domingo, 13 de maio de 2018

OS PUNHAIS SANGRENTOS DE TROTTA E VORSTER - Martinho Júnior


MEMÓRIA TRAUMÁTICA DUM PEQUENO POVO EM INTENSA BUSCA DE JUSTIÇA E DE PAZ, CONTRA O COLONIALISMO E O “APARTHEID”

Martinho Júnior | Luanda 

Unindo-me à corrente que lembra a memória do 40º aniversário do hediondo massacre de Cassinga (“Operation Reindeer”).

1- A história contemporânea da Namíbia é insuficientemente conhecida por que muito pouco divulgada e notícias sobre aquele país, são uma quase raridade nos meios internacionais, salvo nos que se referem ao turismo, à natureza e parques naturais, ou aos diamantes…

Isso não acontece por acaso pois a Namíbia que provém da ingerência colonial derivada da Conferência de Berlim, tem uma história de resistência e de dignidade incomparável, se atendermos ao pulsar de seu chão pejado de mártires e de heróis durante quase todo o século XX, com dois episódios extremos:

O genocídio de herero e namaqua, entre 1904 e 1907, associado à apropriação de terras pelos colonos e à consequente revolta daqueles povos face ao apocalipse da opressão e quando, por fim, agudizando ainda mais a sua situação, uma praga devastou as suas culturas;

O massacre de Cassinga, a 4 de Maio de 1978 (há 40 anos), ocorrido em solo angolano quando o “apartheid” desencadeou a“Operação Reindeer”, até àquela data a segunda maior operação depois de “Operação Savana” no trimestre final de 1975.

Verificando bem, o genocídio herero e namaqua ocorreu 33 anos antes do início da IIª Guerra Mundial e o massacre de Cassinga 33 anos depois do fim da IIª Guerra Mundial, tendo tudo a ver com a “fermentação” colonialista, fascista e nazi nesse ciclo-revolver, marcando o compasso de três gerações!...


2- A Namíbia não sofreu a sangria transatlântica de escravos na escala e nos termos de outras regiões da costa ocidental de África: por um lado a sua população sempre foi relativamente escassa, por outro a navegação à vela afastava-se da Costa dos Esqueletos, ou das areias do deserto do Namibe que chegavam (e chegam) à borda de água, em mais de metade dos seus 1.572 km de costa.

Mesmo assim houve por exemplo, entre 1850 e 1910, na Ovambolândia, tráfico de escravos com implicações alemãs e portuguesas; a escravatura segundo a perspectiva colonial alemã, era mais para “consumo interno” do que para um negócio “transatlântico”!

A chegada do expansionismo alemão, motivado pela construção do seu império colonial em plena época de revolução industrial, tornou o Protectorado, por eles denominado de Sudoeste Africano (1884), alvo de acções repressivas muito fortes, sobretudo durante os anos das disputas sobre espaço vital e terras aptas à agricultura e criação de gado, num território onde a água era (e é) cada vez mais escassa.

Esse é uma das provas que os conflitos relativos a disputas sobre espaço vital e acesso à água interior não é algo que nos vai surgir algures no futuro!

Ao genocídio, a ocupação alemã acrescentou até ao fim de sua estadia no Sudoeste Africano, a utilização dos sobreviventes em regime de escravatura, ou como mão-de-obra barata, particularmente nas minas que haviam sido entretanto abertas devido à descoberta de diamantes e pedras semipreciosas… uma “herança” que o “apartheid”, por tabela o cartel dos diamantes, não desdenharam nos anos de ocupação da África do Sul.

São esses de facto, não só os antecedentes que influenciaram o surgimento do nazismo na Europa, do “apartheid” na África Austral e algumas de suas sequelas, (entre elas a de Savimbi, cujo comportamento correspondeu aos parâmetros dessa “deriva”), mas também foram providenciando o quadro das ambiguidades de potências como a dos Estados Unidos e seus vassalos (Portugal do “arco de governação” incluído), nos relacionamentos para com África, favorecendo por isso mesmo os regimes vassalos do quadro das políticas neocoloniais, como as levadas a cabo pelo Senegal, a Costa do Marfim e o Zaíre, entre outros.

3- Os documentos referentes à época indicam que no início do exercício prussiano no Sudoeste Africano, houve alguma resistênciapor parte dos Khoikhoi logo à sua chegada.

Apesar de uma paz ténue ter sido declarada em 1894, o contencioso em relação aos hereros e namaquas que se seguiu a essa resistência, é já resultado directo do choque provocado pela implantação do próprio colonialismo alemão, não por causa de sua chegada.

Nesse ano, Theodor Leutwein tornou-se governador do território que passou por um período de rápido investimento colonial, enquanto a Alemanha enviou a “Schutztruppe”, ou as tropas coloniais imperiais, evocando a necessidade de “pacificação da região”, logo que os colonos começaram a apropriação indevida de terras.

Dessa maneira os colonos europeus foram encorajados a instalar suas iniciativas em terras tomadas aos africanos, o que causou um lógico descontentamento e um crescente ódio para com a colonização.

Já no início do século XX, a terra e o gado, essenciais para a definição dos estilos de vida das culturas dos hereros e dos namaquas, passaram coercivamente para as mãos dos alemães recém-chegados ao Sudoeste de África, com o domínio colonial prussiano do IIº Reich a enveredar por uma escalada cada vez mais arrogante e repressiva até desembocar rapidamente num brutal genocídio.

Os africanos começaram nessa época a serem sujeitos à escravatura, ou a trabalhos de mão-de-obra barata e explorada, sendo as suas terras frequentemente apreendidas e entregues a colonos, numa escala que punha em causa a sua própria sobrevivência cultural e física.

Em 1903, alguns grupos de namaquas revoltaram-se sob o comando de Hendrick Witbooi e cerca de 60 colonos alemães foram mortos.

Os namaquas enveredaram por uma guerrilha que teve de criar um fulcro no sudeste do território, numa região inóspita, pedregosa e de muito difícil acesso, precisamente no canto sudeste do país.

Os desgastes provocados pelas forças de Hendrick Witbooi levaram seus inimigos a considerá-lo como um “Napoleão africano”…

Um dia o Presidente da SWAPO, Sam Nujoma, referiu-se assim a esse herói da resistência da Namíbia:

“Kaptein Hendrik Witbooi was the first African leader who took up arms against the German imperialists and foreign occupiers in defence of our land and territorial integrity.

We, the new generation of the Land of the Brave, are inspired by Kaptein Hendrik Witbooi’s revolutionary action in combat against the German Imperialists who colonised and oppressed our peoples.

To his revolutionary spirit and his visionary memory we humbly offer our honour and respect”…

Os hereros juntaram-se então a eles, em Janeiro de 1904, pois já tinham cedido mais de um quarto dos seus treze milhões de hectaresaos colonos alemães em 1903 e isso antes da conclusão da linha férrea Otavi, a partir da costa africana e em direcção aos assentamentos alemães no interior.

A nova política de cobrança de dívidas, aplicada em Novembro de 1903, desempenhou também um papel impulsionador da revolta herero: os comerciantes alemães funcionaram desde a sua instalação, como pequenas entidades que possibilitavam crédito para com os hereros e uma parte dessa dívida foi cobrada; a partir do momento em que os hereros sofreram contudo o assalto colonial às suas terras e ao seu gado, as dificuldades de pagamento das dívidas cresceram de tal ordem que deixaram logicamente de ser pagas por empobrecimento dos devedores.

Na tentativa de corrigir este problema crescente, o governador Leutwein decretou que todas as dívidas não pagas seriam anuladas no ano seguinte, mas com a falta de dinheiro vivo, os comerciantes, muitas vezes apreendiam gado, ou quaisquer objetos de valor dos hereros, a fim de amortizar os seus empréstimos.

Tornado um procedimento cada vez mais extensivo, acabou por contribuir para fomentar um ressentimento crescente por parte dos hereros em relação aos alemães que evoluiu para o desespero quando eles viram que os funcionários alemães eram cúmplices deste impiedoso esquema.

Subjacente a essas razões aumentou a tensão racial entre os dois grupos por que os colonos alemães começaram a ver os africanos nativos como uma mera fonte humilde de mão-de-obra barata, ou escrava…

Entre os direitos de um europeu e um africano, a título de exemplo, a liga colonial alemã passou a considerar que no que diz respeito a questões legais, o depoimento de sete africanos era equivalente à de um colono.

Os hereros, oprimidos pelos dispositivos coloniais que chegavam a pôr em causa a sua própria cultura ancestral, sentiram que suas ações eram justificadas na altura de se revoltarem, no início de 1904 sob a chefia de Samuel Maharero.

Na revolta mataram cerca de 120 alemães, incluindo mulheres e crianças, e destruíram suas fazendas, cercando Okahandja e cortando as suas ligações com Windhoek, a capital colonial.

4- O governador Leutwein foi forçado a pedir reforços e um funcionário experiente, proveniente da capital alemã, Berlim, o Tenente-General Lothar von Trotha foi nomeado Comandante em Chefe da África do Sudoeste Alemã a 3 de Maio de 1904, chegando ao terreno à frente duma força com 14.000 soldados no dia 11 de Junho seguinte.

civil Leutwein era subordinado ao Ministério dos Negócios Estrangeiros Coloniais prussiano, dependendo do chanceler Bernhard von Bülow, mas o general Trotha, respondia aos militares do Estado-Maior alemão, que por sua vez dependiam directamente doKaiser Guilherme II.

O governador Leutwein queria derrotar os rebeldes hereros e namaquas, mas com a abertura de negociações logo que se chegasse à rendição com os que restassem dos campos de batalha, a fim de tentar consolidar uma solução política, mas o general Trotha, obstinadamente apostou em esmagar a resistência, exterminando as duas comunidades africanas.

A comunidade herero, avaliada em cerca de 60.000 pessoas, perdeu assim cerca de 40.000, com os restantes, em número insignificante, a refugiarem-se na então Bechuanalândia (hoje Botswana)…

Depois da batalha de Waterberg, em que as tropas de von Trotta derrotaram de 3 a 5.000 hereros, os alemães iniciaram o genocídio e, dos 24.000 que fugiram para o Kalahári para atingir a Bechuanalândia, só alcançaram o seu destino cerca de 1.000!... Todos os outros não sobreviveram à travessia do Kalahári!

Foi assim que foi feito o primeiro genocídio do século XX, uma experiência traumática de carácter racista, que motivou o mito nazi da superioridade rácica alemã, percursora dos campos de concentração onde se levaram a cabo as medidas similares do holocausto.

É evidente que essa saga foi continuada pelo “apartheid” em conformidade com as suas ideologias e práticas que se espelharam também no Sudoeste Africano ocupado por suas forças…

Influenciou ainda o comportamento ideológico e prático de Savimbi, arrogante e sanguinário inclusive em relação aos seus próprios seguidores.


5- O massacre de Cassinga (que atesta o que acima escrevi, 33 anos depois do fim da IIª Guerra Mundial) por seu turno, sendo outro episódio sangrento, inscrito na luta de libertação levado a cabo pela SWAPO, a organização reconhecida internacionalmente como a legítima representante do povo da Namíbia, foi executado como uma medida de retaliação brutal do “apartheid” sobre uma posição que albergava sobretudo refugiados namibianos chegados a Angola, deliberadamente confundidos como “força inimiga”.

Planificada como um operação militar (“Operation Reindeer”) que implicava um bombardeamento aéreo, seguido de desembarque e assalto de forças especiais, reeditou uma experiência que as South Africa Defence Forces já haviam adquirido desde 1968 no leste de Angola, quando os militares sul-africanos em reforço das Forças Armadas Portuguesas actuavam com os Comandos e os Flechas do Inspector da PIDE/DGS Óscar Piçarra Cardoso, durante as operações Siroco contra as bases do MPLA no leste de Angola.

O inesperado ataque foi simultâneo em três posições: Cassinga (250 km dentro de Angola), Chetequera (a 25 km da fronteira) e Dombondola, tendo pela primeira vez sido utilizados blindados de transporte de infantaria Ratel nas duas últimas localidades próximas da fronteira.

Cassinga era o alvo Alfa, Moscovo, Chetequera o alvo Bravo, Vietname e posições a leste de Chetequera, o alvo Charlie.

Foi o próprio Primeiro-Ministro John Vorster que deu ordem para desencadear a operação e, com isso, tornou-se no maior responsável pelo massacre, secundado pela cadeia de comando, até chegar aos oficiais no terreno, parte deles os habituais das acções da internacional dascista contra Angola (Jan Breytenbach, Deon Ferreira…).

6- As primeiras forças que acorreram a Cassinga compunham a unidade das Forças Armadas Revolucionárias de Cuba na altura estacionada em Tchamutete, o Grupo Tático nº 2, que entrou em combate com as unidades das South Africa Defence Forces (que integravam o Batalhão Búfalo) e fizeram o rescaldo a quente das vítimas.

Neste ano em que se evocou o 40º aniversário sobre o assalto a Cassinga, Cuba está em condições de considerar que a façanha do“apartheid” foi sobretudo um hediondo massacre de civis e jamais um acto heróico, conforme se foram vangloriando os fanfarrões do“apartheid”!

Num artigo publicado em Cubadebate, “Un NO a la Controversia sobre Cassinga”, Yeniska Martínez Díaz conclui de forma fundamentada o massacre:

“Cassinga fue el inicio en que cubanos y namibios derramaran juntos su sangre contra el racismo y el colonialismo.

Toda Cuba se une al tributo de Namibia y Angola que juntos desde el año 2016, erigen monumento en Cassinga.

Se trata en este 40 Aniversario, del homenaje a los valores ineludiblemente vitales para cualquier contexto epocal.
Cumplamos con Fidel, quien en 1986 expresó: …Y no podrá olvidarse jamás ―y espero que la historia no olvide jamás― aquella matanza de Cassinga… Nunca los podremos olvidar, fue una prueba de cómo actúan estos elementos racistas y fascistas, un acto de terror inconcebible”…

7- Onde quer que seja, de há muito que tem sido possível definir a fronteira entre o que há civilização pertence e o que é da barbárie, mais esclarecidamente ainda quando é um nazismo, um fascismo ou um “apartheid” que se move em seus labirintos de trevas.

Cuba socialista e revolucionária tem um diagnóstico completo quer do massacre em si, quer dos traumas dele advenientes, quer de todas as outras implicações humanas e sócio-políticas: foram os cubanos que resgataram os sobreviventes, trataram dos feridos e proporcionaram aos jovens sobreviventes, em Cuba e com todo o carinho, respeito, dignidade e amor, o ensino escolar que os projectou para a vida!

A memória do massacre de Cassinga (4 de Maio), é próxima da data em que se celebra a Vitória da União Soviética em Berlim, que resultou na capitulação do IIIº Reich (9 de Maio) e, apesar de em épocas tão distintas, os dois acontecimentos relacionam-se ainda com o carácter do Iº genocídio no século XX, o massacre de hereros e namaquas pelos prussianos que colonizaram o Sudoeste Africano.

Os punhais sangrentos de von Trotta e de Vorster, têm tudo a ver com os punhais sangrentos de Hitler, Mussolini, Franco ou Salazar!

Há estados, nações e povos que resolutamente assumem o que é da civilização, por que a barbárie, desde o início da revolução industrial produzida pelo capitalismo, cresceu como nunca e foi (e continua a ser) a causadora dos maiores dramas da humanidade e dos maiores danos em relação à Mãe Terra.

Relembrar a história, é sem dúvida preocuparmo-nos em consciência em avaliar onde nos devemos situar, que opções tomar e que mensagens devemos transmitir às futuras gerações!

Martinho Júnior - Luanda, 10 de Maio de 2018


Imagens:
1 e 2 – genocídio herero;
3 – mapa referente ao espectro das acções do “apartheid” na Namíbia e em Angola;
4 – massacre de Cassinga;
5 – vítimas do holocausto na Alemanha nazi.

Sem comentários:

Mais lidas da semana