Manuel
Carvalho da Silva* – Jornal de Notícias, opinião
Está
confirmado, em Portugal e na generalidade dos países da União Europeia (UE),
que as respostas à "crise financeira" de 2007/2008, em particular as
políticas de austeridade e o reforço da financeirização da economia, agravaram
as desigualdades sobretudo dentro de cada país. O aprofundamento das
desigualdades salariais fomentou esse agravamento e constatou-se - através de
estudos feitos em Portugal, em Espanha e noutros países - que o enfraquecimento
da negociação coletiva contribuiu muito para a desigualdade salarial.
A
evidência de que os gestores de topo usufruem de chorudas retribuições e
tiveram significativos aumentos durante o período em que a generalidade dos
trabalhadores viu os seus salários serem reduzidos, tem levado ao surgimento de
iniciativas políticas que denunciam este escândalo e procuram travar estas
injustiças.
É
neste contexto que surgem em preparação, na Assembleia da República (AR),
propostas do PS e do BE com vista à discussão de uma limitação do leque
salarial nas empresas e serviços. Trata-se de iniciativas positivas. Mas só
atingirão êxito se propiciarem uma abordagem que vá muito para além do objetivo
de estabelecer um limite razoável na relação entre os que auferem mais e os que
têm salários mais baixos. São três as razões fundamentais para a debilidade de
um debate centrado apenas nesse objetivo: primeira, existem hoje múltiplas
formas de contornar a aplicação de uma norma desse tipo nas empresas e serviços
(privados e públicos), através de subcontratações e da "externalização de
serviços"; segunda, os leques salariais pornográficos hoje existentes
alimentam-se de (e alimentam) conceções e práticas sobre a organização da
economia e da sociedade, que subjugam a maioria dos cidadãos no trabalho e fora
dele, naturalizando as desigualdades salariais e outras; terceiro, só com o
crescimento médio e mediano dos salários se poderá atingir uma política
salarial globalmente mais justa.
Os
que invocam a soberania das "leis" do mercado para justificar as
desigualdades salariais sabem bem que o mercado não se rege por critérios de
justiça ou de democracia e, muito menos, de ordem ética e moral. São as
organizações e instituições que representam os interesses e valores dos
cidadãos na sociedade que têm de estabelecer e balizar regras de comportamento.
O Governo tem o dever de entrar neste processo com empenho, municiando o debate
a ser feito na AR, na Concertação Social e no plano público, com análises mais
finas sobre a desigualdade salarial.
É
natural a utilização de critérios de competência, de mérito e motivação para
estabelecer os salários, mas isso implica regras abstratas e universais
aplicáveis aos do topo e aos de baixo. É preciso um indivíduo ser muito
preguiçoso e ganancioso, quando só conseguimos mobilizá-lo a troco de milhões.
A
"liberdade económica" não pode permitir que o dono de uma empresa
privada ou um conjunto de acionistas façam o que entenderem da riqueza aí
produzida. Embora de forma diferenciada nos dois setores, tem de haver regras e
controlo que defenda o interesse coletivo da sociedade, na empresa e fora dela.
É
possível justiça salarial: i) combatendo a precariedade e o desemprego, os dois
fatores de maior pressão negativa sobre os salários; ii) libertando riqueza
para o investimento produtivo gerador de emprego e da melhoria da sua
qualidade, e não permitindo que o peso do fator trabalho no PIB continue a
cair; iii) combatendo a destruição do Estado social, pois a prestação de
direitos sociais fundamentais às pessoas é uma forma de remuneração indireta
muito importante para quem tem baixos rendimentos; iv) afirmando a igualdade
entre homens e mulheres no trabalho e impondo salários e retribuições dignas
para os jovens na sua entrada no trabalho; v) repondo a contratação coletiva e
tornando-a dinâmica, pois ela possibilita leques salariais mais homogéneos; vi)
reequilibrando poderes entre os representantes do trabalho e do capital,
através de melhorias na legislação laboral.
Há
hoje capacidade de produzir riqueza como nunca e possibilidade de a distribuir
melhor. Se os trabalhadores tiverem mais poder e direitos haverá menos
desigualdades.
*
Investigador e professor universitário
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