domingo, 30 de junho de 2024

Angola | A Folha da Bananeira – Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

As cabras são vorazes, devoram tudo o que é verde, até rebentos de bananeiras e cabeleiras do abacaxi. Mal saía da escola ia a correr até à Kapopa e procurava o Velho Tuma, que andava com os rebanhos à procura da água e do capim. Então começavam verdadeiramente as aulas. Um dia aprendi com o pastor que a vida é como a folha da bananeira.

A minha vida na escola era levar reguadas por ser mal comportado, por falhar na tabuada do dois, por dizer asneiras e cometer muitos pecados, alguns mortais. Descobri que um dos meus pecados mais graves era ser canhoto, coisa do diabo. Quem não é diabólico faz tudo com a mão direita. Talvez não fosse pior ser folha da bananeira.

Mestre Tuma começava a aula: “Vida do preto é como a folha da bananeira, o vento vem e a folha vai. Se soprar com força rasga a folha. Vidas rasgadas, isso é a vida do preto”. E a do branco, Tata Tuma? Resposta calma e firme: “Branco é o dono dos rebanhos!”

E eu despachado: Não há maka, o futuro resolve isso! O mestre, cofiando a barbicha branca respondia: “Isso de futuro não existe. Agora mesmo já passou. Só temos o tempo que foi, a vida rasgada pela ventania. O rumo que o vento quer”.

Aluno do Liceu Salvador Correia cheguei ao terceiro ciclo de forma miraculosa. Mesquita Brehm era o meu professor de Filosofia. Foi então que rememorei as lições do Velho Tuma enquanto as cabras devoravam tudo quanto era verde. De uma forma sofisticada aprendi que o presente não existe porque não há relógio capaz de registar a sua existência. O instante já era. A fracção de segundo é passado na fracção seguinte. O futuro ainda não é. Só temos de nosso o passado. Todo o passado, mesmo o que nunca vivemos. Podemos ir até à invenção da roda e aos jardins suspensos da Babilónia. As confins do Reino do Congo.

O passado do Povo Angolano vai da frágil folha da bananeira à resistência popular generalizada proclamada por Agostinho Neto. Da escravidão à luta pela liberdade. O nosso Spartacus liderou a luta contra o colonialismo desde o dia 10 de Dezembro de 1956 até 11 de Novembro de 1975. Os combatentes da liberdade, sob a bandeira do MPLA, contrariaram o vento. No Norte de Angola contra os mercenários, a CIA, o ELP de Santos e Castro, as tropas regulares de Mobutu. Na Grande Batalha de Luanda contra os independentistas brancos, as tropas zairenses e os sicários da UNITA. Na Grande Batalha do Ebo. Na Batalha das Batalhas no Triângulo do Tumpo. É isto que somos no hoje que já passou.

Os nossos vão e raramente voltam. Morrem muito e vivem pouco. Encontramo-nos na quietude da memória. No passado que construímos, na ilusão de pararmos o vento com as mãos. Lá encontro a primeira lição quando decidi ser jornalista: “Tens de aprender a viver entre as fronteiras da honra e da dignidade. O resto são curtos parágrafos com factos e nada mais do que factos, confirmados e reconfirmados”. Assim falou Acácio Barradas.

Paginar no chumbo era uma dor de cabeça. Acácio Barradas fazia isso como ninguém. Um dia, depois dos operários gráficos acertarem o “bacalhau” e a máquina arrancar com a impressão, disse ao mestre: Se os leitores soubessem quanto custa cada edição, guardavam o nosso jornal num cofre. E ele respondeu: “Assim não vais longe. Aprende que no dia seguinte, cada cópia do jornal só serve para embrulhar peixe ou parakuka”.

Hoje é o “Dia dos Mártires da Resistência do Cuito”, em homenagem aos mais de 7.000 mortos causados pelos bombardeamentos dos sicários da UNITA na cidade capital do Bié. Perderam as eleições e avançaram para o golpe militar. Em poucos dias ocuparam mais de 70 por cento de Angola com tropas que foram escondidas em bases secretas, quando deviam ser desmobilizadas e acantonadas. A população da cidade do Cuito resistiu. As tropas do Galo Negro cercaram a cidade e começaram os bombardeamentos de artilharia.

Os mortos eram enterrados nos quintais. Ao fim de duas semanas de cerco a ferro e fogo chegou a fome. O jornalista Abel Abraão, da Rádio Nacional, esteve sempre em contacto com a Redacção Central. As suas reportagens eram cuidadosamente editadas. A fome e a morte não derrotaram o repórter. Pedi ao Humberto Jorge que arquivasse todos esses trabalhos. Presumo que estão nos arquivos da RNA.

Quando a cidade do Cuito foi libertada, Abel Abraão veio para Luanda e trabalhou na formação profissional como monitor. Agostinho Vieira Lopes, director-geral da Rádio Nacional distinguiu o repórter que deu voz aos mártires da cidade do Cuito. Mas digo-vos que ele já não gostava de viver o futuro, o presente e o passado.

O Estado exumou os cadáveres enterrados nos quintais e criou o Cemitério Memorial dos Mártires do Cuito. Passados 30 anos convivo com Abel Abraão e os 7.000 civis assassinados pelos sicários da UNITA. Não sei viver de outra maneira. Mas também sei que vos custam estas memórias. Preferiam encher a pança à custa do Povo Angolano sem vos lembrarem que não merecem o ar que respiram!

Os que estão ancorados no presente, mamando vorazmente (como as cabras do Velho Tuma) no Orçamento Geral do Estado, digam-me: Alguma vez ouviram dirigentes da UNITA pedirem perdão pelos milhares de mortos durante o cerco à cidade do Cuito? Alguma vez assumiram a responsabilidade por esse crime de guerra que é bombardear uma cidade, semanas sem parar? Alguma vez os dirigentes da UNITA pediram perdão pela mortandade na cidade do Huambo? Na cidade do Uíge? Em toda a Angola que ocuparam de uma forma fulminante quando foram publicados oficialmente os resultados eleitorais de 1992?

Enquanto a UNITA não assumir as suas responsabilidades pelos milhares de mortos civis quando reagiram à derrota eleitoral com metralha e morte, Angola não tem paz nem sequer a fracção de segundo que é o presente. O tempo que aí vem estará sempre contaminado por esses crimes de guerra hediondos. Só quem tem passado e memória, não se conforma. Os que se dizem construtores do pressente e do futuro (ilusões infantis…) vivem bem com a corrupção dos valores, dos princípios, da honra e da dignidade.

Só no passado encontramos o alimento para a vida digna. A força da arte. A coragem de viver sem medo da incerteza. A determinação para enfrentar os sicários da UNITA até pagarem pelos crimes que cometeram contra Povo Angolano e a Humanidade.  

* Jornalista

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