segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

“JE SUIS SINÉ” -- Os Cravos São Vermelhos*

Artur Queiroz*, Luanda

Eu sou Siné e vou explicar porquê. Maurice Sinet está entre os maiores cartunistas do mundo e foi despedido do jornal “Charlie Hebdo” por ter feito uma “charge” do filho do antigo presidente Sarkozy, que tinha anunciado a sua conversão ao judaísmo para casar com uma jovem judia, podre de rica. O comentário humorístico foi este: “o rapaz vai longe!”.

Associada esta expressão à conversão, os donos do jornal acharam que o trabalho de Siné era anti-semita e exigiram que se retractasse. Ele respondeu: nem que me castrem! E foi despedido. Evidentemente que o Presidente Hollande, na época apenas dirigente do Partido Socialista, não teve a mínima reacção. Merkel, Cameron, ou Obama também se remeteram ao silêncio. Tudo em nome da liberdade de expressão.

O 25 de Abril de 1974 foi um acontecimento marcante em Angola e todas as antigas colónias portuguesas. O cartoonista da “Revolução dos Cravos” foi Siné. Fica para a História o seu cartoon que representa um revolucionário a fugir com a parte vermelha da bandeira portuguesa, empunhada por um fascista. Genial!

A “Mondar Edições” editou em cima do 25 de Abril um livro com desenhos e charges de Siné intitulado “CIA”. Mal Otelo Saraiva de Carvalho e seus Capitães de Abril deram o fascismo como derrotado, Siné voou de Paris para Lisboa e desenhou a revolução na rua. Fez “bonecos” para o Movimento das Forças Armadas e participou na bebedeira da liberdade. 

O livro desapareceu até dos alfarrabistas. Mas continua ao dispor dos interessados, um número do jornal “Expresso” onde é publicada uma entrevista a Siné. Cito de memória uma das suas afirmações: “ponham-se a pau que a CIA já deve estar a infiltrar-se na revolução”. 

Espero não provocar nenhum mal-entendido, mas a “infiltração” foi de peso: Mário Soares e Frank Carlucci. Os angolanos sofreram muito por não ter sido evitada a operação. Spínola, Nixon e Mobutu encontraram-se uns meses depois na Ilha Terceira dos Açores e na Ilha do Sal (Cabo Verde) e decidiram eliminar o MPLA do processo de transição para a independência. Mário Soares estava por trás dos arbustos.

Por tudo isto, eu sou Siné. Mas fico preocupado com o silêncio que se faz à volta da demissão do cartoonista da direcção do “Charlie Hebdo”, por ter associado a conversão ao judaísmo do rebento de Sarkozy, a uma vida de sucessos. A liberdade de expressão do cartoonista levou imediatamente uma paulada. O mesmo patrão que o despediu acha que o jornal pode pôr semanalmente muita lenha na fogueira da islamofobia, em nome da liberdade de imprensa. Não vou especular sobre o que sucederia se o “Charlie Hebdo” publicasse todas as semanas material aparentado com anti-semitismo.

Siné sabe o que lhe aconteceu por ter dito que o filho de Sarkozy, convertido ao judaísmo, havia de ir longe. Nunca saberemos se um “comando” terrorista algum dia invadisse o jornal e matasse Siné mais uns quantos companheiros. O que sei, e isso basta-me, é que em nome da liberdade de imprensa, o jornal nunca publicaria uma única capa gozando com Abraão, a Torá e os Filhos de Israel. Ainda bem. Je suis Siné!

*No dia 7 de Janeiro de 2015 a Redacção do jornal Charlie Hebdo foi invadida por homens armados, que mataram jornalistas e artistas gráficos. Nunca saberemos as suas motivações nem se houve mandadores desse crime sem perdão. A polícia executou os autores dessa barbaridade. Na época ecoaram gritos por todo o mundo, porque bandidos dispararam contra a liberdade de expressão. Acontece que naquela Redacção trabalhou Siné, um genial cartunista que foi despedido por ter feito uma caricatura do casamento de um filho do antigo presidente Sarkozy. Aí não houve nada contra a liberdade de expressão. Por isso, em cima do acontecimento, quando todos diziam Je Suis Charlie Hebdo, eu escrevi Je Suis Siné. Sete anos depois, partilho este texto. Para que conste: a Liberdade de Expressão ou a Liberdade de Imprensa são apenas para alguns.

* Jornalista

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