Ou
receita para um cozinhado jornalístico de êxito garantido
Agostinho
Lopes* – AbrilAbril, opinião
Classifique-se
e caracterize-se a classe profissional/sector de actividade e a qualidade do
serviço prestado, através de alguns exemplos escolhidos a dedo. Escolham-se os
piores. Destaquem-se alguns factos avulsos chocantes, enumerem-se coisas
horríveis. E depois extrapolem-se, generalizem-se de forma abusiva, distorcida
e preconceituosa, todos esses dados, transformando-os na caracterização e
identificação da classe profissional/sector de actividade. Obtém-se «O
taxismo-leninismo que durante anos nos obrigou a viajar em veículos sujos, com
música pimba aos berros entrecortada com discurso xenófobos ou quase fascistas
(…)».
Cite-se,
sublinhe-se e inflacione-se a declaração/afirmação excessiva, violenta, de um
dirigente de uma associação desse grupo profissional/sector de actividade…
produzindo uma bolha de propaganda sobre as ameaças e malfeitorias de que é
capaz tal classe/sector de actividade… Calcule-se que até foram capazes da «(…)
projecção de dejectos de animais para concorrentes indesejáveis (…)».
Acrescente-se,
como localização e ambiente político-social, o facto de essa actividade se
realizar em Portugal, e logo, diferentemente, por idiossincrasia própria deste
povo atrasado, tudo ser admissível, tudo ser possível…«Fosse o país um pouco
mais exigente e houvesse um Governo mais empenhado na defesa de um limiar
mínimo de moralidade pública (…)» e o referido dirigente associativo estaria a
ferros!
Na
«Europa civilizada» (já cá faltava uma maison/pour la patrie/p´lo
Volkswagen/acabou-se a forragem/viva o patron!) de que falava Zeca Afonso
(Década de Salomé) não era possível… Aqui ao lado, em Espanha e França, não era
possível, como sabemos de olhar manifestações e lutas. É tudo na paz do senhor…
Tenha-se
como concepção de Estado de direito um Estado com dois direitos. O direito da
ordem jurídica e exercício da «violência do Estado» via polícia e outras
instâncias, que tudo permite ao capital transnacional (nada de afugentar o
investimento estrangeiro!), permitindo-lhe o exercício de uma actividade
económica em total e brutal violação da lei portuguesa, desde Junho de 2014 –
há mais de dois anos! Nem polícia, nem ASAE, nem tribunais, nem uma dita
Autoridade da Concorrência, nem governos enxergaram uma situação três vezes
ilegal: ilegal a entidade promotora e contratadora, ilegal a viatura usada,
ilegal a actividade do condutor!
Em
contraponto, o direito da mão pesada da lei e da ordem sempre que o indígena
põe o pé de fora, por exemplo, se for o sexto carro numa praça de táxis de
cinco!
Aliás
admitiu-se aquela actividade ilegal e justificou-se a passividade do poder do
Estado face à ilegalidade, na presunção de que em nome da «modernidade», das
novas «tecnologias», da «inevitabilidade destas novidades platafórmicas» e
etc., o Estado – o Governo, a Assembleia da República, um Município vai um dia
«legalizá-la». Isto é, fazer a legislação necessária, direccionada e concreta,
não abstracta, ao enquadramento legal…. da actividade de uma dada empresa. E
como vai ser legalizada, logo pode exercê-la. E isto não faz comichão nem nada…
É proibido caçar lebres e coelhos… mas como sabemos que um dia vai ser
autorizada a caça, podemos caçar por antecipação… As lebres e os coelhos vão-se
habituando… quando vier a lei, já não dói nada!
Baptize-se
a reacção natural, obrigatória dos prejudicados – a de que vão continuar a luta
– com um nome/adjectivo «forte», daqueles que não deixam dúvidas a ninguém, de
que estamos perante uma tentativa de subversão da ordem cristã e ocidental: «guia
de marcha para a ala radical do "taxismo-leninismo"»! Dizer
«leninismo», para alguns é como dizer belzebu, satanás… mesmo se ninguém
percebe o sentido que faz a sua articulação com hífen e tudo… com «taxismo». Ou
melhor, percebemos todos bem demais… É certamente para «a criação de um clima
de intimidação tal que leve o cidadão comum a ter medo de entrar (…)»… num
táxi!
Ponha-se
à disposição do sujeito um jornal dito de referência (ou um canal televisivo,
ou radiofónico), e temos mais uma peça (porque já houve outras)… do
«jornalismo-uberismo». Embora, perante as enormidades ditas e escritas sobre o
assunto, não se esteja longe de um «jornalismo-fascismo»…
Nota
1: todas as citações em itálico pertencem ao artigo de Manuel Carvalho, «A
impunidade do "taxismo-leninismo"», no jornal Público de 2
de Outubro de 2016!
Nota
2: como atestado do bom comportamento empresarial, económico, fiscal e ético da
Uber, que a diatribe reaccionária invoca e defende como o cordeiro de deus que
vai tirar os pecados dos taxistas, cite-se a peça do Expresso, insuspeito de
«leninismo», de 24 de Setembro, titulada «O mau exemplo que vem do coração da
Europa»: «Formalmente controlada por uma companhia offshore do Estado
de Delaware, nos EUA, a Uber criou duas subsidiárias na Holanda, o país de
Neelie Kroes (nota minha: a ex-Comissária Europeia da Concorrência até 2010, e
depois com a pasta da Agenda Digital até 2014, que fez como o Barroso!) e
concedeu-lhes o direito de usar a propriedade intelectual do negócio fora dos
Estados Unidos. Isso significou uma tributação de impostos a uma taxa inferior
a 1% sobre os lucros gerados pela actividade da Uber em mais de 60 países
(excluindo os EUA), através de um esquema a que a revista Fortune chamou double
dutch(duplo holandês). Este esquema foi montado entre 2013 e 2015, e em 2016
Kroes tornou-se consultora da Uber».
Como
se vê: Concorrência, Agenda Digital, Plataformas informáticas, Uber, tudo
coerente, consistente e transparente!
*Engenheiro
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