domingo, 16 de março de 2025

Angola | A ÁGUA QUE MATOU ZITA – Artur Queiroz

<> Artur Queiroz*, Luanda ---

Oficialmente hoje é o dia da expansão da Luta Armada de Libertação Nacional. Para mim é o dia da Grande Insurreição Popular que varreu o Norte de Angola, de Sacandica aos Dembos. Na minha terra só existia escola primária e tive de ir estudar para a cidade do Uíje, no ensino secundário. Regime de internato. Tínhamos um líder, o Beto Martins, ao qual chamávamos, exactamente por ser um líder, Beto Lumumba. 

Naquele ano tínhamos exame e por isso não fomos a casa nas férias da Páscoa. Aulas de reforço, para não fazermos má figura e o colégio não ter “chumbos” no currículo.

Arlindo era o aluno mais velho do internato, 17 anos. Esteve vários anos sem estudar e retomou os estudos quando os pais puderam pagar-lhe o internato. 

No ano lectivo de 1960/1961 apareceu no internato um menino que ainda andava no ensino primário. Chamava-se Jorge Gonçalves e vinha de Sacandica, onde o pai era comerciante. Adoptado como nosso mascote. Todos o protegíamos. Muitos anos mais tarde ele foi presidente do Sporting Clube de Portugal. As voltas que o mundo dá!

No internato tínhamos um sapateiro que remendava os nossos sapatos. Veio do Cuanza Norte e o seu sonho era chamar a esposa e filhos À noite fazia de guarda. Aos fins de semana saltávamos a janela e íamos para as farras do Candombe. O guarda era conivente com os fugitivos. Um amigo do peito.

Lá na farra dançávamos a noite inteira. As meninas do bairro eram gentis, bonitas e bailarinas elegantes. Uma delas, por feliz coincidência, arranjou trabalho como ajudante da Candidinha, senhora que cozinhava para os alunos internos.

No dia 15 de Março, os guerreiros da UPA atacaram as fazendas do norte e mataram os brancos. Mas também trabalhadores “bailundos”. Nas pequenas vilas isoladas também atacaram com canhangulos, catanas e paus. Avançavam gritando maza, maza, maza quando os colonos disparavam as suas caçadeiras e carabinas sobre os atacantes. Quem aderiu à insurreição recebeu uma muxinga e um pau. Usando aqueles amuletos ficavam invulneráveis. As balas dos brancos eram água!

Essa água matou o sapateiro e guarda do internato. Há quem estivesse na cidade do Uíje e não visse nada. Eu vi mas preferia não ter visto. A água que matou o sapateiro também me matou. 

A Candidinha, no dia 16 de Março, gritava desalmadamente. Fomos saber o que tinha acontecido. A água matou Zita, a menina do Candombe, bailarina, alegre, gentil. A água naquele dia matou centenas de negros nas ruas da cidade do Uíje. Em frente ao internato havia um descampado. Estava juncado de cadáveres. Gente que levava as imbambas. Iam fugir da água. Há quem não tivesse visto nada, vivendo no Uíje. Eu vi. Antes não visse.

O Beto Martins é mestiço. Vivia com os padrinhos brancos. Durante uma semana desapareceu. A água matou-o? Não. Ficou aterrorizado com a fúria assassina das milícias dos colonos. O nosso líder ficou com medo da água. Só queria sair dali. Em Maio saímos todos. Fomos em viaturas militares até à Base Aérea do Negage e apanhámos um avião de carga, o Nordatlas. Em Luanda instalaram-nos num centro de refugiados e retomamos as aulas no Liceu Salvador Correia. Aprovamos todos nos exames!

A água do 15 de Março 1961, data da Grande Insurreição Popular no Norte de Angola matou milhares de inocentes. Pôs milhões em fuga para o Congo. 

Há quem não tivesse visto nada. Eu vi. Antes não visse. 

Hoje é o dia em que me lembro da água que matou Zita. A água que nos matou a juventude.

* Jornalista

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