Duas
semanas depois de curioso ataque com gás sarin, terroristas financiados pelo
Ocidente explodiram camboio de refugiados, matando 126 sírios, entre os quais
80 crianças. Desta vez, ninguém chorou
Robert
Fisk | The Independent | Outras Palavras | Tradução Roberto Pires Silveira
Essa
foi a mãe de todas as hipocrisias. Algumas crianças sírias mortas
importam, penso. Outras não. Um assassinato em massa duas semanas
atrás matou crianças e bebês e levou nossos governantes à mais justa
indignação. Mas o massacre deste final de semana na Síria matou ainda
mais crianças e bebês – e mesmo assim não gerou mais que silêncio daqueles que
antes bradaram pela salvaguarda de nossos valores morais. Por que desta vez não?
Quando
um ataque com gás na Síria matou mais de 70 civis em 4 de abril, incluindo
bebês e crianças, Donald Trump ordenou um ataque com mísseis contra a Síria. Seu país
aplaudiu. A imprensa também. Da mesma forma grande parte do mundo. Trump
chamou Assad de “mau” e “um animal”. A União Europeia condenou o regime sírio.
O governo britânico chamou o ataque de “bárbaro”. Quase todos os líderes
ocidentais afirmaram que Assad deveria ser removido do poder.
Desta
vez, quando um homem bomba atacou um comboio de refugiados civis nas
proximidades de Alepo, matando 126 sírios, mais de 80 deles crianças, a Casa
Branca manteve silêncio. Mesmo sabendo que o total de mortes foi maior, Trump
não se lamentou nem mesmo no twitter. A marinha dos Estados Unidos sequer
lançou um disparo simbólico na direção da Síria. A União Europeia se fingiu de
tímida e não quis dizer nem uma palavra. Aquela conversa de “barbarismo” foi
sufocada no ninho pelo governo britânico.
Será
que ninguém no ocidente tem o menor senso de vergonha? Que insensibilidade
terrível. Que desgraça. É ultrajante que a nossa compaixão seja
direcionada, assim que percebemos que talvez este último massacre não mereça
nossa compaixão e nossas lágrimas na medida que o massacre anterior merecera.
Na realidade, não se derramou uma única lágrima para os 126 sírios – quase
todos civis – que foram mortos nas imediações de Alepo, pois eram muçulmanos
xiitas que estavam sendo evacuados de duas vilas em poder do governo (isto é,
de Assad), no norte da Síria. O assassino era obviamente oriundo da Al Nusra
(Al Qaeda), ou de um dos grupos “rebeldes” que nós, ocidentais, armamos – ou
talvez ainda do próprio Estado Islâmico – e assim, esses mortos não são dignos
de nossa compaixão.
A
ONU, como sempre caindo pelas tabelas dos palcos mundiais, falou. O último
ataque foi “um novo horror”. O papa Francisco chamou o ataque de “ignóbil”, e rezou
pela nossa Síria “amada e martirizada”. E mesmo tendo sido criado por um pai
eminentemente anticatólico, penso que os papas vão bem nestes assuntos,
especialmente Francisco: “Bom e velho Papa”. Ora bolas, até mesmo o quase
inexistente “Exército Sírio Livre” opositor de Assad até a medula, condenou o
ataque como sendo “terrorista”.
E
foi só. Passo então a recordar aquelas historinhas tão piegas sobre Ivanka
Trump, uma mãe, especialmente chocada com os vídeos de Khan Shaykun, o lugar
onde o ataque químico de 4 de abril, aconteceu, pressionando seu pai para que
fizesse alguma coisa sobre a questão. Então foi a vez de Federica Mogherini, a
“Alta Representante” da União Europeia para política de segurança e assuntos
externos, que descreveu o ataque como “medonho” – mas insistiu que falava
“antes de tudo como uma mulher”. Também certíssima. Mas o que aconteceu com
todos esses sentimentos maternais – dela e de Ivanka – quando as fotos vieram
do norte da Síria neste final de semana, de bebês aos pedaços e crianças
enroladas em sacos plásticos negros? Silêncio.
Não
restaram dúvidas sobre a deliberada, a crueldade vil do ataque de sábado. O
homem bomba se aproximou dos refugiados com um carrinho de biscoitos para
crianças e batatas fritas – aproximando-se de pessoas, devo acrescentar, que
eram civis xiitas que estavam passando fome debaixo do cerco de rebeldes que se
opõem a Assad – (e claro, que foram armados por nós). Mesmo assim, eles não
contam. Seus “lindos bebezinhos” – estou citando Trump sobre o ataque anterior
com gás – parecem não merecer nossos sentimentos. Por que são xiitas? Por que
os culpados pelo massacre estão associados intimamente conosco, ocidentais? Ou
porque – e aqui está o ponto – eles foram vítimas do tipo errado de assassino.
Tudo
o que queremos agora é culpar o “mau”, o “animal”, o “brutal” Assad, que foi o
primeiro “suspeito” de ter desfechado o ataque de gás em 4 de abril (cito nada
mais, nada menos que The Wall Street Journal) e que em seguida foi
rapidamente acusado pelo ocidente inteiro de total e deliberada
responsabilidade pelo massacre com gás. Ninguém deveria questionar a
brutalidade, a tortura e a massiva opressão do regime. Porém há, na verdade,
sérias dúvidas sobre a responsabilidade de Assad pelo ataque de 4 de abril –
que ele, previsivelmente, negou – mesmo entre árabes que odeiam de morte seu
regime político Baathista e tudo aquilo que ele representa.
Até
mesmo o escritor Uri Avneri, israelense de esquerda – que por um breve período
de sua vida trabalhou como investigador – pergunta por que Assad cometeria esse crime justamente quando
seu exército e seus aliados estavam vencendo a guerra na Síria, quando um
ataque desse tipo com certeza causaria problemas para o exército e o governo
russo, e quando poderia mudar as atitudes cada vez mais amenas do ocidente com
ele, de volta para a opção de apoiar a queda de seu regime de governo.
A
alegação do regime de Assad é que a Síria realmente realizou um ataque que
explodiu um estoque de armas da Al Nusra em Khan Shaykun (ideia adotada também
pelos russos), poderia ser facilmente negada se os (norte)americanos não
tivessem usado precisamente a mesma desculpa para a morte de mais de uma
centena de civis iraquianos em Mosul em Março; os EUA sugeriram que o
bombardeio de um transporte de armas do Estado Islâmico pode ter causado a
morte dos civis.
Acontece
que isso nada tem a ver com o massacre muito mais sangrento que ocorreu no
sábado, atingindo o comboio que se dirigia para o leste de Alepo. Estas vítimas
faziam parte de procedimento padrão de troca massiva de reféns entre o governo
sírio e seus oponentes, nos quais os oponentes sunitas das vilas cercadas pelo
governo sírio ou seus aliados são mandados para Idlib e outras áreas em mãos
dos “rebeldes”, garantindo em troca livre passagem para os habitantes xiitas
daquelas vilas cercadas pelos “nossos” rebeldes, pela Al Nusra e pelo Estado
Islâmico, que permitem que eles deixem as vilas em direção às áreas seguras das
cidades sob controle governamental. Essas pessoas foram as vítimas do ataque de
sábado pelo homem bomba; eram xiitas das vilas de al-Foua e Kfraya, bem como
vários combatentes governamentais, a caminho do que – para eles – seria a
segurança de Alepo.
Se
estes procedimentos constituem ou não uma maneira de fazer uma limpeza étnica,
outra acusação dos inimigos de Assad, é um ponto controverso. O grupo Al Nusra
não foi exatamente convincente nem se empenhou para que os habitantes de
al-Foua e Kfraya ficassem nos locais, porque tinha interesse na volta de seus
combatentes que se encontravam cercados pelo governo nas cidades sob ataque do
exército sírio. No mês passado, o governador de Homs solicitou aos sunitas que
permanecessem na cidade, em vez de tomar os comboios “rebeldes” que demandavam
Idlib. Mas estamos falando de uma guerra civil e esses conflitos lamentáveis
dividem cidades e povoados por gerações. Basta ver o que acontece no Líbano, 27
anos depois do final da guerra civil que aconteceu naquele país.
Mas
o que prova de uma vez por todas a participação inegável do Ocidente nesta
guerra imoral, injusta e aterrorizante é a reação aos dois massacres de
inocentes. Choramos e lamentamos e chegamos a desfechar um ataque com mísseis
por causa daqueles “lindos bebezinhos” os quais acreditávamos terem sido
vítimas do governo Assad. Mas quando os bebês xiitas, tão humanos quanto os
sunitas, foram despedaçados neste final de semana, Trump não poderia ser mais
indiferente. Já aquele espírito maternal demonstrado por Ivanka e Federica
parece ter secado em seus espíritos.
E
nós ainda temos a coragem de dizer que a violência no Oriente Médio nada tem a
ver conosco.
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