Clara
Ferreira Alves – Expresso, opinião
A
Justiça é antes de mais um código e um processo na sua fase de aplicação. Ou
seja, obediência cega, essa sim cega, a um conjunto de regras que protegem os
cidadãos da arbitrariedade. Do abuso de poder. Do uso excessivo da força. Essas
regras têm, no seu nó central, uma ética. Toda e qualquer violação dessa ética
é uma violação da Justiça. E uma negação dos princípios do Direito e da ordem
jurídica que nos defendem.
Num
caso de tanta gravidade como este, o da suspeita de crimes graves e detenção de
um ex-primeiro-ministro do Partido Socialista, verifico imediatamente que o
processo foi grosseiramente violado. Praticou-se, já, o linchamento público.
Como?
1)
Detendo o suspeito numa operação de coboiada cinemática, parecida com as de
Carlos Cruz e Duarte Lima, a uma hora noturna e tardia, num aeroporto, quando
não havia suspeita de fuga, pelo contrário. O suspeito chegava a Portugal.
Porque não convocá-lo durante o dia para interrogatório ou levá-lo de casa para
detenção?
2)
Convidou-se uma cadeia de televisão a filmar o acontecimento.
Inacreditável.
3)
Deram-se elementos que, a serem verdadeiros, deviam constar em segredo de
Justiça. Deram-se a dois jornais sensacionalistas, o "Correio de
Manhã" e o "Sol", que nada fizeram para apurar o que quer que
seja. Nem tal trabalho judicial lhes competia. Ou seja, a Justiça cometeu o
crime de violação do segredo de Justiça ou pior, de manipulação do caso, que
posso legitimamente suspeitar ser manipulação política dadas as simpatias dos
ditos jornais pelo regime no poder. Suspeito, apenas. Tenho esse direito.
4)
Leio, pela mão da jornalista Felícia Cabrita, no site do "Sol", pouco
passava da hora da detenção, que Sócrates (entre outros crimes graves) acumulou
20 milhões de euros ilícitos enquanto era primeiro-ministro. Alta corrupção no
cargo. Milhões colocados numa conta secreta na Suíça. Uma acusação brutal que é
dada como certa. Descrita como transitada em julgado. Base
factual? Fontes? Cuidado no balanço das fontes, argumentos e contra-argumentos?
Enunciado mínimo dos cuidados deontológicos de checking e fact-checking? Nada.
Apenas "o Sol apurou junto de investigadores". O "Sol" não
tem editores. Tem denúncias. Violações de segredo de Justiça. Certezas. E
comenta a notícia chamando "trituradora" de dinheiro aos bolsos de
Sócrates. Inacreditável.
5)
Verificamos apenas, num estilo canhestro a que a biógrafa de Passos Coelho nos
habituou (caso Casa Pia, entre outros) que a notícia sai como confirmada e
sustentada. Se o Watergate tivesse sido assim conduzido, Nixon teria ido preso
antes de se saber se era culpado ou inocente. No jornalismo, como na justiça,
há um processo e uma ética. Não neste jornalismo.
6)
Neste momento, não sei nem posso saber se Sócrates é inocente ou culpado. Até
prova em contrário é inocente. In dubio pro reo. A base de todo o Direito
Penal.
7)
Espero pelo processo e exijo, como cidadã, que seja cumprido à risca. Não foi,
até agora. Nem neste caso nem noutros. Isto assusta-me. Como me assustou no
caso Casa Pia. Esta Justiça de terceiro mundo aterroriza-me. Isto não acontece
num país civilizado com jornais civilizados. Isto levanta-me suspeitas
legítimas sobre o processo e a Justiça, e neste caso, dada a gravidade e ataque
ao regime que ele representa, a Justiça ou age perfeitamente ou não é Justiça.
8)
Verifico a coincidência temporal com o Congresso do PS. Verifico apenas. Não
suspeito. Aponto. E recordo que há pouco tempo um rumor semelhante, detenção no
aeroporto à chegada de Paris, correu numa festa de embaixada onde eu estava
presente. Uma história igual. Por alturas da suspeita de envolvimento de José
Sócrates no caso Monte Branco. Aponto a coincidência. Há um comunicado da
Procuradoria a negar a ligação deste caso ao caso Monte Branco. A Justiça
desmente as suas violações do segredo de Justiça. Aponto.
9)
E não, repito, não gosto de José Sócrates. Nem desgosto. Sou indiferente à
personagem e, penso, a personagem não tem por mim a menor simpatia depois da
entrevista que lhe fiz no Expresso há um ano. Não nos cumprimentamos.
Não sou amiga nem admiradora. É bizarro ter de fazer este ponto deslocado e
sentimental mas sei donde e como partem as acusações de "socratismo"
em Portugal.
10)
As minhas dúvidas são as de uma cidadã que leu com atenção os livros de
Direito. E que, por isso mesmo, acha que a única coisa que a Justiça tem a
fazer é dar uma conferência de imprensa onde todos, jornalistas, possamos estar
presentes e fazer as perguntas em vez de deixar escorregar acusações não
provadas para o "Correio da Manhã" e o "Sol". E quejandos.
Não confio nestes tabloides para me informarem. Exijo uma conferência de
imprensa. Tenho esse direito. Vivo num Estado de Direito.
11)
Há em Portugal bom jornalismo. Compete-lhe impedir que, mais uma vez, as nossas
liberdades sejam atropeladas pelo mau jornalismo e a manipulação
política.
12)
Vou seguir este processo com atenção. Muita. Ou ele é perfeito, repito, ou é a
Justiça que se afundará definitivamente no justicialismo. Na vingança. No abuso
de poder. Na proteção própria. O teste é maior para a Justiça porque é o teste
do regime democrático. E este é mais importante que os crimes atribuídos a quem
quer que seja. Não quero que um dia, como no poema falsamente atribuído a
Brecht, venham por mim e não haja ninguém para falar por mim. A minha liberdade,
a liberdade dos portugueses, é mais importante que o descrédito da Justiça. A
Justiça reforma-se. A liberdade perde-se. E com ela a democracia.
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