quinta-feira, 10 de julho de 2014

QUE FAZER COM A DÍVIDA?



Alejandro Teitelbaum [*]

Para analisar as possíveis soluções para o problema da dívida é preciso examinar primeiramente os exemplos da história. Eles demonstram que nunca ou quase nunca as grandes potências pagaram suas dívidas. Dizia Keynes [1] : "...os incumprimentos por governos estrangeiros da sua dívida externa são tão numerosos e certamente tão próximos da universalidade que é mais fácil tratar deles nomeando aqueles que não incorreram em incumprimento do que aqueles que o fizeram. Além daqueles países que incorreram tecnicamente em incumprimento, existem alguns outros que pediram emprestado no exterior na sua própria moeda e permitiram que essa moeda se depreciasse até a menos da metade do seu valor nominal e em alguns casos até uma fracção infinitesimal. Entre os países que assim actuaram deve-se citar a Bélgica, França, Itália e Alemanha".

Galbraith [2] cita vários exemplos de dívidas externas (sobretudo dos países ditos desenvolvidos) que nunca foram pagas.

Sergio Bitar, no prólogo de um livro de Gonzalo Biggs [3] cita Andrew Mellon, que foi secretário do Tesouro dos Estados Unidos em fins dos anos 1920, o qual declarou: "A insistência no cumprimento de um convénio que supere a capacidade de pagamento de uma nação servir-lhe-ia de justificação para negar-se a qualquer acerto. Ninguém pode fazer o impossível... aqueles que insistem em cláusulas impossíveis estão a propiciar em última instância o repúdio completo da dívida". Isto foi dito por Mellon para justificar a assinatura de 15 convénios destinados a reprogramar as dívidas de guerra dos países europeus com os Estados Unidos. Apesar desta reprogramação, posteriormente a Alemanha e outros países europeus suspenderam o pagamento das dívidas de guerra para com os Estados Unidos.

Biggs, no seu livro, menciona numerosos precedentes históricos de países que não pagaram suas dívidas externas, dentre eles os Estados Confederados do Sul depois da Guerra de Secessão. A referida dívida foi anulada mediante a Emenda XIV da Constituição dos Estados Unidos, de 16 de Junho de 1866, que diz: "...nem os Estados Unidos, nem nenhum dos Estados reconhecerão ou pagarão dívida ou obrigação alguma que se tenha contraído para ajudar uma insurreição ou rebelião contra os Estados Unidos...; estas dívidas, obrigações e reclamações serão consideradas ilegais e nulas". (Biggs, pgs. 101 e 102).

Biggs afirma que se os países latino-americanos recebessem um tratamento semelhante ao da Alemanha e outros países europeus após a primeira guerra mundial (que acabaram por não pagar suas dívidas) a dívida latino-americana deveria ser reduzida em mais de 50 por cento e os prazos de vencimento da mesma prorrogados até depois do ano 2050 (Biggs, pg. 171). O professor José Antonio Alonso, num artigo publicado em 17/Abril/2001 no diário espanhol El País, depois de indicar o elevado custo económico e social da dívida dos países em desenvolvimento, assinala que para o pagamento da dívida alemã após a Segunda Guerra Mundial foi fixada uma quota máxima 4,6% das suas exportações, a fim de "não deslocar a economia" e "não drenar indevidamente seus recursos". Ou seja, a Alemanha, depois de haver provocado a maior hecatombe humana da história, recebeu melhor tratamento do que actualmente recebido pelos países devedores pobres. Biggs diz que a experiência histórica mostra que em todas as crises financeiras internacionais os credores ou seus governos tiveram de assumir uma parte importante das perdas resultantes dos seus empréstimos ou investimentos e que a única excepção a esta regra foi a latino-americana (pg. 28). Poder-se-ia acrescentar que actualmente a excepção atinge não só os países latino-americanos como todos os países devedores pobres.

Do ponto de vista jurídico, reconheceu-se o direito de um governo constitucional desconhecer as dívidas contraídas por um governo ditatorial anterior, com fundamento na má fé do credor (que emprestou sabendo o destino alheio ao interesse público do empréstimo) e na falta de representatividade do devedor. O general Tinoco havia assumido o poder mediante um golpe de Estado na Costa Rica, em 1917, e seu governo contraiu uma dívida com o Royal Bank of Canada. A referida dívida foi desconhecida pelo governo constitucional posterior. Em 1923, o juiz Taft do Supremo Tribunal dos Estados Unidos, que actuou como árbitro entre o Royal Bank e o Governo da Costa Rica, recusou a exigência de reembolso da dívida, com os fundamentos mencionados [4] . Já vimos contraírem-se dívidas simuladas e que durante longos períodos os juros cobrados pelas mesmas foram usurários, factos que entram na esfera penal. Além disso, os juros cobrados incorporaram-se ao capital em dívida, de modo que se tornaram juros sobre juros (anatocismo), o que está proibido nas legislações de muitos países. Assim, juridicamente pode-se considerar que a dívida é globalmente ilegítima e seu pagamento não exigível. Também no plano jurídico cabe fazer valer o princípio "rebus sic stantibus", ou seja, o direito a não cumprir uma obrigação quando as condições da mesma mudaram de tal maneira que o seu cumprimento resulta numa onerosidade extrema e invocar o enriquecimento sem causa dos credores (direito de reclamar a devolução e obrigação de devolver o que se recebeu sem direito).

Afirma Biggs: "A iniciativa de exigir a revisão substancial das negociações... cabe aos países devedores e não se pode supor que, para isso, estes tenham necessariamente de contar com o apoio ou compreensão das demais partes. Mas o temor do antagonismo não pode justificar o prolongamento e intensificação de um agravo irreversível sobre a segurança e o bem-estar das actuais e futuras gerações latino-americanas" (pgs. 33 e 34).

Bitar, no referido prólogo, assinala: "Uma extracção de recursos tão vultuosos das nações pobres pelas nações ricas obedece em definitivo a condições de poder. Mas no final tem um limite: a capacidade de pagamento do devedor. E este conceito depende de uma decisão nacional: o que é essencial para o povo e para investir não está disponível para ser transferido ao exterior" (pg. 18). Mas a capacidade de negociação com os credores dos governos dos países devedores em defesa dos interesses dos seus próprios povos parece ser nula, pois comportam-se como meros executores das políticas ditadas a partir dos centros do poder mundial. Quando as autoridades de um Estado, sem ter em conta precedentes históricos praticamente invariáveis, a ilegitimidade da dívida actual e que o que "é essencial para o povo e para investir não está disponível para transferência ao exterior", não só não negoceiam firmemente com os credores, ameaçando-os com o repúdio total da dívida, como acatam submissamente suas exigências, podem ser imputados de crime de traição, tanto os funcionários governamentais que assim actuem como os parlamentares que, por acção ou omissão, consintam tal actuação.

As bases jurídicas para tal imputação geralmente existem nas legislações nacionais. Exemplo: segundo o Código Penal argentino, comete traição quem "executar um facto destinado a submeter a nação, total ou parcialmente, ao domínio estrangeiro ou a reduzir sua independência ou integridade" e a Constituição argentina qualifica de "infames traidores à pátria" aqueles que "formulem, consintam ou assinem" actos pelo quais "a vida, a honra ou as fortunas dos argentinos fiquem à mercê de governos ou de alguma pessoa" (artigo 29).

Mas enquanto os povos afectados não impuserem a negociação com actos maciços de rebeldia contra os sucessivos ajustes e sacrifícios, esta situação não tem possibilidade de mudar. Isto também é sabido pelos credores, pois consideram que podem continuar a espoliar os povos dos países devedores enquanto a paciência dos mesmos não se houver esgotado. Com efeito, no caso do México, em Junho de 1987 a Heritage Foundation afirmou que a circunstância de o governo desse país haver eliminado os subsídios ao consumo, aumentado drasticamente os impostos e reduzido em 50 por cento os salários reais, "sem uma rebelião maciça" da sua população, indicaria que o governo ainda teria espaço para aprofundar essa política e realizar, também sem obstáculos, a reforma e privatização completa do aparelho económico do Estado [5] .

Do ponto de vista económico-financeiro, se se fizesse um estudo actuarial descontando as dívidas fictícias, os juros usurários, os juros dos juros, os gastos e comissões desproporcionados e a fuga de capitais, chegar-se-ia à conclusão de que a dívida foi totalmente paga e provavelmente seria visto que os supostos devedores são na realidade credores. Um documento de 25/Junho/2001 de Jubileo Sur diz que em 1980 os países do Sul deviam 567 mil milhões de dólares, que desde então pagaram 3,45 milhões de milhões, ou seja, seis vezes o montante da dívida de 1980 – e que no entanto devem actualmente mais de dois milhões de milhões, ou seja, três vezes e meia mais que em 1980.

Finalmente, de um ponto de vista ético, haveria que colocar a suposta dívida num prato da balança e no outro prato a dívida social, ecológica e histórica que os credores têm com os supostos devedores. Ou seja, por nesse prato o enorme dano social causado com as políticas de ajuste, o dano ecológico provocado por indústrias contaminantes, com os resíduos tóxicos transportados para países do Terceiro Mundo, com a devastação das florestas e a dívida histórica contraída com os supostos devedores durante séculos de espoliação das suas riquezas e recursos humanos.

Pode-se afirmar que a dívida externa dos países do terceiro mundo é jurídica, económica e financeiramente inexistente e eticamente insustentável e que a sua subsistência faz parte do sistema mundial dominante caracterizado pela hegemonia do capital financeiro parasitário que funciona como uma bomba aspiradora do trabalho e da poupança dos povos de todo o mundo, sendo os mais afectados os países pobres e dentro deles os sectores mais desfavorecidos da população. Afirma Biggs: "O custo de manter a vigência destas obrigações através do seu ajuste e reprogramação constante proporciona uma espécie de renda perpétua aos credores e, ao mesmo tempo, representa uma drenagem permanente da economia dos países devedores" (Biggs, pg. 24).

[1] Keynes, John Maynard, Defaults by foreing governments, 1924
[2] Galbraith, John Kenneth, Voyage dans le temps économique, ed. Seuil, cap. IV, 1995
[3] Biggs, Gonzalo, La crisis de la deuda latinoamericana frente a los precedentes históricos. Grupo Editor Latinoamericano, Colección Estudios Internacionales, Buenos Aires, 1987
[4] Adams, Patricia, Odious Debts, nextcity.com.jubilee2000uk.org. Africa Relance, Naciones Unidas, Vol. 7, Nº 1, junio de 1993
[5] The Heritage Foundation. &#quot;Deja vu on Policy Failure: The new $ 14 billion Mexican debt bailout&#quot;, Backgrounder, Nº 588, p. 11, 25 de junio de 1987. Washington, D.C., citada por Biggs, pgs. 31 e 32


Ver também: 

Para descarregar o trabalho na íntegra clique aqui (PDF, 155 kB, 35p., em castelhano)

[*] Jurista, argentino, pós-graduado em relações económicas internacionais pelo IEDES-Université de Paris I, Juiz do Tribunal Permanente dos Povos, autor de Al Margen de la Ley: Sociedades Transnacionales y Derechos Humanos, Publicaciones ILSA, Bogota, 2007. ISBN: 978-958-8341-01-09

O original encontra-se em www.argenpress.info/2014/07/que-hacer-con-la-deuda.html

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/
 

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