Os EUA perdem rapidamente sua
capacidade de liderança. China e Rússia avançam, mas não se impõem. Neste
vácuo, surgem desvarios — e crescem os riscos
Immanuel Wallerstein* | Outras
Palavras | Tradução: Inês Castilho
A arena mais fluida do
sistema-mundo moderno, que se encontra em crise estrutural, é possivelmente a
arena geopolítica. Nenhum país chega perto sequer de dominar essa arena. O
último poder hegemônico, os Estados Unidos, vem há muito agindo como um gigante
desamparado. É capaz de destruir, mas não de controlar a situação. Ele ainda
proclama as regras que outros devem supostamente seguir. Mas pode ser — e é —
ignorado. Há uma longa lista de países que agem como consideram conveniente, a
despeito das pressões de outros países para agir de modo específico. Uma olhada
ao redor do globo irá rapidamente confirmar a falta de habilidade dos Estados
Unidos em conseguir o que desejam.
Além dos Estados Unidos, os dois
países que têm maior poder militar são a Rússia e a China. Antes, eles
tinham de mover-se cuidadosamente para evitar repreensões dos Estados Unidos. A
retórica da Guerra Fria descrevia dois campos geopolíticos em competição. A
realidade era diferente. A retórica simplesmente mascarava a relativa
efetividade da hegemonia dos EUA. Agora as coisas estão virtualmente ao
contrário. Os Estados Unidos precisam mover-se cuidadosamente em relação à
Russia e à China para evitar perder a capacidade de obter cooperação em suas
prioridades geopolíticas.
Vejamos a seguir os aliados
considerados mais fortes dos Estados Unidos. Podemos polemizar sobre qual deles
é ou foi, durante muito tempo, o aliado “mais próximo”. Escolha entre Grã
Bretanha e Israel, ou até mesmo, dirão alguns, Arábia Saudita. Ou liste os
antigos parceiros confiáveis dos Estados Unidos, tais como Japão e Coreia do
Sul, Canadá, Brasil e Alemanha. Chame-os de “números dois”.
Olhe agora o comportamento de
todos esses países nos últimos vinte anos. Digo “vinte” porque a nova realidade
é anterior ao regime de Donald Trump, embora ele tenha sem dúvida reduzido a
capacidade dos Estados Unidos em conseguir o que deseja.
Tome o caso da península coreana.
Os Estados Unidos querem que a Coreia do Norte renuncie às armas nucleares.
Esse é um objetivo frequentemente repetido por Washington. Era verdade quando
Bush e Obama eram presidentes. Continua a ser verdade com Trump. A diferença é
a maneira de tentar alcançar esse objetivo. Antes, as ações dos EUA utilizavam
um grau de diplomacia juntamente com sanções. Isso refletia o entendimento de
que muitas ameaças públicas dos EUA eram contraproducentes. Trump acredita na
ação contrária. Vê ameaças públicas como a arma básica de seu arsenal.
Contudo, Trump oscila. Um dia
ameaça a Coreia do Norte com devastação. Mas no dia seguinte faz do Japão e da
Coreia do Sul seus alvos principais. Trump diz que eles estão dando apoio
financeiro insuficiente para os custos gerados pela presença armada
contínua dos EUA. Assim, entre as duas posições dos EUA, nem o Japão nem a
Coreia do Sul têm a sensação de que serão realmente protegidos.
O Japão e a Coreia do Sul têm
lidado com seus medos e incertezas de maneira oposta. O atual regime japonês
tenta assegurar garantias dos EUA oferecendo total apoio público às (mutantes)
táticas dos EUA. Espera dessa forma agradar suficientemente os Estados Unidos,
de modo que a receber as garantias que deseja. O regime sul-coreano atual usa
tática completamente diferente. Está muito claramente perseguindo relações
diplomáticas mais próximas com a Coréia do Norte, contrariando o desejo dos
EUA. Espera dessa forma que o regime norte-coreano responda concordando em não
agravar o conflito.
Se alguma dessas abordagens
táticas irá estabilizar a posição do EUA, é totalmente incerto. O certo é que
os Estados Unidos não estão no comando. Tanto o Japão quanto a Coreia do Sul
estão buscando silenciosamente armamentos nucleares para fortalecer sua
posição, já que não podem saber o que o dia seguinte trará, em relação aos
Estados Unidos. As reações geradas pela fluidez da posição dos EUA enfraquecem
o avanço do poder norte-americano.
Tome ainda a situação ainda mais
relevante no chamado mundo islâmico, do Magreb à
Indonésia, e particularmente na Síria. Cada grande poder na região (ou que se
relaciona com a região) tem um primeiro “inimigo” (ou inimigos) diferente. Para
a Arábia Saudita e Israel, no momento é o Irã. Para o Irã, são os Estados
Unidos. Para o Egito, é a Irmandade Muçulmana. Para a Turquia, os curdos. Para
o regime do Iraque, os sunitas. Para a Itália é a Al Qaeda, que está tornando
impossível controlar o fluxo de imigrantes. E assim por diante.
E para os Estados Unidos? Quem
sabe? Esse é o medo essencial de todos os outros. Os Estados Unidos no momento
parecem ter duas prioridades bem diferentes. Num dia, é o consentimento
da Coreia do Norte aos imperativos dos EUA. No outro, vai encerrar o
envolvimento dos EUA na região do Leste Asiático, ou pelo menos reduzir os
gastos financeiros. O resultado é que são cada vez mais ignorados.
Poderíamos traçar cenário
semelhante em outras regiões ou sub-regiões do mundo. A lição chave a tirar é
que o declínio dos Estados Unidos não foi seguido por outro poder hegemônico.
Ele simplesmente desdobrou-se num ziguezague caótico — a fluidez de que
falamos.
Este, claro, é o grande perigo.
Acidentes nucleares, ou erros, ou desvarios repentinos estão na cabeça de todo
o mundo, especialmente na das forças armadas do mundo. Como lidar com esse
perigo é o mais significativo debate geopolítico de curto prazo.
* Immanuel Wallerstein - Um dos intelectuais de maior
projeção internacional na atualidade. Seus estudos e análises abrangem temas
sociólogicos, históricos, políticos, econômicos e das relações internacionais.
É professor na Universidade de Yale e autor de dezenas de livros. Mantém um
site onde publica seus textos (http://www.iwallerstein.com/).
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