Jorge Carlos Fonseca em entrevista exclusiva (2)
Editamos hoje a segunda parte da entrevista concedida por JCF a Liberal e à revista portuguesa Diplomática. O Presidente da República eleito fala-nos da cultura, do papel dos intelectuais, do poeta Jorge Carlos Fonseca, dos tempos da ditadura e da necessidade de se promoverem pontes para a compreensão objectiva da História e para a despartidarização da sociedade.
Praia, 6 de Setembro – Quando o tema é a cultura, os olhos do Presidente parecem querer irradiar um brilho magnetizante; quando se fala de debate de ideias, as mãos percorrem círculos no ar e projectam-se à nossa frente como instrumentos de viagem. Um e outro pormenor de observação permitem deduzir que esta presidência deixará marcas profundas na sociedade. O Presidente-poeta quer ser ponte de consensos e factor de pacificação de um país artificialmente dividido em dois: os “da independência” e os “da democracia”. E Jorge Carlos Fonseca parece entender que um e outro país são parte integrante deste Cabo Verde que, para sair vitorioso dos desafios deste nosso tempo, terá que se reconciliar com a História.
O PRESIDENTE JORGE CARLOS FONSECA ESTÁ NUMA SITUAÇÃO PARTICULARMENTE FAVORÁVEL, PORQUE PELA PRIMEIRA VEZ EM 10 ANOS NÃO HÁ CASOS À VOLTA… HÁ UMA VITÓRIA CLARA.
É muito bom para mim o facto de ter tido uma vitória clara. O facto de, também, em relação à minha candidatura não haver nenhuma suspeição de favorecimento do Estado. E o facto de ter sido uma vitória de âmbito nacional. Porque, à excepção do Fogo, ganhei nas outras oito ilhas, ganhei na Europa e Resto do Mundo… E, mesmo no Fogo, o resultado satisfez-me muito. Mas tenho, se me permite, outra vantagem: o facto de ser independente dá-me mais à-vontade para pôr as pessoas a dialogar, e também por ser uma pessoa amiga da Constituição, não me coloca problemas em trabalhar para que se avance com o Tribunal Constitucional e o Provedor de Justiça, que acho serem fundamentais para a qualidade da democracia.
A MÚSICA CABO-VERDIANA É UM DOS MAIORES PATRIMÓNIOS DO PAÍS, BEM COMO A CULTURA DE UMA FORMA GERAL. VÊ-SE COMO UMA ESPÉCIE DE SEU EMBAIXADOR?
Sim. E tentarei ser uma espécie de agente dos agentes culturais. Antes tinha as minhas dúvidas em relação a essa ideia da cultura enquanto indústria. E, enquanto poeta, não me estava a ver a exportar poesia, mas cheguei à conclusão que realmente – e concretamente com a música – a economia do país pode ganhar, pode desenvolver-se, pode expandir-se tendo como objecto o produto musical. Nós somos um país de música… O meu irmão, Mário Fonseca, disse num livro que “o meu país é uma música”. E o Presidente, em sintonia com os objectivos da Economia, pode envolver-se nisso, não sendo um agente directo mas sendo um agente dos agentes culturais. Promover o mérito, sempre que sair levar uma embaixada com gente da cultura, tentar abrir portas, acarinhar internamente, tentar junto do Governo facilitar a promoção da cultura através de produção legislativa. Tentar usar aquilo que parece ser um grande trunfo do país.
Mas creio que não é só a música, embora esta seja mais visível. Lembro-me de há uns anos ir à Turquia, a uma conferência de Direito Penal, em que estava gente académica de vários países, e haver lá um professor turco que não conhecia bem Cabo Verde, mas tinha ouvido falar em Cesária Évora. E perguntava-me o que era Cabo Verde. E eu: olhe, é um país pequeno, com umas ilhas, tem uma grande música, tem praias bonitas e tem uma literatura razoável [risos]. Creio que de uma maneira talvez redutora, o país vendável é este.
COMO VÊ O PAPEL DOS INTELECTUAIS NA SOCIEDADE?
Até este momento, os intelectuais cabo-verdianos têm tido um papel muito menos relevante do que poderiam ter. Às vezes, enquanto cronista, dizia que parece terem os cabo-verdianos vergonha de serem intelectuais, porque pouco intervêm do ponto de vista cívico, do ponto de vista cultural e, até, do ponto de vista político. Há uma espécie de vergonha em ser intelectual. Porque em Cabo Verde entende-se que ser intelectual é uma espécie de defeito. E tenho sido um pouco vítima disso, porquanto muitas vezes… e recordo que quando concorri em 2001, havia pessoas que diziam “você é muito intelectual”, como se isso fosse um defeito, uma falha. Mas percebe-se que isso ocorra em Cabo Verde, e tem a ver um pouco com o período pós-independência. Na altura havia uma série de preconceitos, nomeadamente em relação aos intelectuais, às pessoas que pensam. Havia todo um discurso populista exaltando que o importante era estar com as massas. Isso pegou e ficou, mesmo com a mudança nos anos 90. O que leva a que os intelectuais sejam quase clandestinos. Os que são escritores escrevem, os que não são acho que têm medo ou receio de se afirmar como tal e assumirem a condição de intelectuais.
O PRESIDENTE JORGE CARLOS FONSECA, QUANDO SE LEVANTA DE MANHÃ E OLHA PARA O ESPELHO, O QUE SENTE AO VER REPRODUZIDO O POETA JORGE CARLOS FONSECA?
Não tenho esse problema, porque ainda não interiorizei que sou Presidente [risos]. Não tive tempo ainda. Não é que eu não acreditasse que seria eleito. Mas estava a contar, depois das eleições, ter uns dias de férias, uns sete ou dez dias, tomar banhos de mar, ler… mas não tive tempo. Marcaram a tomada de posse, quase imediatamente e, portanto, tenho estado em comícios, festas de comemoração e a preparar a tomada de posse, não tive um dia de férias e, por tal, não tive ainda tempo de vestir o “fato” de Presidente da República.
Mas tenho que começar a pensar nisso, porque dia 9 já sou o Presidente. E eu também sempre fiz política sem ter um plano. Nunca pensei nisso. Mas sempre soube o que não queria ser. Ser Primeiro-ministro nunca me passou pela cabeça, apesar de ter havido um período das disputas internas do MpD, houve quem insinuasse que o queria ser… Mas nunca quis, porque acho que não tenho perfil para Primeiro-ministro num sistema como o nosso. E a minha envolvência na política foi sempre por causas, por impulsos. Sempre fui uma pessoa libertária, a liberdade teve sempre um grande valor, desde miúdo, desde os 17 anos. E isso explica, por exemplo, o meu traço de independência, mas também estive ligado a grupos mais radicais de esquerda e, também, do ponto de vista estético, estive ligado ao surrealismo, ao cinema da nouvelle vague, sempre estive nesses grupos. Fui expulso da Universidade de Coimbra por razões políticas, com 22 anos, e também a crítica ao partido único, foi sempre em nome da liberdade. O meu percurso político, que é sinuoso, tem sempre presente a ideia da liberdade e da justiça social – foram sempre valores que atravessaram a minha vida da adolescência até hoje. E tenho ido atrás disso, não tenho ido atrás de projectos, de ser Primeiro-ministro… ou de ter sido ministro, ou agora de ser Presidente da República. Nunca nada esteve programado, apesar de ter concorrido em 2001.
E TEM CONSCIÊNCIA QUE ALGUMAS DAS PESSOAS QUE, AGORA, LHE PRESTAM AS MAIORES VÉNIAS, DIZIAM, HÁ MEIO ANO ATRÁS “JORGE CARLOS FONSECA? NEM PENSAR, NÃO TEM HIPÓTESE”…
Eu achei piada – e até acho que ele foi bem-intencionado – dei uma entrevista ao jornalista João Matos, da RFI, e ele perguntou-me: “mas por que é que você quer ser presidente? É um poeta…” E acho que essa ideia que surgiu em Cabo Verde é que um político tem de ser populista, e isso tem a ver com aquele preconceito de que falávamos em relação aos intelectuais.
MAS É CURIOSO PORQUE, NO SEU CASO, OS ESTUDOS DE OPINIÃO INDICAVAM MAIOR PENETRAÇÃO NOS MEIOS POPULARES, O QUE NÃO DEIXA DE SER CONTRADITÓRIO…
Eu também achei e surpreendeu-me muito. Mas isso também pode ter a ver com aquela conotação que me faziam com o MpD, que é um partido com pouca penetração na classe média e nos intelectuais. De qualquer modo – e já em 2001 -, estou à vontade no contacto popular, não tenho problema nenhum. Creio até ter estado mais à vontade do que qualquer dos meus adversários.
O SEU PERCURSO ACADÉMICO DÁ-LHE OUTRA SENSIBILIDADE E ABERTURA PARA PERCEBER AS NOVAS GERAÇÕES, COMO PENSAM… E, A ESTE PROPÓSITO, TENHO A PERCEPÇÃO DE QUE ESTA NOVA GERAÇÃO JÁ NÃO SE REVÊ MUITO NESSA DICOTOMIA TAMBARINA-VENTOINHA…
Sim, sim, E acho que felizmente. Mas ainda não na medida do desejável. A partidarização em Cabo Verde é muito forte, os partidos atravessam tudo, o território da sociedade é invadido de forma excessiva pelos partidos, mas também pelo Estado. Mas o facto de estar há muitos anos ligado à vida universitária, também surgiu por acaso, não foi nada programado. Surgiu por um acaso da política. Fui estudar para Coimbra, com 16 anos, e nas vésperas de tirar o curso, isto em 1973, sou expulso da faculdade por razões políticas, recorro para ser transferido para Lisboa ao ministro Veiga Simão, foi indeferido, e sou metido na tropa, ao abrigo de uma lei chamada “incorporação compulsiva”. Vou para o quartel de Mafra, estava então com 22 anos. E, pouco depois, acontece o 25 de Abril, não acabo o curso e venho para cá. No fundo, não sei o que seria Jorge Carlos Fonseca se isso não tivesse acontecido em Coimbra, se tivesse acabado o curso. E só faço uma vida universitária porque, em 79, há a contestação ao partido único, sou acusado de fraccionista e trotskista e sou obrigado a sair do país. Vou para Lisboa acabar o curso, trabalho como monitor, depois fui assistente… portanto, foi um acaso.
Mas a actividade universitária permite-me ter um contacto muito grande com jovens. E acho que me sinto jovem, porque também ando sempre com gente muito jovem e isso dá-me a facilidade de dialogar e compreender. Dialogar não em termos partidários - PAICV e MpD -, mas de discutir a política, a cultura, a literatura, a ciência, a universidade. Isso dá-me, também, uma abertura à sociedade que ultrapassa um pouco os partidos políticos.
AINDA BEM QUE SE REFERIU AOS PARTIDOS, PORQUE ERA PARA AÍ QUE EU IA, PARA OS “ANOS DE FOGO”. REFIRO-ME AOS TEMPOS DO PARTIDO ÚNICO E AOS TRAUMAS DAÍ DECORRENTES. EM FUNÇÃO DO SEU PERCURSO, PENSA QUE PODE FUNCIONAR COMO O GRANDE AGREGADOR DA UNIDADE NACIONAL, DA RECONCILIAÇÃO?
Creio que sim, para já do ponto de vista pragmático. Há coisas que têm de ser resolvidas e rapidamente, importa que haja consenso entre os partidos. É um péssimo sinal para Cabo Verde termos, desde 99, contemplado um Tribunal Constitucional e não o termos, ou mesmo o Provedor de Justiça. E não existem porque não há consenso entre os partidos. E o Presidente tem obrigação de fazer a ponte. Mas, também, o facto de ser um Presidente que tem experiência de partidos políticos, e uma experiência fora deles com uma militância cívica e cultural, pode ajudar a temperar as paixões partidárias. Porque a visão do mundo cabo-verdiano é uma coisa dividida a meio, o PAICV ou o MpD. Mas tem a ver com a identificação colectiva, creio que o país quase todo ou vai para o PAICV, que é o país da independência, de Cabral, da mãe África… ou vai para o país do MpD, que significa a libertação do partido único, a democracia. E estes partidos dividem o país quase a meio. Isso quase que não é ideológico, aparece quase como um hábito cultural.
Estou convencido que a arrumação dos partidos em Cabo Verde não é - em todo o rigor - ideológica, nem é saudável. O PAICV diz que é do socialismo democrático, mas conheço gente do partido que não tem nada a ver com essa ideia do socialismo, mas estão lá porque o PAICV representa uma construção simbólica que os leva ali por razões familiares, por tradição… E há gente que está no MpD que pode não ter a ver nada com a IDC (Internacional dos Democratas do Centro), que pode até ser mais de esquerda do que alguma gente que está no PAICV. A arrumação não é ideológica, apanha de tudo.
O PERÍODO DE PARTIDO ÚNICO ACARRETOU AS SUAS DIFICULDADES PARA O POVO DE CABO VERDE, MAS TAMBÉM PARECE SER HIPER VALORIZADO. E, SE CALHAR, TERIA DE HAVER ALGUÉM QUE AJUDASSE A ESCLARECER ESTE PERÍODO, QUE SENTASSE AS PESSOAS À MESA. ATÉ PARA AS JOVENS GERAÇÕES PERCEBEREM PORQUE É QUE AQUILO ACONTECEU…
É preciso conhecer a História de uma forma desapaixonada, de forma objectiva. Isto é, que as pessoas percebam o que foi aquilo a que se chamou o fraccionismo e o trotskismo, em 79… Houve repressões, houve torturas, houve processos esquisitíssimos. Eu próprio estive 22 dias detido na Brava e, até hoje, não sei porque o estive. Mas creio que a minha eleição e, de certo modo, o fenómeno Aristides Lima no PAICV, representam talvez alguns sinais encorajadores de que as coisas estão a mudar um pouco. O que se passou no PAICV, até aqui era impensável acontecer: o partido indicar um candidato e aparecer outro. É um factor político novo que demonstra algum avanço, creio eu. Mas também os apoios eleitorais, a votação que tive, provam que as coisas podem estar a mudar um pouco.
Exclusivo Liberal - Diplomática
*Amanhã, leia a terceira e última parte da entrevista: IDENTIDADE NACIONAL E RELAÇÕES COM A EUROPA E ÁFRICA – OS NOVOS DESAFIOS DA CPLP
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