiu as suas funções de forma legítima (em consequência dos protestos populares contra o governo de Morsi), mas não legal (não representou uma alternância de poder, dentro dos parâmetros constitucionais egípcios). Se a questão da legitimidade do poder, apesar de ser contestada (obviamente pela IM e pelos apoiantes, internos e externos, de Morsi), pode ser fundamentada através do descontentamento popular contra o anterior governo, já a legalidade do novo poder sairia maculada caso não existissem alterações na ordem constitucional. E assim aconteceu. A Constituição egípcia foi alterada e submetida a referendo, ou seja, submetida á decisão da soberania popular. Desta forma os egípcios resolveram o problema, transformando um golpe de estado ilegítimo em legitimo, ao ser suportado pela legitimidade da rua, ou seja, pela soberania popular directa. Resolvido o problema da legitimidade, o novo governo avançou na questão da legalidade (para duplo desespero de Morsi e da IM e também para os seus aliados externos).
 
A questão da legalidade é, em caso de mudança efectiva dos paradigmas, uma questão falsa (e o Egipto, embora não tenha alterado o paradigma, procedeu como se assim fosse). A legalidade funciona a título de conservação de um determinado sistema, para que o sistema evolua gradualmente, mas sempre nos parâmetros previamente definidos pela ordem jurídica. Assim são criados três pares de opostos, em função da mudança: legalidade/ilegalidade, gradualismo/simultaneidade e por último o binómio parcialidade/globalidade.
 
A razão pela qual o conceito de revolução não é um conceito legalista, está ligado ao facto de a revolução implicar uma mudança de ordem, de instauração de uma nova ordem, o que implica a destruição da ordem até aí em vigor. Como é evidente esta mudança não pode ser efectuada no respeito pelas “regras do jogo”, até porque nas regras está sempre implícito que a ordem não pode mudar no seu todo, ou seja, é implícito a proibição (expressa ou não) de mudar a globalidade da ordem e substitui-la por outra.
 
Desta forma a alternância de poder nas democracias formais (politicas) é sempre legal, gradual e parcial. Legal porque é a alteração permitida, gradual porque não vai alterar o paradigma e parcial porque apenas vai provocar pequenas alterações ou alterações de baixa amplitude e não uma mudança na totalidade da ordem em vigor. Ao contrário o projecto revolucionário implica a ilegalidade (uma vez que pretende uma mudança de paradigma), assume-se pela simultaneidade (as transformações não se sucedem em cadeia evolutiva, gradual, mas sim de forma aparentemente caótica, como o magma que desce de um vulcão) e é feito na globalidade, ou seja implica a transformação de toda a ordem anterior e não apenas de alterações de pequenas parcelas da ordem.
 
A passagem de um sistema para outro não pode ocorrer utilizando as regras do sistema precedente, pois estas apenas permitiriam a evolução do sistema (a reforma) mas não a sua alteração. A substituição de um paradigma por outro implica a escolha de um novo sistema, que é incompatível com o anterior, pelo que não pode ser determinada pelos procedimentos de avaliação do paradigma que está a ser colocado em questão. Logo toda a transformação é ilegal e criadora de uma nova legalidade, que assentará sobre os escombros do anterior conjunto normativo.
 
VII - A política interna é hoje (basta olhar para os dois exemplos apontados: a Síria e o Egipto, mas pode-se, também, referir o caso recente da Ucrânia) mais do que em qualquer outra época, determinada pela política internacional e pela constelação de interesses das potências hegemónicas (a crescerem em numero, se atendermos a que as mais recentes potencias regionais, assumem, desde a sua incubação, o factor hegemónico, utilizando as camuflagens oferecidas pelas variantes do “nacionalismo económico”), constelação em que os Estados não-hegemónicos são obrigados a viver. E escrevo “obrigados” porque a posição de um Estado não-hegemónico nunca é objecto de livre escolha (pelo menos a partir de uma determinada esfera de influência) do governo desse Estado e muito menos da soberania popular. A não-governabilidade do sistema internacional (composto por dinâmicas de larga amplitude) assenta duros golpes no sistema interno (assente em dinâmicas criadas por particularidades históricas e culturais).
 
A politica internacional - se é que hoje podemos falar em “politica internacional” e se não deveríamos determinar as Relações Internacionais a partir da única realidade dominante na sociedade actual: a Economia. Aliás as politicas externas seguidas por muitos Estados no âmbito diplomático é já uma “diplomacia do negócio”, assente na realidade actual das Relações Internacionais, numa perspectiva Geoeconómica - é vedada aos cidadãos e é uma esfera reservada (de facto e de direito) ao executivo (as “Relações Exteriores”, ou “Negócios Estrangeiros”), onde as razões de Estado, os segredos de Estado e os serviços secretos (estes, muitas das vezes, ligados a serviços secretos de outras nações, numa rede subterrânea de canais de informação e de infiltração) gozam de plena liberdade de movimentos, sem qualquer controlo por parte dos cidadãos, passando estes da condição de soberanos, a súbditos.
 
Nos países onde a debilidade da máquina administrativa do Estado é acentuada (caso da maioria dos governos africanos), estes serviços estão centrados nos Ministérios do Interior de cada Estado, misturados com as Policias e com os instrumentos de controlo de estrangeiros e de migração, criando uma estrutura que quanto mais debilitado e ténue seja o quadro administrativo da organização do Estado, mais poder tem a instituição que tutela os assuntos internos, tornando-se uma fonte de passagem dos interesses estrangeiros e pontos fulcrais de infiltração. Geralmente os Estados débeis são pesadas máquinas burocráticas, que roçam o absurdo se atendermos á incipiência dos serviços públicos. Essa ineficaz, densa e numerosa burocracia é composta por clientela eleitoral e é uma forma de “política de emprego”, que tapa a peneira do subdesenvolvimento e permite que a população tenha esperança num futuro, que no final, está ausente. Claro que a corrupção actua aqui a todos os níveis. E é por aí que a penetração estrangeira, a ingerência das potências, o imperialismo e o neocolonialismo penetram. 
 
Em tudo o que é decidido nesta esfera (a Politica internacional) a soberania popular é ignorada e espezinhada em função do subjectivo “interesse geral” ou “interesse nacional” (e também em função do “ consenso entre as nações”) e da subordinação da soberania popular á soberania nacional, como se esta não fosse soberana apenas em função da primeira. É a soberania popular que legitima a soberania nacional. Nenhuma nação é efectivamente soberana, se a soberania popular for inexistente, pois é esta que define o espaço soberano nacional, tanto na perspectiva territorial como na perspectiva da definição das políticas de defesa e de unidade nacionais e dos próprios interesses nacionais.
 
Ou seja, é a soberania popular o fundamento da legitimidade. Como tal só ela poderá decidir a ordem jurídica, ou seja definir a legalidade.
 
VIII - Não termino sem antes referir uma data Histórica do Povo Angolano: o 4 de Fevereiro.
 
O 4 de Fevereiro de 1961 foi o início da I Guerra de Libertação Nacional, a luta armada levada a cabo pelo Povo Angolano contra o colonial-fascismo português, fase que culmina com a proclamação da independência, a 11 de Novembro de 1975, um longo período de 14 anos.
 
Também aqui as noções de legitimidade e de legalidade, de guerra justa, da guerra como fonte e como antítese do direito, se colocam. A legitimidade do 4 de Fevereiro assenta na decisão popular de travar a luta armada. Esta foi a primeira manifestação decisiva da soberania popular nacional. A soberania popular foi a razão e o objectivo da independência nacional, o seu fundamento, a resposta dada pelo Povo Angolano á pergunta que já na época assolava o movimento de libertação nacional no continente africano: a independência para quem?
 
A proclamação da independência e a criação da Republica Popular de Angola comportam os princípios da soberania popular manifestados em 4 de Fevereiro de 1961: uma independência assente no Poder Popular, um “governo operário e camponês” nas palavras do Presidente Agostinho Neto, fundador da Nação Angolana - líder do movimento de libertação nacional (um dos líderes mais proeminentes dos movimentos de libertação nacional africanos) e primeiro Presidente da Angola independente – uma independência construída em função dos interesses populares e da melhoria das condições de vida (saúde, educação, habitação), um Estado fundamentado nas premissas da defesa dos interesses do povo, das liberdades e garantias dos cidadãos e nos direitos dos trabalhadores. Desta forma foi criada uma nova ordem jurídica e assumida a legalidade.
 
As premissas do 4 de Fevereiro de 1961 foram o princípio do Poder Popular em Angola: a construção de uma sociedade justa e solidária, controlo da produção pelos trabalhadores, soberania dos recursos, edificação de um Estado eficaz na defesa da soberania nacional, edificação de um sector público forte e eficiente, criação de uma máquina administrativa, não burocratizada, controlada pelo Poder Popular e uma política externa baseada nos princípios da não-ingerência e da solidariedade internacionalista.
 
Foram estas premissas assumidas? Foram, sem dúvida, enunciadas, proclamadas e algumas delas, iniciado o seu processo de implementação (a proclamação de Angola como trincheira firme da revolução em África, representa a continuidade do 4 de Fevereiro e a implementação da soberania popular, proclamação que implica a aplicação dos princípios emancipadores assumidos na luta de libertação nacional).
 
Se foram continuadas? Isso são outros 500 (não de Kwanzas, mas de dólares, euros, libras esterlinas e em alguns casos – a representação da máxima degenerescência e imbecilização do “homem novo” criado não pela Revolução, mas pela economia de mercado - de patacas e outros “vis e sonantes metais”).
 
Fontes
Bobbio, Norberto Sul principio di legittimitá Ed. Giapichelli, Turim, 1970.
Gavazzi, G. Norme primarie e norme secundarie Ed. Giapichelli, Turim, 1967.
 

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