Há
muito que escutamos indiscutíveis lições a ensinar-nos o quão saudáveis são as
privatizações para o nosso tecido económico, enquanto elas vão
progredindo, tomando conta de tudo.
José Goulão | AbrilAbril | opinião
Todos
os dias, em ambiente de acrescida e assustadora indiferença, somos testemunhas
de fenómenos absurdos que gradualmente se vão inserindo, com anormal
normalidade, num quotidiano cada vez mais em marcha – assim proclamam os tempos
– que se acha moderno, inovador, de tal maneira prafrentex que até há
quem goste de lhe chamar «progressista».
Isto
por contraponto inquestionável ao «conservadorismo» de quem continua a
defender que o ser humano deve ter direitos e não apenas deveres, uma vida
decente e não uma servidão que alimente os números das estatísticas e os
valores dos lucros ditados pelos sumos-sacerdotes do mercado.
É
a «democracia moderna», sentenciam alguns que ganharam colunas de «referência»
em observadores expressos e todos privados, embora alguns se digam públicos,
correios, diários i jornais das notícias da manhã, da tarde ou da noite, todas
iguais, mais ou menos polidas, por regra contaminadas pela verve do engano,
pelo vírus da falsificação.
Nunca
se explica muito bem o que é essa «democracia moderna», talvez porque faltem
artes mágicas aos colunistas para convencerem leitores, ouvintes e espectadores
de que é marchando em rebanho para a ditadura que se moderniza a democracia.
Por isso navegam discorrendo com impagável sabedoria pelos pântanos daquilo a
que chamam política, uma lama fedorenta e repugnante a que os cidadãos devem
fugir cada um por si para tratarem do que é seu, entregando-se aos deuses ou à
sorte, o que vem a dar no mesmo.
Há
muito que escutamos indiscutíveis lições a ensinar-nos o quão saudáveis são as
privatizações para o nosso tecido económico, coisa que inevitavelmente vai
desaparecendo (o «nosso», claro) enquanto elas vão progredindo, tomando conta
de tudo. Foram-se os bancos, os seguros, os comboios, as camionetas, os navios,
as estradas – os aviões, por enquanto, escaparam por meia fuselagem – a
electricidade, o gás, os telefones, os telemóveis, as telecomunicações, o
prodigioso mundo digital, enquanto a água vai que não vai; foi-se grande parte
do património fundiário onde assentaram hospitais, quartéis, ministérios,
serviços públicos, aeroportos, portos, estaleiros navais, os prosaicos lugares
de estacionamento em alamedas, ruas e becos das grandes, médias e pequenas
cidades.
Vandalizou-se
e liquidou-se a indústria pesada, matou-se a pesca, arrasam-se as florestas,
sujam-se os rios, deixou-se definhar a produção alimentar, substituída agora
por nichos gourmet à disposição de paladares requintados, degustados
por elites universais com papilas aristocráticas. Para a esmagadora maioria dos
cidadãos comuns, e que também precisam de comer para viver, existem as «grandes
superfícies», explorando as «colaboradoras» e
«colaboradores» até ao tutano, chantageando os produtores nacionais que
restam, enquanto importam de todo o mundo até o que pode cultivar-se nas terras
e clima que a natureza nos concedeu.
Estado
que assim vende deve estar podre de rico, deduz-se com a mais inocente das
inocências. Mas assim não é com a generalidade dos Estados onde avança a
«moderna democracia». Estão falidos, endividados como nunca, exangues,
perseguidos, tutelados e policiados por instituições e agentes do mercado que
ninguém elegeu – só o mercado – sugando os pobres dos contribuintes, na
verdadeira acepção da palavra, enquanto os débitos contraídos junto dos que
tanto «ajudam» não deixam de crescer, escarnecendo de tudo quanto diz
fazer-se para os reduzir.
Assim
se percorreu, por cá, o caminho que nos garantiram repleto de coisas boas,
tranquilidade e fartura para depois da entrada na «Europa connosco», que veio
pôr cobro aos desmandos da revolução e garantir a almejada estabilidade. Para
isso cá estava, sempre em vigor como até há pouco, o bendito «arco da
governação», o obreiro disto tudo.
«Menos
Estado, melhor Estado», repetem-nos até à náusea; é a «crise geral»,
explicam-nos com descarada hipocrisia; não há outra solução que não
seja «cumprir o défice», informam-nos compondo o falso ar compungindo de
que lá querer, queriam, mas não podem, ou não os deixam…; e, porém, os limites
do défice que imobilizam o Estado, travando qualquer ousadia de
desenvolvimento, foram definidos algures, por alguém instalado em vida regalada
e na santa ignorância dos povos, os quais, como é modernamente democrático, não
foram tidos nem achados em matéria que eclipsa a sua soberania.
Como
é sabido, mas não faz mal recordar, depois do pontapé de saída do Dr. Soares, o
privatizador-mor foi o professor Cavaco Silva, que só mais não saldou do
património público porque tempo não teve – mas outros se apressaram a tomar-lhe
o testemunho, fossem os tempos de vacas gordas, felizes e até risonhas, ou de
bezerras esqueléticas e famintas.
Vieram
ainda as PPP, parcerias público-privadas, para que não se dissesse que o Estado
não servia para nada. Serve, sim senhor: para arcar com os prejuízos e
fracassos, enquanto os genuínos seguidores do mercado encaixam os lucros e
gerem as abastanças em proveito privado.
E
se, por um qualquer azar próprio de quem joga nestas coisas lúdicas que são as
roletas financeiras, a vida corre mal a uma instituição bancária que o Estado
vendeu a preço de sucata, não haverá problema. Os contribuintes são democraticamente
chamados a socorrê-la, através da máquina estatal que resta; é bom que o façam,
se querem salvar parte dos seus depósitos e não desejarem ver os frutos de uma
vida esfumar-se numa aposta de risco que correu mal, jogada enquanto eles
permaneciam na cegueira absoluta da ignorância.
Como
uma mão lava a outra – assim é o bom-tom no mundo dito dos negócios – a
instituição bancária vítima da má sorte tem ainda outras ajudas: por exemplo,
pode financiar-se no Banco Central Europeu a juros zero, ou mesmo negativos, de
modo a sanar o problema; mas o Estado através do qual os contribuintes ajudaram
o banco não pode recorrer à mesma árvore das patacas: tem de financiar-se nos
mercados, a juros que os especuladores podem elevar a valores astronómicos.
Encargos esses com os quais o Estado volta a penalizar os contribuintes, porque
precisa de combater a dívida mantendo-se dentro dos limites do défice. A isto
chama-se gratidão e livre concorrência, segundo o léxico vigente na «democracia
moderna».
No
meio de tão abundante matéria putrefacta não admira que haja absurdos que
passam por muitos de nós como entre pingos da chuva, perfeitamente incólumes. E
assim continuariam, não se dessem fenómenos estranhos e imprevistos como o do
recente furto de armas – reais ou virtuais – em Tancos. Veio então à superfície
uma realidade de que nem o saudoso Solnado se lembraria, no auge do nonsense,
para compor a sua ida à guerra: a segurança de quartéis das Forças Armadas
Portuguesas está entregue a empresas privadas.
É
verdade que tais empresas são, em numerosos casos, criadas e geridas por
militares na reserva; sabemos ainda que a NATO, o facho que ilumina os
exércitos «libertadores» que cavalgam esse mundo fazendo guerras,
recorre amiúde a subempreitadas privadas para colaborar nas agressões, às quais
é confiado, aliás, muito do trabalho mais sujo de sangue.
Porém,
verificar que as Forças Armadas Portuguesas, cujos comandos e os ministros
tutelares tanto se orgulham das gestas além-mar e além-terras para instaurar a
«democracia moderna» – por exemplo em situações exemplares como o Kosovo,
a Bósnia-Herzegovina, a República Centro Africana e o Mali –, entregam a
segurança dos seus condomínios a exércitos privados parece um sinal de pobreza
envergonhada e pouco digna do garbo das fardas e do brilho dos sabres, das
armas em geral.
Sabíamos
que, por necessidades de salvaguarda do equilíbrio e da estabilidade da
economia, e certamente por obrigações decorrentes do maior dos maiores dos
compromissos – o respeito pelas décimas do défice –, há muito que o Estado vem
entregando os seus ministérios, as suas instalações civis em geral a empresas
privadas de segurança, reservando salários míseros e carreiras tristes para os
agentes da PSP e da GNR, frequentemente chamados a comprar as próprias fardas.
Digamos
que tudo isto comprova que o mercado não deixa que se brinque com a livre
iniciativa e o primado do privado. Mas que tal austeridade – que talvez
não seja tão austera em matéria de lucros e distribuição de dividendos – se
tenha estendido às Forças Armadas, esse orgulhoso braço da NATO, faz pensar
muito sobre o poder do objectivo pretendido, e raramente confessado, da
privatização absoluta dos Estados.
Ou,
pelo menos, da supressão total dos serviços disponíveis aos cidadãos, manobra à
qual corresponde uma transformação do que resta dos aparelhos estatais em
máquinas de apoio ao domínio ditatorial do mercado. Deixando os cidadãos
submetidos a duplas tributações obrigatórias: ao falso público e ao privado
genuíno, que tudo quer e tudo obtém.
Assim
se atingindo o estado pleno da «democracia moderna».
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