Rui Peralta, Luanda
I - Entre guerra e
direito existem quatro tipos de relações: 1) A guerra como meio; 2) A guerra
como objecto do direito; 3) A guerra como fonte de direito; 4) a guerra como
antítese do direito. Do ponto de vista do direito internacional as suposições
1) e 2) – a guerra como meio (estabelecendo o direito) e a guerra como objecto
do direito (juridicamente regulamentada) – são as tradicionais, sendo a 3) e a
4) – a guerra como fonte de direito e a guerra como a antítese do direito –
suposições originadas pela (e na) crise das doutrinas tradicionais do direito
internacional.
As doutrinas
tradicionais sempre debateram a justa causa das guerras (e consequentemente a
questão da guerra justa) e a regulamentação da conduta na guerra. Este debate
comporta consigo as duas raízes doutrinais: a legitimidade e a legalidade da
guerra. A guerra justa é legítima e a regulamentação da conduta dos
participantes no campo de batalha é legal. Esta distinção assume relevo porque
podem existir guerras legítimas (guerra por justa causa) mas sem serem legais,
e podem existir guerras que respeitem as normas e regulamentações, mas que
careçam de legitimidade (guerras injustas). Assim, as guerras poderão classificar-se
(no âmbito da relação entre guerra e direito) como: a) guerras legítimas e
legais; b) guerras legítimas e ilegais; c) guerras ilegítimas e legais; d)
guerras ilegítimas e ilegais.
A legitimidade é um
processo de justificação e as acções podem ser justificadas a partir do seu
fundamento ou pelo seu objectivo. A legitimação de uma guerra justa é sempre
realizada pelo seu objectivo. A guerra torna-se um meio necessário ao
restabelecimento do direito, ou seja, a guerra é o meio enquanto o direito é o
fim, o objectivo. Mas a guerra justa, legítima, pode ser realizada de duas
formas: a legal (respeitando as convenções) e a ilegal (caso das guerrilhas,
movimentos de resistência armada, etc.).
A legalidade da
guerra torna-a objecto de regulação jurídica, ou seja, a guerra é objecto de
direito. Para que a guerra surja como um facto jurídico total (para que seja
legal e legítima) é condição necessária que o direito surja como fim e como
meio, ou seja, o complexo das operações componentes da guerra têm de estar voltados
para o fim último (restabelecimento do direito violado) e estejam, em
simultâneo, disciplinadas por regras jurídicas.
As normas
reguladoras de comportamentos que têm por finalidade o restabelecimento de um
direito violado são normas secundárias, ou seja, normas que conservam a ordem
jurídica. A guerra quando realizada sobre o pressuposto da legalidade é, assim,
uma forma de conservar a ordem jurídica. Mas quando se refere que a guerra é um
meio de restabelecimento do direito, entende-se por direito o conjunto das
regras primárias (aquelas normas cuja observância pode ser efectuada pela
força, as normas reforçadas, que podem recorrer ao uso da força). Apenas quando
entendemos por direito o conjunto das normas primárias e secundárias é que a
guerra surge como meio (em relação ás normas primárias) e como conteúdo (em
relação ás normas secundárias).
II - Estas duas
doutrinas tradicionais (legitimidade e legalidade da guerra) desmoronam-se,
fragmentam-se, desde a I Guerra Mundial e foram substituídas por duas novas
relações: a guerra como fonte de direito e a guerra como antítese do direito. O
primeiro destes modelos (a guerra como fonte de direito), parte do princípio de
que a guerra é geradora de um direito novo, de uma nova ordem internacional.
Esta relação está para as relações internacionais assim como as revoluções e as
guerras civis apresentam-se no plano interno. O que muda neste conceito é a
legitimidade, ou melhor, o critério de legitimidade. A guerra continua a ser
considerada em função do direito, não para restabelecer um direito violado, mas
sim para instaurar um novo direito.
O modelo que
considera a guerra como antítese do direito assume que a guerra está para além
deste, que está fora de qualquer controlo jurídico e onde quer que apareça ou
sob que forma se manifeste, derruba o direito. Nesta concepção o direito é
assumido como sendo um conjunto de regras ordenadas que têm por fim a paz. Onde
avança o direito, avança a paz e recua a guerra. A vitória do direito
consistiria, assim, na eliminação das relações de força desregulada, de que a
guerra é a mais elevada expressão.
Pode, portanto,
estabelecer-se um esquema que resuma as diversas justificações da guerra
segundo estes parâmetros: Todas as guerras são boas (representada pela teoria
da guerra como fonte de direito), é um pressuposto conducente ao belicismo
absoluto; Todas as guerras são más (representada pela teoria da guerra como
antítese do direito), é um pressuposto conducente ao pacifismo absoluto; As
guerras podem ser boas ou más (esta a teoria tradicional, suportada pelas
questões da legitimidade e da legalidade), é o pressuposto da guerra justa (o
caso das guerras de libertação nacional) e do comportamento normativo na
condução da guerra (a respeitabilidade das convenções internacionais,
conducentes a uma “humanização” da guerra).
III - Vejamos agora
como estas relações entre guerra e direito estão representadas na guerra de
agressão movida á Síria. É nas cimeiras, nas reuniões internacionais e nos
meetings, que estas relações ficam expostas, embora por detrás das intenções e
dos ponderados compromissos negociados ou das invitáveis rupturas assumidas. A
cimeira em curso na cidade de Genebra, ao fim de cinco dias, ainda não tinha
representado qualquer “avanço importante”, segundo as palavras do mediador
principal Lakhdar Brahimi. De facto o único avanço realizado tem sido em
desacordos e acusações e os resultados estão longe das pretensões de Brahimi,
que pretende alcançar um cessar-fogo, primeiro passo para um eventual acordo
que termine com uma guerra que já provocou mais de 130 mil mortos e cerca de 6
milhões e meio de refugiados e desalojados.
As delegações do
governo sírio e da oposição (representada pela Coligação Nacional Síria - CNS)
acusam-se mutuamente. Os oposicionistas sentem-se desconfortados pelo facto da
delegação governamental impor uma lista de princípios, controlando desta forma
as conversações, impondo as suas condições e desviando o processo de negociação
dos seus objetivos. A oposição aspira á criação de um órgão de governo
transitório que substitua o actual governo do BAAS, que governa desde a década
de 60.
Por sua vez o
governo sírio questiona as propostas da oposição por não comtemplarem um
processo de transição controlada, em que Bashar al-Assad tenha um papel preponderante.
A delegação governamental síria comprometeu-se a permitir a saída de mulheres e
crianças da cidade de Homs, cercada desde o início do ano passado, assim como
deu acesso á assistência por parte da ONU, que enviou de imediato um
carregamento humanitário (com alimentos e remédios) para mais de duas mil e
quinhentas pessoas. No entanto o comboio está a guardar autorização de entrada,
perto no Líbano, na zona fronteiriça. Faisal Makdad, um dos responsáveis da
delegação síria, rechaçou qualquer responsabilidade do seu governo no bloqueio
á cidade de Homs e da respectiva crise humanitária, pedindo, ainda, garantias á
ONU de que o comboio humanitário não cairá em mãos das milícias oposicionistas,
que controlam o centro da cidade.
Por sua vez a
oposição síria não fala a uma só voz. No interior do país os grupos não
pertencentes ao CNS, recusaram-se a comparecer em Genebra. Hassan Abud, líder
da Frente Islâmica (FI), apelou á delegação do CNS que abandonasse a cimeira
(Genebra II, como é conhecida), considerando que é “uma falta de respeito á
vida” comparecer às negociações com “os representantes de Bashar al-Assad”, e
acusou o CNS de “vender o sangue dos mártires”. Antes do início da conferência
a FI recusou qualquer solução politica até que o governo sírio “liberte os
prisioneiros, termine com os bloqueios às cidades libertadas e termine com os
bombardeamentos e expulse as milícias sectárias” (esta ultima exigência é uma
clara referencia á presença da milícias do Hezbollah, que apoiam o governo
sírio e o Presidente Bashar al-Assad). A FI exigiu ainda que a ONU tem de dar
garantias de que não haverá “ingerências estrangeiras após a saída de Bashar”.
IV - Estamos pois
na presença de uma negociação onde se interligam todos os factores de
relacionamento entre guerra e direito. A legitimidade e a legalidade, a nova
ordem internacional e a perspectiva de pacificação, todas interconectadas,
buscando não somente uma solução (embora esta seja a perspectiva apresentada,
busca de uma solução que permita a pacificação do país, como passo essencial
para a resolução do conflito) mas as soluções consubstanciadas nas perspectivas
dos actores do conflito: o governo sírio, os seus aliados, a oposição, os
Estados do Golfo e o Ocidente, surgindo ainda nas negociações o eco dos grupos
terroristas, através destes últimos (produtos criados pelos USA e pela NATO com
o suporte financeiro – e capital humano, também – das monarquias do Golfo.
Claro que estes produtos são gerados por factores inerentes ás dinâmicas
internas da região, mas aproveitados pelos factores de dinâmica externa).
A legitimidade é
uma relação que neste conflitos (como em todos os conflitos) os actores em
campo (principais e secundários) revindicam: a legitimidade de salvaguarda da
soberania nacional (por parte do governo sírio); a legitimidade de combater “a
tirania” por parte da oposição; a legitimidade de apoiar o estado agredido
(posição dos aliados do governo sírio, do Hezbollah á Rússia) e a legitimidade
de apoiar “os rebeldes que legitimamente lutam contra a opressão” (posição das
monarquias do Golfo e do Ocidente).
Já a legalidade é
uma questão mais controversa. Ela apenas existe em pleno por parte do governo
sírio (a sua acção é legitima e é legal) e por parte dos Estados aliados da
Síria. Surge como controversa (podendo criar a posição legitima, mas ilegal)
por parte das forças paramilitares que o apoiam (caso do Hezbollah ou das
milícias curdas). Do lado da oposição, o seu posicionamento, do ponto de vista
tradicional será visto como ilegal, mesmo que legitimo. Quanto aos seus aliados
o acto de apoiar rebeldes pode ou não ser legal, conforme a legislação em vigor
nos seus Estados. Misturam-se aqui duas posições: a legal e a ilegal. Estas
relações originam, em Genebra II, as relações legítimas e legais (no caso dos
aliados cuja legislação permite apoiar grupos rebeldes) as legítimas e ilegais
(o caso do CNS, por exemplo). É evidente que os oposicionistas poderão
enveredar por uma posição legalista, mas fora do contexto tradicional, já no
contexto da nova ordem. Nesse quadro as posições invertem-se, mas também
invertem-se as posições assumidas em torno da relação legitimidade. Criam-se
então as linhas da legitimidade/ilegalidade e da ilegitimidade/legalidade,
assumidas em função dos interesses dos actores, abrindo espaço á nova ordem e
quebrando o cenário tradicional do direito internacional.
Cruzadas que foram
as relações entre guerra e direito, fundamentadas na justificação legitimista e
na ordem jurídica (legitima/legal, legitima/ilegal e ilegítima/legal), resta a
ultima: a ilegítima e ilegal. Mas esta, obviamente não está presente em Genebra
II e apenas faz-se ouvir nos corredores. Está nesta posição a FI, ou as redes
da Al-Qaeda na região e as milícias da extrema-direita sunita. Obviamente que
esta é uma posição que não é compatível com as negociações, por uma razão muito
simples: ilegítimo e ilegal é uma posição só para os joguetes e assumida apenas
pelos peões de brega. Tem como função cansar o boi…
V - A questão da
legalidade e da legitimidade assume particular importância na mudança política,
principalmente quando esta mudança ultrapassa os mecanismos de alternância dos
Estados de Direito. Para simplificar esta questão podemos seguir, a título de
mero exemplo, os recentes acontecimentos no Egipto. O governo egípcio (saído de
um golpe de estado, ou seja consequência de um processo que ultrapassa os
mecanismos da ordem jurídica) anunciou o adiamento das eleições presidenciais,
que serão realizadas em Abril deste ano e decidiu apresentar como candidato o marechal
Abdel Fatah al-Sisi, Chefe do Estado Maior das Forças Armadas e Ministro da
Defesa.
Após a indicação do
candidato governamental, o presidente interino (e primeiro mandatário da
campanha de Sisi), Adli Mansur, anunciou que a campanha presidencial decorrerá
antes das eleições legislativas e avisou que o executivo egípcio tomará, se
necessário, “medidas excepcionais”. Foi também anunciado que a Comissão
Eleitoral Suprema recebeu instruções para preparar as inscrições dos
candidatos.
A recente constituição
prevê que as eleições legislativas sejam realizadas antes das eleições
presidências, mas o governo decidiu adiantar as presidenciais, provavelmente
devido ao facto do recém-nomeado marechal Sisi (ex-general) gozar de uma
crescente popularidade. No entanto o triunfo alcançado pelo governo no
referendo constitucional poderá ser enganador, se for levado em conta que
votaram apenas cerca de 40% dos eleitores (embora esta seja a participação
habitual no Egipto). A este factor (que é demasiado empolgado pela Irmandade
Muçulmana – IM - e pela imprensa internacional e que poderá não ser relevante)
deve ser adicionada alguma conflitualidade política e social. Os apoiantes do
ex-presidente Morsi continuam a convocar acções de protesto contra o derrube do
ex-presidente e a IM comemora nas ruas o 3º aniversário da queda de Hosni
Mubarak. Por outro lado (e aqui as novas autoridades egípcias deverão ter
atenção) os sindicatos egípcios (que foram decisivos na queda de Morsi e do
governo da IM) têm manifestado algum descontentamento com a política social
seguida pelo actual governo.
Segundo o
Ministério da Saúde, os recentes choques entre a IM e as forças de segurança (e
entre a IM e os apoiantes de Sisi), saldam-se em cerca de 50 mortos e 250
feridos, sendo o Cairo e Minya (uma importante cidade a sul do país) as cidades
onde alguma instabilidade é manifesta. No ultimo domingo do mês de Janeiro a IM
homenageou as vitimas dos enfrentamentos com as forças de segurança,
mobilizando milhares de manifestantes, que ocuparam as ruas da capital egípcia,
enquanto a Amnistia Internacional assinalava que o Egipto assiste a uma
“escalada quantitativa e qualitativa em matéria de violações contra os direitos
humanos, desde o derrube de Morsi”, uma atitude algo suspeita se for levado em
conta que a AI nunca se manifestou sobre as violações cometidas durante o
governo da IM.
VI - O novo poder
egípcio assumiu as suas funções de forma legítima (em consequência dos
protestos populares contra o governo de Morsi), mas não legal (não representou
uma alternância de poder, dentro dos parâmetros constitucionais egípcios). Se a
questão da legitimidade do poder, apesar de ser contestada (obviamente pela IM
e pelos apoiantes, internos e externos, de Morsi), pode ser fundamentada
através do descontentamento popular contra o anterior governo, já a legalidade
do novo poder sairia maculada caso não existissem alterações na ordem
constitucional. E assim aconteceu. A Constituição egípcia foi alterada e
submetida a referendo, ou seja, submetida á decisão da soberania popular. Desta
forma os egípcios resolveram o problema, transformando um golpe de estado
ilegítimo em legitimo, ao ser suportado pela legitimidade da rua, ou seja, pela
soberania popular directa. Resolvido o problema da legitimidade, o novo governo
avançou na questão da legalidade (para duplo desespero de Morsi e da IM e
também para os seus aliados externos).
A questão da
legalidade é, em caso de mudança efectiva dos paradigmas, uma questão falsa (e
o Egipto, embora não tenha alterado o paradigma, procedeu como se assim fosse).
A legalidade funciona a título de conservação de um determinado sistema, para
que o sistema evolua gradualmente, mas sempre nos parâmetros previamente
definidos pela ordem jurídica. Assim são criados três pares de opostos, em
função da mudança: legalidade/ilegalidade, gradualismo/simultaneidade e por
último o binómio parcialidade/globalidade.
A razão pela qual o
conceito de revolução não é um conceito legalista, está ligado ao facto de a
revolução implicar uma mudança de ordem, de instauração de uma nova ordem, o
que implica a destruição da ordem até aí em vigor. Como é evidente esta mudança
não pode ser efectuada no respeito pelas “regras do jogo”, até porque nas
regras está sempre implícito que a ordem não pode mudar no seu todo, ou seja, é
implícito a proibição (expressa ou não) de mudar a globalidade da ordem e
substitui-la por outra.
Desta forma a
alternância de poder nas democracias formais (politicas) é sempre legal,
gradual e parcial. Legal porque é a alteração permitida, gradual porque não vai
alterar o paradigma e parcial porque apenas vai provocar pequenas alterações ou
alterações de baixa amplitude e não uma mudança na totalidade da ordem em
vigor. Ao contrário o projecto revolucionário implica a ilegalidade (uma vez
que pretende uma mudança de paradigma), assume-se pela simultaneidade (as
transformações não se sucedem em cadeia evolutiva, gradual, mas sim de forma
aparentemente caótica, como o magma que desce de um vulcão) e é feito na
globalidade, ou seja implica a transformação de toda a ordem anterior e não
apenas de alterações de pequenas parcelas da ordem.
A passagem de um
sistema para outro não pode ocorrer utilizando as regras do sistema precedente,
pois estas apenas permitiriam a evolução do sistema (a reforma) mas não a sua
alteração. A substituição de um paradigma por outro implica a escolha de um
novo sistema, que é incompatível com o anterior, pelo que não pode ser
determinada pelos procedimentos de avaliação do paradigma que está a ser
colocado em questão. Logo toda a transformação é ilegal e criadora de uma nova
legalidade, que assentará sobre os escombros do anterior conjunto normativo.
VII - A política
interna é hoje (basta olhar para os dois exemplos apontados: a Síria e o
Egipto, mas pode-se, também, referir o caso recente da Ucrânia) mais do que em
qualquer outra época, determinada pela política internacional e pela
constelação de interesses das potências hegemónicas (a crescerem em numero, se
atendermos a que as mais recentes potencias regionais, assumem, desde a sua
incubação, o factor hegemónico, utilizando as camuflagens oferecidas pelas
variantes do “nacionalismo económico”), constelação em que os Estados
não-hegemónicos são obrigados a viver. E escrevo “obrigados” porque a posição
de um Estado não-hegemónico nunca é objecto de livre escolha (pelo menos a
partir de uma determinada esfera de influência) do governo desse Estado e muito
menos da soberania popular. A não-governabilidade do sistema internacional
(composto por dinâmicas de larga amplitude) assenta duros golpes no sistema
interno (assente em dinâmicas criadas por particularidades históricas e
culturais).
A politica
internacional - se é que hoje podemos falar em “politica internacional” e se
não deveríamos determinar as Relações Internacionais a partir da única
realidade dominante na sociedade actual: a Economia. Aliás as politicas
externas seguidas por muitos Estados no âmbito diplomático é já uma “diplomacia
do negócio”, assente na realidade actual das Relações Internacionais, numa perspectiva
Geoeconómica - é vedada aos cidadãos e é uma esfera reservada (de facto e de
direito) ao executivo (as “Relações Exteriores”, ou “Negócios Estrangeiros”),
onde as razões de Estado, os segredos de Estado e os serviços secretos (estes,
muitas das vezes, ligados a serviços secretos de outras nações, numa rede
subterrânea de canais de informação e de infiltração) gozam de plena liberdade
de movimentos, sem qualquer controlo por parte dos cidadãos, passando estes da
condição de soberanos, a súbditos.
Nos países onde a
debilidade da máquina administrativa do Estado é acentuada (caso da maioria dos
governos africanos), estes serviços estão centrados nos Ministérios do Interior
de cada Estado, misturados com as Policias e com os instrumentos de controlo de
estrangeiros e de migração, criando uma estrutura que quanto mais debilitado e
ténue seja o quadro administrativo da organização do Estado, mais poder tem a
instituição que tutela os assuntos internos, tornando-se uma fonte de passagem
dos interesses estrangeiros e pontos fulcrais de infiltração. Geralmente os
Estados débeis são pesadas máquinas burocráticas, que roçam o absurdo se
atendermos á incipiência dos serviços públicos. Essa ineficaz, densa e numerosa
burocracia é composta por clientela eleitoral e é uma forma de “política de
emprego”, que tapa a peneira do subdesenvolvimento e permite que a população
tenha esperança num futuro, que no final, está ausente. Claro que a corrupção
actua aqui a todos os níveis. E é por aí que a penetração estrangeira, a
ingerência das potências, o imperialismo e o neocolonialismo penetram.
Em tudo o que é
decidido nesta esfera (a Politica internacional) a soberania popular é ignorada
e espezinhada em função do subjectivo “interesse geral” ou “interesse nacional”
(e também em função do “ consenso entre as nações”) e da subordinação da
soberania popular á soberania nacional, como se esta não fosse soberana apenas
em função da primeira. É a soberania popular que legitima a soberania nacional.
Nenhuma nação é efectivamente soberana, se a soberania popular for inexistente,
pois é esta que define o espaço soberano nacional, tanto na perspectiva
territorial como na perspectiva da definição das políticas de defesa e de
unidade nacionais e dos próprios interesses nacionais.
Ou seja, é a
soberania popular o fundamento da legitimidade. Como tal só ela poderá decidir
a ordem jurídica, ou seja definir a legalidade.
VIII - Não termino
sem antes referir uma data Histórica do Povo Angolano: o 4 de Fevereiro.
O 4 de Fevereiro de
1961 foi o início da I Guerra de Libertação Nacional, a luta armada levada a
cabo pelo Povo Angolano contra o colonial-fascismo português, fase que culmina
com a proclamação da independência, a 11 de Novembro de 1975, um longo período
de 14 anos.
Também aqui as
noções de legitimidade e de legalidade, de guerra justa, da guerra como fonte e
como antítese do direito, se colocam. A legitimidade do 4 de Fevereiro assenta
na decisão popular de travar a luta armada. Esta foi a primeira manifestação
decisiva da soberania popular nacional. A soberania popular foi a razão e o
objectivo da independência nacional, o seu fundamento, a resposta dada pelo
Povo Angolano á pergunta que já na época assolava o movimento de libertação
nacional no continente africano: a independência para quem?
A proclamação da
independência e a criação da Republica Popular de Angola comportam os
princípios da soberania popular manifestados em 4 de Fevereiro de 1961: uma
independência assente no Poder Popular, um “governo operário e camponês” nas palavras
do Presidente Agostinho Neto, fundador da Nação Angolana - líder do movimento
de libertação nacional (um dos líderes mais proeminentes dos movimentos de
libertação nacional africanos) e primeiro Presidente da Angola independente –
uma independência construída em função dos interesses populares e da melhoria
das condições de vida (saúde, educação, habitação), um Estado fundamentado nas
premissas da defesa dos interesses do povo, das liberdades e garantias dos
cidadãos e nos direitos dos trabalhadores. Desta forma foi criada uma nova
ordem jurídica e assumida a legalidade.
As premissas do 4
de Fevereiro de 1961 foram o princípio do Poder Popular em Angola: a construção
de uma sociedade justa e solidária, controlo da produção pelos trabalhadores,
soberania dos recursos, edificação de um Estado eficaz na defesa da soberania
nacional, edificação de um sector público forte e eficiente, criação de uma
máquina administrativa, não burocratizada, controlada pelo Poder Popular e uma
política externa baseada nos princípios da não-ingerência e da solidariedade
internacionalista.
Foram estas
premissas assumidas? Foram, sem dúvida, enunciadas, proclamadas e algumas
delas, iniciado o seu processo de implementação (a proclamação de Angola como
trincheira firme da revolução em África, representa a continuidade do 4 de
Fevereiro e a implementação da soberania popular, proclamação que implica a
aplicação dos princípios emancipadores assumidos na luta de libertação
nacional).
Se foram
continuadas? Isso são outros 500 (não de Kwanzas, mas de dólares, euros, libras
esterlinas e em alguns casos – a representação da máxima degenerescência e
imbecilização do “homem novo” criado não pela Revolução, mas pela economia de
mercado - de patacas e outros “vis e sonantes metais”).
Fontes
Bobbio, Norberto
Sul principio di legittimitá Ed. Giapichelli, Turim, 1970.
Gavazzi, G. Norme
primarie e norme secundarie Ed. Giapichelli, Turim, 1967.
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