quinta-feira, 2 de agosto de 2018

Edward Snowden, de perseguido a esquecido


Há cinco anos, ex-analista da NSA que revelou atividades ilícitas do serviço secreto dos EUA está asilado em Moscou. Hoje, quase não se fala mais dele, e pouco mudou quanto à proteção de dados desde o vazamento.

Miodrag Soric * | opinião

Durante dias, semanas até, o nome Edward Snowden estampou as manchetes da imprensa internacional. Ex-colaborador do serviço secreto dos Estados Unidos, cinco anos atrás ele divulgou que a agência espionava milhões de pessoas, coletando, em parte de forma ilegal, dados de aliados e inimigos – da chefe de governo alemã, Angela Merkel, a terroristas.

Para a CIA e a NSA, praticamente todo mundo é suspeito de terrorismo, até mesmo os próprios compatriotas. Em março de 2013, o ex-diretor de Inteligência Nacional americana James Clapper declarou a uma comissão parlamentar que não coletava dados de americanos. Hoje se sabe que ele mentiu sob juramento. Porém nunca foi punido. O Estado de direito americano acaba onde começa o serviço secreto.

Snowden atacou a mania de coletar das agências de inteligência e revelou com que negligência Facebook e outras empresas de TI tratavam os dados de seus clientes. Ele abriu muitos olhos para o fato de que, para a maioria dos usuários de smartphones e computadores, privacidade praticamente não existe mais.

A vigilância, a monitoração por "big brothers" se transformou numa triste realidade: já anos atrás, empresários e espiões formaram uma nefasta aliança para escrutinizar tudo e todos, sempre sob a nobre justificativa de só querer o melhor para os cidadãos. Snowden não simplesmente condenou isso, ele apresentou provas de que as coisas realmente funcionam assim.

Em suas revelações, ele tomou o cuidado de não colocar em risco operações secretas em curso, nem vidas humanas, e não entregou à imprensa tudo o que sabia. Mas isso não o colocou a salvo das indefensáveis acusações de quase todos os políticos americanos, que o insultaram de traidor da pátria.

John Bolton, o atual assessor de segurança do presidente Donald Trump, queria ver Snowden "pendurado em um carvalho bem grande". Por quê? Por ter dito a verdade? Quem pergunta que danos concretos o whistleblower causou à inteligência americana até hoje não recebe uma resposta satisfatória. No entanto, ele está ameaçado de pena de morte, caso retorne aos EUA.

Mas no momento não parece que esse vá ser o caso. Pouco se fala de Snowden. Sua fuga das forças de segurança foi acabar justamente na Rússia, um país dominado pelos siloviki, os políticos dos serviços secreto e militar; um Estado onde liberdade de imprensa e de opinião são restritas. Até onde se pode prever, "proteção de dados" permanecerá sendo uma palavra estrangeira para os russos.

Snowden não fecha os olhos diante dessa realidade e critica explicitamente o Kremlin. Não, ele não é um traidor, nem um desertor: ele é um perseguido político que acabou encurralado na Rússia, porque os países da Europa Ocidental, inclusive a Alemanha, lhe recusaram asilo.

Os europeus não querem problemas com os Estados Unidos, no que os cínicos denominam realpolitik. Para os europeus, as boas relações com Washington são mais importantes do que conceder asilo a um homenzinho franzino, que mereceu reconhecimento de todo o mundo por agir em nome da democracia e do Estado de direito.

Sem dúvida é uma ironia da história Snowden estar agora vivendo escondido em Moscou. Em mais de um sentido: Trump conquistou a presidência com uma margem ultra-apertada, e sabe-se que dados do Facebook auxiliaram a firma Cambridge Analytica a influenciar a eleição a favor do republicano. Trump nunca vai poder acusar ninguém disso.

Mas seu antecessor, Barack Obama, tem que aceitar uma acusação: ele deveria ter aproveitado as revelações de Snowden para proteger melhor a privacidade de seus cidadãos. Isso talvez tivesse pelo menos dificultado as coisas para a Cambridge Analytica.
E aí, quem sabe, os americanos teriam um outro presidente. E talvez a chefe da CIA fosse outra pessoa, e não Gina Haspel, responsável por supervisionar a tortura em prisões secretas dos EUA na Tailândia.

*Deutsche Welle

EUA x Rússia | A resposta agressiva às negociações


Manlio Dinucci *

O conflito entre o capitalismo financeiro transnacional e o capitalismo produtivo nacional entra numa fase de paroxismo. De um lado, os Presidentes Trump e Putin negociam a defesa conjunta dos seus interesses nacionais. Do outro, o principal quotidiano dos USA e do munda acusa o Presidente americano de alta traição, enquanto as Forças Armadas USA/NATO se preparam para a guerra contra a Rússia e contra a China.

"Vocês atacaram a nossa democracia. Para nós, não interessa os vossos desmentidos de habilidosos inveterados. Se insistirem nesse procedimento, considerá-lo-emos um acto de guerra": assim é que Trump deveria ter declarado a Putin, na Cimeira de Helsínquia.

Afirma-o em La Repubblica, Thomas Friedman, conhecido editorialista do New York Times, acusando o Presidente russo de ter “atacado a NATO - pilar fundamental da segurança internacional, fazendo perder a estabilidade à Europa, bombardeado milhares de refugiados sírios, fazendo-os refugiar-se na Europa”. Acusa, igualmente, o Presidente dos Estados Unidos de ter “rejeitado o juramento da Constituição” e de ser “um operacional dos serviços secretos russos (Br. Inteligência)” ou de querer desempenhar essa função.

O que Friedman designa como linguagem ofensiva, é a posição de uma poderosa frente interna e internacional (da qual o New York Times é um dos principais porta-vozes) oposta às negociações USA-Rússia, que deviam prosseguir com o convite de Putin à Casa Branca. No entanto, existe uma diferença fundamental. Embora as negociações ainda não tenham produzido ocorrências, a oposição a essas mesmas negociações manifesta-se não só por palavras, mas sobretudo, por factos.

Deteriorando o clima descontraído da Cimeira de Helsínquia, o sistema bélico planetário dos Estados Unidos está a intensificar os preparativos de guerra, desde o Atlântico ao Pacífico:

Depois de ter desembarcado em Antuérpia, uma brigada blindada USA com uma centena de tanques e um milhar de veículos militares, chegou a Roterdão uma brigada aérea USA com 60 helicópteros de ataque. Estas e outras forças USA/NATO estão instaladas perto do território russo, no âmbito da operação Atlantic Resolve, lançada em 2014, contra a “agressão russa”.

Numa atitude contra a Rússia, a Polónia solicitou a presença permanente de uma unidade blindada USA no seu território, oferecendo-se para pagar anualmente, de 1,5 a 2 biliões de dólares.

Ao mesmo tempo, a NATO intensifica o treino e o armamento de tropas, na Geórgia ena Ucrânia,candidatas a tornarem-se países membros da Aliança na fronteira com a Rússia.

Entretanto, o Congresso dos EUA recebe com todas as honras, Adriy Parubiy - fundador do Partido Nacional Socialista de acordo com o modelo do Partido Nacional Socialista de Adolf Hitler - chefe dos grupos paramilitares neonazis utilizados pela NATO no putsch da Praça Maidan.

O Comando NATO, de Lago Patria (JFC Naples) - às ordens do Almirante James Foggo, que também comanda as Forças Navais USA na Europa e as destinadas à África - está em plena actividade para organizar o grande exercício Trident Juncture 18, no qual participam 40.000 militares, 130 aviões e 70 navios de guerra de mais de 30 países, incluindo a Suécia e a Finlândia, membros da NATO. O exercício, que ocorrerá em Outubro, na Noruega e nos mares adjacentes, simulará um cenário de “defesa colectiva”, evidentemente, contra a “agressão russa”.

No Pacífico, acontece de 27 de Junho a 2 de Agosto, o grande exercício naval RIMPAC 2018 - organizado e dirigido pelo U.S. Indo-Pacific Command/USINDOPACOM, o Comando USA que abrange os oceanos Índico e Pacífico - com a participação de 25.000 marinheiros e fuzileiros navais, mais de 50 navios e 200 aviões de guerra.

O exercício – no qual também participam a França, a Alemanha e a Grã-Bretanha – é, nitidamente dirigido contra a China, que o Almirante Phil Davidson, Comandante da USINDOPACOM,designa como “grande potência rival que prejudica a ordem internacional para reduzir o acesso USA à região e tornar-se a potência preponderante”.

Quando Trump se encontrar com o Presidente chinês, Xi Jinping, Friedman acusá-lo-á de conivência não só com o inimigo russo, mas também com o inimigo chinês.


* Geógrafo e geopolítico. Últimas publicações : Laboratorio di geografia, Zanichelli 2014 ; Diario di viaggio, Zanichelli 2017 ; L’arte della guerra / Annali della strategia Usa/Nato 1990-2016, Zambon 2016.

Brasil | Um projeto naufragou. Mas como resgatar o país?


Dois anos depois do golpe, direita tradicional patina. População percebe fracasso de seu programa. Mas reverter as medidas exigirá enorme esforço e sabedoria — nas eleições e depois

Paulo Kliass | Outras Palavras

A aproximação crescente da data das eleições parece provocar um aumento na taxa de desespero dos setores ligados ao financismo e às elites mais reacionárias e conservadoras de nosso País. Afinal, quando se aventuraram pela estratégia desestabilizadora do “golpeachment”, não poderiam jamais imaginar que o cenário às vésperas do pleito de 2018 fosse o que vivemos atualmente.

Desde o momento em que se viram frustradas com o anúncio oficial da derrota de Aécio Neves em outubro de 2014, as forças políticas capitaneadas pelo PSDB atraíram o PMDB de Temer e demais partidos da sopa de letrinhas do fisiologismo para a deposição a qualquer custo da presidenta recém-eleita. Em seu sonho idealizado do processo, bastaria primeiro tirar a Dilma que depois todas as portas do paraíso se abririam para um tranquilo e folgado retorno ao poder, do qual o povo os havia retirado pelo voto em 2002. E, vale a pena recordar, essa opção havia sido reconfirmada também de forma sucessiva em 2006, 2010 e 2014.

Para tanto, os integrantes da elite foram convencidos pelos formadores de opinião do mundo das finanças de que um “esforço duro e responsável” seria mais do que suficiente para recolocar a economia nos eixos e abrir o caminho para a vitória eleitoral na sequência. Assim, a indicação tão sonhada da duplinha dinâmica do sistema da banca no comando da economia foi comemorada com fogos de artifício. Representantes do Bank of Boston e Itáu/Unibanco passaram a compartilhar as cadeiras do Ministério da Fazenda e do Banco Central. Afinal, não tinha como dar errado a opção pela “competência técnica e profissional” de Meirelles & Goldfajn. Ambos se puseram em campo a serviço do aprofundamento de um ajuste que já havia sido iniciado em 2015 por Joaquim Levy.

No entanto, a questão mais relevante é que não se tratava tão somente de um plano de estabilização de natureza ortodoxa. A implementação do “austericídio” foi muito mais além do que simplesmente a trágica combinação de juros elevados na política monetária e rigor assassino no controle de gastos na política fiscal. As propostas urdidas pela fina flor do financismo tucano no interior da Casa das Garças e as ideias contidas no documento sintetizado pelo PMDB como a “Ponte para o Futuro” protagonizaram também uma estratégia de desmonte das políticas sociais construídas desde o processo constituinte de 1988.

Austericídio e destruição

Não contentes em promover o ajuste radical nas contas do Orçamento, os estrategistas do liberalismo financista construíram a narrativa da necessidade de redução do setor público brasileiro. O argumento surrado, levado mais uma vez à exaustão pelos comentaristas dos grandes meios de comunicação, insistiam com a tese de que o arremedo de Estado de Bem Estar Social, ainda que chinfrim em nossas terras, era incompatível com a nossa capacidade arrecadatória. Bingo! Não haveria outra alternativa senão privatizar e liberalizar ainda mais a economia.

Assim, não se tratava apenas de promover a já criminosa política de redução dos programas de natureza social do governo e também da drástica queda no patamar dos investimentos a serem realizados pelo setor público. A nova estratégia implicava aprofundar a transferência de ativos do Estado para o capital privado e a opção prioritária por esse tipo de empreendimento para os novos investimentos em infra estrutura e serviços públicos de forma geral.

Colocaram-se em marcha os destruidores. Sua intenção primeira se caracteriza pela demolição do arcabouço público, institucional e produtivo construído desde a época de Getúlio, Juscelino e Jango. Esse processo, na verdade, vem desde antes, com a surpreendente obsessão política e ideológica de Fernando Henrique Cardoso em colocar um fim à chamada era Vargas. Na fase atual a destruição vem com a privatização de empresas públicas ainda existentes, com a concessão desenfreada de oportunidades de acumulação de capital ao setor privado, a abertura dos empreendimentos ao capital estrangeiro e com o reforço do setor financeiro no processo de consolidação do bloco hegemônico em nossa economia capitalista.

Os efeitos desastrosos de tal opção de política econômica estão mais do que presentes no desemprego avassalador, nas falências, das empresas, no processo de desindustrialização e na destruição da capacidade de o Estado brasileiro dar conta minimamente de suas atribuições constitucionais e de lançar as bases para superar a crise que se aprofunda e se alonga por uma eternidade. A flexibilização da legislação trabalhista vem como a cereja do bolo para o deleite do empresariado que clama sempre contra a presença do Estado, mas que não hesita em buscar refúgio em suas benesses e facilidades quando se trata de ampliar seus lucros e preservar seus interesses.

Revogar as medidas da destruição

Para além de passagem avassaladora de terra arrasada, a estratégia da destruição revelou-se um verdadeiro tiro no pé dos liberalóides de plantão e dos dirigentes políticos da direita fisiológica e conservadora. A perversidade provocada no quadro social está apresentando sua fatura em termos políticos e eleitorais. Não foi suficiente forjar o processo contra Lula e sua prisão. O ex-presidente continua líder absoluto nas pesquisas de opinião, o que coloca um problema no que se refere à sua candidatura. A se manter a conduta ilegal e abusiva do Judiciário, é possível que ele não consiga estar com seu nome nas urnas daqui a pouco menos de 3 meses. O risco de aumento da instabilidade não pode ser descartado.

A maioria da população reconhece os efeitos perversos da estratégia da destruição e, ao que tudo indica, postula pelo retorno à estratégia de desenvolvimento inclusivo, com distribuição de renda e ampliação do mercado interno. Mas, para tanto, faz-se necessário retomar o protagonismo do setor público na condução da economia, com a revogação das medidas do governo Temer e a mudança radical na orientação da política econômica. Os candidatos das forças progressistas já estão anunciando tal caminho em seus programas de governo.

Os líderes políticas da direita já se deram conta disso e quase não são encontrados candidatos dispostos a reivindicar a paternidade dos malfeitos do governo da destruição. Até mesmo o pleiteante Henrique Meirelles ensaia um malabarismo retórico, onde vai buscar sua passagem por 8 anos à frente do comando do Banco Central, durante os dois mandatos de Lula, para justificar sua suposta preocupação com o bem estar da população. Realmente a vida não está nada fácil para quem adentrou a seara do golpismo e foi co-partícipe de um governo que rasteja em seus índices de popularidade.

Eleição e retorno ao desenvolvimento

Ao contrário do lema de Juscelino Kubitschek (50 anos em 5), Temer promoveu um impressionante retrocesso de mais de 20 anos em apenas 2. O último dado oficial apontado pelo Ministério da Saúde refere-se ao quadro trágico da mortalidade infantil, que retornou a um patamar não visto há 26 anos atrás. Isso para não mencionar os já conhecidos quadros de verdadeira calamidade pública em áreas como saúde, educação, assistência social, segurança pública e previdência social, dentre tantas outras.

A obstinação dos destruidores tem revelado a falência de sua política. O desespero do financismo ao ver o poder escapar-lhe das mãos pelo voto de outubro aponta para a pressão sobre os candidatos nanicos quase sem expressão eleitoral, de forma a que as forças da direita se apresentem de forma unificada em torno de Alckmin. O único detalhe vai ser a necessidade de combinar com a população a respeito do impedimento arbitrário da candidatura de Lula e do convencimento a respeito das vantagens da política de destruição levada a cabo por seus apoiadores ao longo dos últimos 3 anos.

* Paulo Kliass - Doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal

Nicarágua | A menina do bote

Atilio A. Boron [*]

A dolorosa conjuntura actual da Nicarágua tem precipitado uma verdadeira enxurrada de críticas. A direita imperial e seus epígonos na América Latina e no Caribe redobraram sua ofensiva com o único e exclusivo objectivo de criar um clima de opinião que permita derrubar, sem protestos internacionais, o governo de Daniel Ortega, eleito há menos de dois anos (em Novembro de 2016) com 72% dos votos. Isto era previsível; o que não o era foi que em tal arremetida participassem, com notável entusiasmo, alguns políticos e intelectuais progressistas e de esquerda que uniram suas vozes às dos insolentes do império.

Um notável revolucionário chileno, Manuel Cabieses Donoso, que me honra com sua amizade, escreveu em sua crítica incendiária ao governo sandinista que "a reacção internacional, o 'sicário' geral da OEA, os media de desinformação, o empresariado e a Igreja Católica se apropriaram da crise social e política despoletada pelos erros do governo. Os reaccionários navegam na onda do protesto popular". A descrição de Cabieses Donoso é correcta; no entanto, dela se tiram conclusões equivocadas. É correcta porque o governo de Daniel Ortega cometeu o gravíssimo erro de selar acordos "tácticos" com inimigos históricos da FSLN e, mais recentemente, tratar de impor uma reforma do sistema de pensões sem qualquer consulta às bases sandinistas, ou actuar com despreocupação incompreensível ante a crise ecológica na Reserva Biológica Indio-Maíz [1] . É correcta também quando diz que a direita local e seus amos estrangeiros se apropriaram da crise social e política, um dado de transcendental importância que não pode ser relativizado ou subestimado. Mas sua conclusão é radicalmente incorrecta, tal como as de Boaventura de Sousa Santos, do saudoso e enorme poeta Ernesto Cardenal e de Carlos Mejía Godoy, em coro com toda uma pletora de lutadores sociais que em suas numerosas denúncias e escritos exigem – alguns abertamente, outros de modo mais subtil – a destituição do presidente nicaraguense, sem sequer esboçar uma reflexão ou arriscar uma conjectura acerca do que viria a seguir. Sendo conhecidos os banhos de sangue que assolaram Honduras após da destituição de "Mel" Zelaya; os que ocorreram no Paraguai logo após do derrubamento "a jacto" de Fernando Lugo em 2012, e antes, o que sucedeu no Chile em 1973 e na Guatemala em 1954; ou o que fizeram os golpistas venezuelanos depois do golpe de 11 de Abril no interregno de Carmona "O Breve" Estanga, ou o que se está a passar agora mesmo no Brasil e as centenas de milhares de assassinatos que a direita cometeu durante as décadas de "governo conjunto" FMI-PRI/PAN no México, ou o genocídio dos pobres praticado por Macri na Argentina; pode alguém em seu juízo perfeito supor que a destituição do governo de Daniel Ortega irá instaurar na Nicarágua uma democracia escandinava?

Uma debilidade comum a todos os críticos é que em nenhum momento fazem alusão ao quadro geopolítico em que a crise se desenvolve. Como esquecer que o México e a América Central são regiões de importância estratégica capital para a doutrina de segurança nacional dos EUA? Toda a história do século XX está marcada por esta obsessiva preocupação de Washington com a submissão do rebelde povo nicaraguense. A qualquer preço. Quando para isto foi necessário instaurar a ditadura sangrenta de Anastasio Somoza, a Casa Branca, sem a mais mínima vacilação, tratou de fazê-lo. Criticado por alguns deputados do Partido Democrata no Congresso dos EUA pelo respaldo que concedia ao ditador, o presidente Franklin D. Roosevelt limitou-se a responder que "sim, ele é um filho da puta, mas é o NOSSO filho da puta". E nada mudou desde então.

Quando, em 19 de Julho de 1979, a Frente Sandinista derrotou o regime somozista, o presidente Ronald Reagan não titubeou nem um minuto em organizar uma operação mafiosa de tráfico ilegal de drogas e armas de forma a poder financiar, para além do que já autorizava o Congresso dos Estados Unidos, os "contras" nicaraguenses. Tudo isto ficou conhecido pelo nome de "Operação Irão-Contras" [NR] . Podemos ser hoje tão ingénuos a ponto de ignorar estes antecedentes ou de pensar que estas políticas intervencionistas e criminosas são coisas do passado? Ademais, trata-se de um país que recentemente planeou a construção dum canal interoceânico, financiado por enigmáticos capitais chineses, que competiria com o Canal do Panamá, controlado de facto, senão de direito, pelos Estados Unidos. Isto não se trata de evidência anedótica, e sim do pano de fundo indispensável à calibração precisa do quadro geopolítico em que se desenvolvem os trágicos acontecimentos na Nicarágua.

Tudo o que se expôs aqui não significa minimizar os graves erros do governo de Daniel Ortega e o enorme preço pago por um pragmatismo que, apesar de estabilizar a situação económica do país e melhorar as condições de vida da população, hipotecou a tradição revolucionária do sandinismo. Porém, um acordo com inimigos é sempre volátil e transitório; ante a menor mostra de debilidade do governo, e ante um erro grosseiro baseado no desprezo pela opinião da base sandinista, aqueles se lançaram com todo seu arsenal à rua, para derrubar Ortega. Transferiram para a Nicarágua boa parte dos mercenários que protagonizavam as "guarimbas" venezuelanas e estão a aplicar agora no país a mesma receita de violência e morte que se ensina nos manuais da CIA. Conclusão: a queda do sandinismo debilitaria o entorno geopolítico da já brutalmente agredida Venezuela, e aumentaria as probabilidades da generalização da violência em toda a região.

Quando estava no Foro de São Paulo, que teve lugar em Havana, pude deleitar-me com a contemplação do mar do Caribe. E lá pude divisar, ao longe, um frágil barquinho. Conduzia-o um barqueiro robusto numa extremidade do barco, e na outra havia uma jovenzinha. O barqueiro parecia confuso, e esforçava-se para manter o rumo do barco em meio a ondas ameaçadoras. Acabei por pensar que essa imagem representava com eloquência o processo revolucionário, e não somente na Nicarágua, mas também na Bolívia, na Venezuela, onde quer que seja.

A revolução é como aquela jovenzinha. E o barqueiro é o governo revolucionário. Este pode errar, porque não existe obra humana a salvo de erros, e cometer erros que o deixem à mercê das ondas e coloquem em perigo a vida da menina. Ainda por cima, não muito distante se via a sombra abominável de um navio de guerra dos Estados Unidos, carregado de armas letais, esquadrões da morte e soldados mercenários. Como salvar a jovenzinha? Deve-se lançar o barqueiro ao mar e deixar que o barco naufrague, e com ele a menina? Entregá-la à turba de criminosos que se acotovelam, sedentos de sangue, prontos a saquear o país, roubar seus recursos e violar e em seguida matar a jovenzinha? Não vejo como esta poderia ser a solução. Seria mais produtivo se alguns dos outros barcos que se encontram no mar se aproximassem do que está em perigo e obrigassem o infeliz barqueiro a corrigir seu rumo. Fazer afundar o barco que leva a criança da revolução ou entrega-la ao navio estadunidense dificilmente podem ser consideradas soluções revolucionárias. 
18/Julho/2018
[1] O incêndio, ocorrido em Abril de 2018, consumiu cerca de 5.000 hectares de uma das maiores e mais bem preservadas reservas ecológicas do país.

[NR] A Operação Irão-Contras foi uma enorme conspiração organizada pelo imperialismo para a venda de narcóticos em grande escala a fim de financiar a compra de armas para os contra-revolucionários na Nicarágua.

Acerca da Nicarágua ver também: 
  Daniel Ortega traiu a Revolução sandinista , de Miguel Urbano Rodrigues, Nov/2016

O original encontra-se em www.pagina12.com.ar/129111-la-nina-en-el-bote . Tradução de LL.

[*] Sociólogo, argentino.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

Mais lidas da semana