Mário
Maestri*, opinião
Cheguei
em Bruxelas, em janeiro de 1974, refugiado da ditadura brasileiro, em 1971, e,
a seguir, do golpe chileno, em 1973.
Na
Bélgica, obtive refúgio político e completei graduação e pós-graduação em
História. Encontrei um país cinza, chuvoso mas solidário, que recebeu os
refugiados do Chile de braços abertos. Estudei na UCL, universidade católica,
com bolsa de estudos financiada por sindicalistas, militantes de esquerda e
membros do minúsculo Partido Comunista belga. Morei sempre em Bruxelas, onde
convivi com jovens belgas e estrangeiros, de diversas origens, sobretudo
italiana e norte-africana. A partir do fim da II Guerra Mundial, a Bélgica,
grande centro industrial europeu, sustentou sua expansão econômica com a
importação maciça de trabalhadores italianos, poloneses, etc., destinados às
minas de carvão, fundamentais à retomada da metalurgia e indústria do país.
Em
1946, os italianos, 200 mil no total, foram os primeiros a chegar..
Literalmente substituíram, no trabalho e nos alojamentos, os prisioneiros
alemães e de direito comum, forçados a descer nas minas de carvão, trabalho
duro e danoso à saúde. Aquela imigração oficial foi interrompida, pela Itália,
após a explosão de mina em Marcinelle, com centenas de trabalhadores italianos
mortos. A seguir, o Estado belga contratou a importação de trabalhadores com a
Espanha [1956] e com a Grécia [1957] e, mais tarde, com a Turquia e com o
Marrocos. Nos anos 1960, com forte impulsão industrial, trabalhadores
espanhóis, portugueses, etc. chegaram ao país, em forma individual, para
empregarem-se também na indústria. Um tipo de imigração que livrou o Estado
belga de compromissos com os governos dos países que cediam os trabalhadores.
Do norte da África, chegaram muitos trabalhadores, até poucas décadas.
Uma
População Multi-Nacional
Em
1974, conheci uma Bélgica multi-nacional, sobretudo quanto à classe
trabalhadora. Naqueles anos, os filhos dos imigrados chegavam à universidade,
de acesso universal e gratuita. Companheiros e companheiras refugiados amigos -
chilenos, brasileiros, argentinos, etc. - conheceram e casaram-se com belgas nativos ou
filhos e filhas de operários estrangeiros. Em Bruxelas conheci minha atual
esposa, universitária nascida em aldeia próxima a Charleroi, filha de italiano
chegado precisamente em 1946 para labutar nas minas de carvão daquela região.
Não havia diferenças de qualidade no tratamento de um jovem belga nativo e
de um filho de imigrados, mesmo que aflorassem elementos de descriminação,
conhecidos por todas as vagas imigratórias. Situação que tendia à dissolução,
com o passar dos anos e a absorção-naturalização das gerações nascidas na
Bélgica. Mesmo conhecendo o italiano, espanhol, árabe, etc., os filhos de
imigrados tinham, como primeira língua, o francês ou o holandês, línguas das duas
comunidades nacionais que, desde a invenção da Bélgica, em 1830, dividem-se o
país aos beijos e tabefes.
Tive
grandes amigos e amigas do norte da África e da África Negra, em geral
militantes e simpatizantes de esquerda, como normal na época. Nos unia as
mesmas visões difusas de mundo e a devoção à cerveja belga, excelente. Os
jovens de origem norte-africana, nascidos na Bélgica, tinham a mesma adesão à
religião dos pais do que eu tinha à dos meus - isto é, nenhuma. Os jovens de
origem norte-africana que conheci abominavam o fundamentalismo islâmico, assim
como os jovens progressistas brasileiros abominam o nosso fundamentalismo
evangélico. Denunciavam-no como movimento propiciado pelo imperialismo
britânico e estadunidense, sobretudo através da Arábia Saudita, para
enfraquecer os então fortes movimentos de libertação nacional de inspiração
mais ou menos esquerdista, nacionalista, laica que avançavam no mundo dito
árabe.
O
fundamentalismo era inimigo a ser abatido.
No
Marrocos, Egito, Líbia, Argélia, etc., havia governos nacionalistas,
anti-fundamentalistas, com amplas fricções com os USA e seus aliados. Não eram
governos emanados da população e possuíam fortes contradições com suas classes
trabalhadoras e populares, mas garantiam espaços de convivência social e alguns
direitos civis mínimos, com destaque para as mulheres. Sobretudo em comparação
com sociedades como a Arábia Saudita. Em Bruxelas, mesmo nos bairros de
imigrados norte-africanos, apenas as mulheres mais idosas portavam o véu.
Jamais vi alguém portar uma burca, até retornar ao Brasil em final de
1977. Na Bélgica, o racismo era sobretudo contra a população negro-africana, em
boa parte oriunda da ex-colônia belga, com pouca expressão entre os
trabalhadores. A colonização do Congo foi singularmente desumana, praticando
crimes inimagináveis.
Em
1991, quando Florence retornou a Bruxelas para terminar os estudos
universitários, a situação mostrava-se já diversa, sobretudo em relação aos
trabalhadores imigrados norte-africanos, últimos chegados, e dos seus filhos
nascidos na Bélgica. Matriculamos Gregório, nosso filho, nascido na Bélgica, em
1977, em colégio público de Etterbeek, bairro onde morávamos e onde se
concentram as instituições europeias. Não sabíamos que o colégio constituía uma
espécie de depósito de filhos de norte-africanos, provenientes de famílias que
viviam já conheciam situações precárias. A tensão entre os jovens
norte-africanos e os belgas de origem era forte, espelhando situação
que se degradaria nos anos seguintes. Quando menina e adolescente, na escola,
Florence sofrera pouco o peso de sua origem italiana. Mas volta de seus pais
para a Itália, após a aposentadoria, anos mais tarde, foi sentida como enorme
perda pela pequena comunidade operária em que viveram.
Um
Italiano, Primeiro Ministro
Com
o passar dos anos, os filhos de italianos, portugueses, espanhóis, etc.
integraram-se profundamente no país, em geral ocupando postos crescentemente
especializados no mundo do trabalho e na sociedade. Esse processo foi
propiciada pela educação pública, por direitos sociais inimagináveis para o
Brasil e graças a um mercado de trabalho em expansão. Recentemente, o cargo de
primeiro ministro do governo federal da Bélgica foi assumido por filho de
operário italiano imigrado. Não foi por choque de civilização, como proposto
pelo conservadorismo, que o mesmo não ocorreu com os norte-africanos.
Em
1974, conheci a cidade de Charleroi, já com as minas desativadas, mas ainda
centro metalúrgico dinâmico, absorvendo ainda uma mão de obra que apenas
começava a exceder às necessidades. Diante das moradias operárias, operários
especializados exibiam seus novos automóveis.Visitei um velho italiano,
ofegante, semi-imobilizado, respirando com ajuda de oxigênio, com os pulmões destruídos,
como milhares de outros mineradores. Doze anos mais tarde, visitei a aldeia em
que Florence nasceu. Na periferia de Charleroi e antigos bairros industriais,
deparei-me com usinas, fábricas, moradias, lojas, bares, etc. abandonados e
enegrecidos pela fuligem dos alto-fornos desmobilizados. A impressão era de uma
espécie de ferro-velho industrial. Na região vivia uma geração de trabalhadores
lumpenizados e desmoralizados, entre eles colegas da escola de Florence, que
envelheceram não raro praticamente sem jamais ter trabalhado, sustentados pelo
salário-desemprego.
O
Fim do Sonho Capitalista
A
crise estrutural da ordem capitalista e as políticas neoliberais que ensejou,
sobretudo após a vitória da contra-revolução mundial, de fins dos anos 1980,
ocasionaram uma vaga gigantesca de desindustrialização, deslocamento industrial
e desemprego no mundo industrializado, que golpeou duramente a Bélgica. No
Sermão da Montanha do mundo real, os últimos chegados passam fome, frio e são
humilhados. Os trabalhadores norte-africanos, com direito de residência,
aposentaram-se ou passaram a gozar do salário-desemprego, ao igual que seus
companheiros belgas. Com o agravamento da crise, foram apontados como parasitas
de uma sociedade nacional que haviam e seguiam construindo. O movimento de
discriminação enfatizou características somáticas e culturais antes quase
desapercebidas: a forma popular de falar; a cor mais escura da pele; o cabelo
negro ou crespo; a religião e cultura muçulmana; os nomes e sobrenomes árabes. Mesmo
com curso secundário e universitário, os jovens de origem norte-africana
nascidos no país foram marginalizados na disputa cada vez mais acirrada pelo
trabalho cada vez mais escasso. Quando muito, empregaram-se nos trabalhos
precários, temporários e mal-remunerados, incapazes de sustentar inserção
minimamente condigna na sociedade nacional. E assim, muitos deles nasceram e
têm vivido reduzidos a situação de párias, em seu próprio país.
Alguns
bairros de Bruxelas, com destaque para Molenbeek , se transformaram em espécie
de guetos norte-africanos, sobretudo devido aos menores preços de seus imóveis.
Entretanto, neles vivem também moradores de outras origens, sem maiores
problemas de convivência. Por esses azares da sorte, Gregório, hoje professor
do curso de Arquitetura na ULB em Bruxelas, se alojava em casa de casal de
amigos arquitetos, no mesmo lado da rua, apenas a duas casas, do último
esconderijo de Salah Abdeslam.
A
Morte da Utopia
O
uso e o tráfico miúdo de entorpecentes, a pequena delinquência, a humilhação
permanente, a inevitável desmoralização são os únicos grandes caminhos que se
abrem a essa geração descartada, permanentemente assediada por forças policiais
municipais que não primam pelo apreço do multi-culturalismo. Diante dela, se
abre literalmente o nula, em uma sociedade que tudo promete e oferece a quem é
um produtor e consumidor de maior ou menor fôlego. Por outro lado, a derrota da
classe operária e o retrocesso e dissolução dos partidos e organizações de
esquerda belgas e europeus ensejaram que seus programas não mais atraiam essa
juventude sem futuro e destino, que descrê totalmente da organização e luta
social para superação do descalabro atual. Não raro, o vazio
ideológico-existencial dessa juventude é preenchido pelo fundamentalismo, reação
aparentemente radical à sociedade cristã-ocidental que a marginaliza
e humilha, no país em que nasceu.
O
massacre e a literal destruição de nações inteiras de raízes árabes e
muçulmanas - Palestina, Líbano, Iraque, Síria, Líbia, etc. -, promovidos pelos
Estados Unidos e seus aliados, com destaque para os grandes Estados europeus,
em nome do capitalismo e da civilização ocidental, causaram
igualmente impulsão à adesão ao fundamentalismo islâmico, visto como dura
resposta a esses crimes genocidas. A esse coquetel explosivo, acrescente-se
elemento em geral ocultado pela grande mídia. O imperialismoocidental, em
aliança com a Arábia Saudita, serviram-se nas últimas décadas do extremismo
islâmico para destruir nações árabes autônomas, que defendiam estados
minimamente laicos, heranças das lutas pela independência anti-colonial dos
anos 1950, travadas contra a Inglaterra e a França, sobretudo.
Quando
o Ocidente amava Bin-Laden
Política
de destruição nacional que, em 2011, se voltou para a Síria, após o arrasamento
de Líbia, Iraque, Palestina, Afeganistão, etc. Inicialmente, o levante islâmico
fomentado por USA, Turquia, Arábia Saudita e estados europeus imperialistas foi
saudado vivamente na Europa como movimento libertador. Ainda há dois ou três
anos, a grande mídia belga, européia e mundial - brasileira inclusive -, glamourizavam os
jovens europeus, sobretudo de origem muçulmana, que partiam para lutar na
Síria. Esses jovens desesperados foram apresentado como fedayins da
liberdade, antagonistas do terrível ditador sírio, síntese de todos os horrores
do universo, como já fora Saddam, Guedafi, etc! Pouco importava que fossem
doutrinados pelo islamismo fundamentalista, que acusava o “ogro sírio”, entre
outros graves pecados, de sustentar Estado laico, aberto a todos os credos. A
Bélgica foi um dos países europeus que forneceu um maior número de voluntários
para a cruzada anti-síria. Enorme parte deles partiram de Molenbeek.
Simpatia
e apoio que começou a mudar apenas quando o Estado Islâmico, com suas
principais raízes nas comunidades sunitas, reprimidas pelo xiismo entronizado
pelos USA no Iraque, escapou do controle de grande financiador estadunidense,
para realizar demonstrações de singular barbarismo, exprimindo um programa
próprio para aquela região do mundo. Então, de heróis da luta anti-ditatorial,
os jovens fedayinsbelgas, franceses, espanhóis, etc. passaram a ser
denunciados e perseguidos como terroristas islâmicos. Já na França e agora na
Bélgica, os promotores diretos dos atentados terroristas multitudinários
urbanos, comumente não são cidadãos do mundo árabe, nascidos em tugúrios
rurais, educados nas obscuras madrassas financiadas pela Arábia Saudita e pelos
corruptos emirados petrolíferos, criados pelos britânicos e defendidos até hoje
pelo imperialismo estudunidense e inglês, os reais proprietários de suas riquezas,
há dezenas de anos.
Cavaleiros
do Próprio Apocalipse
Os
neo-terroristas são cidadãos europeus, belgas e franceses sobretudo, de origem
norte-africana, educados em escolas públicas, em geral até poucos anos sem
qualquer ligação religiosa, não raro galvanizados e doutrinados nas prisões dos
seus países, onde muitos foram parar por pequenos e médios delitos e crimes.
Jovens que conheceram o desespero, a desmoralização, a humilhação, na terra em
que nasceram, encantados pelo abismo patológico do fundamentalismo islâmico,
nem que seja como forma de abandonar em uma explosão de ódio um mundo e destino
que já não mais suportavam.
É
por tudo isso que os ataques contra o aeroporto e uma estação de metrô de
Bruxelas, por jovens nascidos naquela cidade, foi saudado por outros jovens
moradores de Molenbeek, Schaerbeek e outros bairros da capital da Europa,
atirando pedras contra policiais, que por ali circulam, há anos, como se
estivessem em terra estrangeira. É mais uma guerra civil, de classes, ou
melhor, de desclassados, sem futuro, do que um confronto de religião ou de
raça, travada por desesperados, condenados a uma vida sem destino, na ferida
cidade de Bruxelas.Atos terríveis que certamente degradarão ainda mais as
condições de existência de uma população de origem norte-africana, embretada e
sem saída, em uma sociedade européia que tudo lhe ofereceu no passado e, hoje,
lhe retira até a esperança no futuro.
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