terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Portugal | Movimento Zero

Carmo Afonso | Expresso | opinião

Os posts do Movimento Zero, os cartazes dos sindicatos, a violência policial, o racismo, a raiva mal contida, não auguram nada de bom. Como alguém no Twitter dizia: existe um nome para o Estado em que os cidadãos temem a polícia. Só que também deveria existir um nome para um colectivo e para um Estado que ignoram as justas reivindicações de uma classe profissional ao longo de décadas

Escrevo outra vez sobre polícias. Foi assim que isto começou. Reli há pouco o primeiro artigo que escrevi para o Expresso: “A balada da Amadora, a de Alfragide, a de Sines, a de Carcavelos”. Existe uma dificuldade em ler uma coisa que se escreveu há muito tempo. Neste caso não foi nada há muito tempo mas foi há vinte artigos e, não sei exactamente porquê, isso conta como muito tempo. O artigo é uma reflexão sobre o que se passa nas polícias, a violência policial, o racismo e a evidente infiltração da extrema-direita. Para o bem e para o mal não vai além disso.

Dúvidas houvesse.

Logo a seguir à publicação do artigo fui confrontada com um post na página de Facebook do Movimento Zero, que tem mais de setenta e seis mil seguidores, e cujo link deixo aqui:

Nesse post fui caracterizada como uma inimiga das forças de segurança, o artigo que escrevi como tentativa de as abolir e vi a minha imagem usada sem autorização, o que é crime, e nela inscritos conteúdos com os quais não concordo. A linguagem naquela página é simples e típica da extrema-direita: os portugueses de bem e os outros, a identificação de um inimigo, a referência aos “queridos criminosos”, a exaltação e o chamamento para um conflito.

Há uma nota importante: o post em causa anunciava expressamente que pretendia “desenganar” os polícias que pudessem ter ficado com a impressão que teria algum apreço pelas forças de segurança, o que manifestei, bem como manifestei o meu entendimento de que são necessárias. O que aquele post fez foi uma interpretação correctiva do que estava efectivamente escrito no artigo, propondo-se descodificá-lo e às suas más intenções. O Movimento Zero referiu expressamente que representava as polícias e foi também evidente que se dirigia a elas e aos que chamou de “portugueses de bem”.

Os comentários ao post (alguns foram recentemente apagados) mereciam um tratado. Tudo o que não deveria acontecer no espaço público está ali: um derramamento de ódio, insultos e ofensas rudes. Nada que tenha levado quem administra a página a intervir. Sejamos claros: o post era um chamamento para o que se lhe seguiu.

“As regras dos administradores para o grupo”, ou seja as políticas publicadas pelos administradores da página do Movimento Zero, são claras relativamente a este tipo de comportamentos, tão claras quanto a intenção dos seus administradores e dos membros do grupo de não as cumprir. Deixo também algumas delas e recomendo que leiam todas. É exigida benevolência e cordialidade, são proibidas incitações ao ódio, bullying e comentários menos próprios. Aqui não resisto a contar que os comentários menos próprios ou ataques pessoais dão direito à expulsão do grupo. Muito bom: teriam que ser quase todos expulsos. Estão também limitadas as publicações de conteúdo político mas, naquela página, o Chega e a sua ideologia estão sempre no meio de nós. Aliás o partido embuste é expressamente aclamado. Um movimento ligado às forças policiais que não é capaz de cumprir as suas próprias regras, o seu estatuto profissional, o Código Penal, a Constituição da República Portuguesa ou, já agora, de demonstrar bom senso e urbanidade.

Era um assunto que tinha na gaveta.

Na sexta-feira passada veio a público uma informação que desconhecia: era possível verificar, no próprio post, que havia sido patrocinado pela Guarda Nacional Republicana. Essa menção foi retirada pouco tempo depois de ser pública a sua existência e, segundo o Expresso, pelo gabinete de relações públicas da GNR foi dito que "Não descartamos um cenário de pirataria. Houve um abuso sobre a nossa página do Facebook.". Tendo sido esclarecido, pela mesma fonte, que a GNR não se associa a este tipo de ponto de vista expressado pelo Movimento Zero e que "Não há patrocínio nenhum. Admitimos todos os cenários. Se for o caso, agiremos criminalmente."

Vamos lá ver. Admitem todos os cenários menos aquele que parece o mais provável. E porque nunca fizeram um comunicado distanciando-se das afirmações do Movimento Zero quando este expressamente refere representar os polícias? Adiante.

As regras da página do Movimento Zero são boas regras, a conduta dos seus administradores e membros é desconforme às referidas regras e, deve ser dito, ilícita. A actuação do Movimento Zero é a prova da total falta de habilidade dos seus membros para a intervenção no espaço público e essa falta de habilidade é tão notória que me leva ao dia 10 de outubro de 2016. Este foi o dia em que os taxistas saíram à rua em protesto contra a entrada da Uber no mercado. Um momento que não deverá ser esquecido.

Nesse dia os taxistas partiram carros, agrediram outros taxistas e fizeram afirmações desastrosas que se tornaram virais como uma que recordarão: “As leis são como as meninas virgens, são para ser violadas”. Foi um dia desastroso para os taxistas e para a esquerda. Aqueles homens tinham razões para o protesto que estavam a fazer. O governo estava a desprotegê-los numa questão fundamental ao deixar a Uber entrar no mercado sem regulamentação. Acontece que foram julgados publicamente, não por aquilo que estava em causa e que deveria merecer a atenção de todos, mas porque parte deles se comportou fora dos padrões que (e aqui muito bem) a sociedade considera serem os correctos. Claro que não são admissíveis declarações misóginas, homofóbicas ou afins.

Só que ali o tema era outro.

A este propósito lembro-me de “O Estrangeiro”, livro de Albert Camus que relata a condenação por homicídio da personagem principal, “Meursault”, num julgamento em que nada foi provado relativamente ao próprio homicídio e no qual foi avaliada a frieza e a insensibilidade que “Meursault” tinha demonstrado no velório da mãe. Era verdade o que as testemunhas relataram desse velório mas não deveria ter sido essa verdade o objecto da prova e sobretudo essa verdade não deveria ter sido usada para o condenar.

Vamos a um exemplo limite, os exemplos limite põem tudo muito mais claro: um homem homofóbico, racista e que agride recorrentemente a sua família, tem ou não direito a ser defendido caso seja despedido sem justa causa?

Tem. Esta é a base de tudo.

O que aconteceu aos taxistas naquela altura foi um julgamento, por parte da comunidade, sobre questões completamente diferentes das que deveriam estar a ser avaliadas por todos e esse julgamento - de que eram misóginos, racistas, agressivos e por aí fora - apagou junto de muitos a razão que tinham no resto. E, no que os opunha à Uber, essa razão era total. Foi lamentável.

Mais lamentável porque parte da esquerda deixou isto acontecer e não soube hierarquizar o que ali estava em causa.

Agora peço-vos que imaginem o que teria acontecido se aquela manifestação tivesse lugar em 2020. Quem lá chegaria como um abutre a capitalizar a raiva justa daqueles taxistas? Já lá vamos.

Alguma lição deve ser retirada daquilo a que vamos assistindo. Os polícias são efectivamente uma classe que tem vindo a ser desprotegida: não há progressão nas carreiras, são muito mal pagos, não têm condições ou equipamentos condignos e, soube e é um bom exemplo, são pessoalmente responsabilizados por infracções que cometem, quando prestam serviço como motoristas de gabinetes ministeriais, seguindo as instruções de quem transportam. Aconteceu aquando da inauguração do IKEA de Matosinhos em que sete viaturas que transportavam ministros e secretários de estado foram “apanhadas” em excesso de velocidade. Foram os motoristas, não obstante estarem claramente a cumprir ordens ou indicações superiores, que pagaram as respectivas coimas. É um detalhe? Eventualmente. Mas é inadmissível e concretiza bem a desproteção, até desconsideração, de que falo.

Aqui deve apontar-se o dedo aos sucessivos governos e a alguma esquerda que é muito aguerrida a acusá-los nas suas faltas mas que não o tem sido a fazer a defesa das suas condições de trabalho e de vida. As injustiças sociais são bombas com temporizador incorporado e agora existe uma variável nova: um embuste que tenta infiltrar-se em qualquer buraco onde estejam o sofrimento e a revolta.

A esquerda quer mudar o mundo mas fraqueja na parte de o conhecer e de o interpretar. Marx, na décima-primeira lei de Feuerbach, assim o recomendava: “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo.”. Assim, e a seco, digo que não tinha razão. É preciso fazer uma análise profunda daquilo que move as pessoas e das suas razões antes de se pensar na transformação do que quer que seja.

O problema que existe nas polícias é evidente e é perigoso. As polícias deveriam investigar movimentos como o Movimento Zero em vez de o integrar e de consentirem ser representadas por ele. O corporativismo, as inclinações políticas, a visualização de um potencial inimigo em cada cidadão mas sobretudo nos negros, nos estrangeiros e nas minorias em geral, são um facto.

Os sindicatos da polícia comunicam de uma forma inaceitável: chamo a vossa atenção para um cartaz que está no Marquês de Pombal com a fotografia de uma encenação em que há um agente aparentemente abatido e outro em aflição a pedir ajuda. Esse cartaz traduz uma situação de guerra que não existe mas, lá está, reforça a tal lógica do inimigo.

Os problemas que existem nas polícias não se resolverão sozinhos e o problema da apatia em que vivemos mergulhados também não. É perturbador o homicídio de Ihor, cidadão ucraniano, pelo SEF e é também perturbadora a indiferença colectiva perante ele durante este tempo. Uma vez mais foi o jornalismo de investigação a despertar consciências e a apertar o poder político.

A nossa apatia permite o “deixa andar” do poder político e, da mesma maneira que permitiu que durante tantos meses nada fosse feito relativamente a um homicídio cometido por quem representava o estado português, também nos impediu de ver que os polícias vivem há demasiado tempo numa situação quase miserável e sim permitiu que o embuste lá fosse depositar os seus ovos.

A situação é grave e mais grave ainda é banalizá-la. “Estas coisas acontecem” não serve. As polícias precisam de ser profundamente repensadas e reestruturadas e deverão ter condições condignas de trabalho e o direito à progressão nas carreiras. A omissão do colectivo relativamente a estas questões dá azo à lamentável omissão dos sucessivos governos e este sangramento deve ser estancado.

As polícias têm de facto sido destratadas nos seus direitos enquanto “classe trabalhadora” e a frustração que as atinge foi terreno fértil para a demagogia populista e fascista da extrema-direita. O mal está feito mas deve ser remediado e de forma eficaz. A violência policial continua mas a tolerância perante ela acabou. O Movimento Zero deve ser investigado – a Polícia Judiciária parece imune à entrada da extrema-direita, sorte a nossa - e o governo não pode continuar a tolerar os grandes e os pequenos crimes cometidos por polícias. Aliás, o governo tem ficado muito mal nesta fotografia e a reunião do Presidente da República com o Director da PSP, Magina da Silva, e o tema que trataram, e que anunciaram, na ausência do ministro da tutela ou de qualquer representante do governo – nas circunstâncias actuais – demonstra o desnorte de cada um dos intervenientes e uma espécie de descartar dos ausentes.

Os posts do Movimento Zero, os cartazes dos sindicatos, a violência policial, o racismo, a raiva mal contida, não auguram nada de bom. Como alguém no Twitter dizia: existe um nome para o Estado em que os cidadãos temem a polícia. Só que também deveria existir um nome para um colectivo e para um Estado que ignoram as justas reivindicações de uma classe profissional ao longo de décadas. “Movimento zero” seria um nome bastante adequado.

Lamento: temos todos que recuar e fazer melhor. O poder político deve fazer política e não gerir situações ou tratar de assuntos, as polícias devem cumprir a sua missão e nós devemos pôr termo às intermitências da nossa atenção.

(Enquanto escrevia este artigo soube da morte de um agente da PSP, António José Pinto Doce, em Évora, por atropelamento, quando interveio numa situação de violência doméstica. O autor desse crime, um guarda prisional, terá sido também o homem que o atropelou brutalmente e quando estava em fuga. Soube também que o agente não estava de serviço. É possível, por isso, que a sua morte não tenha impacto nas estatísticas mas deverá ter ainda mais na avaliação do que mais importa: morreu a fazer o bem.)

Ver artigo no original - Expresso

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