Fernando Santos – Jornal de Notícias, opinião
Está explicado nos livros de Ciência Política: os presidentes da República estão talhados para um primeiro mandato abúlico, dando uma no prego e outra na ferradura, tendo presente a estratégia de, à falta de ondas, ficarem mais perto da reeleição. O sistema não foi nunca furado e, em democracia, provavelmente ainda está por nascer o primeiro sujeito a ser apeado do exercício de dez anos de Poder no Palácio de Belém.
Não tem, de facto, havido um milímetro de desvio à regra: o segundo mandato presidencial é sempre marcado por uma maior capacidade de intervenção. Foi assim com Ramalho Eanes, Mário Soares, Jorge Sampaio. Está a ser assim com Cavaco Silva.
Os primeiros cinco anos de mandato do actual presidente da República ficaram marcados por pouquíssima magistratura de influência sobre os governos de Sócrates. As discordâncias foram geridas com pinças e, retirando alguns vetos em matéria de costumes, tiveram efeitos nulos na eventual reposição de uma rota sensata para o país. Meia dúzia de discursos críticos serviram para acautelar um argumento posterior fácil: o do "eu avisei"...
A acção neutra, chamemos-lhe assim, recolocou Cavaco Silva, faz amanhã um ano, no Palácio de Belém. E a par do reforço da sua intervenção modernaça pelo uso do "Facebook", os últimos 364 dias mostraram um presidente bem mais interventivo, capaz de revelar um pensamento sobre a Europa; e de à entrada ou saída de um qualquer congresso prestar declarações aos jornalistas para deixar cair recados demasiadas vezes cifrados ou susceptíveis de serem vistos como agulhas críticas espetadas ao Governo. O jogo do gato e do rato amplificou-se.
O posicionamento político do presidente da República no segundo mandato não foge, pois, ao dos seus antecessores. E como sucedeu com todos, há dias em que a mensagem de Cavaco Silva é difícil de descodificar ou de escapar a críticas agrestes.
Os últimos dois dias são paradigmáticos de como o presidente da República anda desinspirado e soma erros de trajectória desnecessários. Pior: encavalita-os.
Ninguém de perfeito juízo entende como Cavaco Silva se queixou do valor das reformas que aufere, dando-se o caso de ter referenciado os 1300 euros recebidos todos os meses da Caixa Geral de Aposentações pela sua actividade de professor universitário, mas sem quantificar a verba recebida na qualidade de antigo quadro do Banco de Portugal - pois, indicou o nível 18, o mais elevado, mas houve necessidade de consultar a sua declaração de rendimentos para se perceber que ela anda à volta dos 8700 euros por mês. Tudo somado: cerca de 10 mil euros mensais brutos. E as lamúrias são tanto mais incompreensíveis quanto Cavaco Silva trocou o vencimento de presidente da República pela vantagem material do somatório das reformas. Pois, disse não chegarem para as suas despesas, mas de tal problema sofrem milhões de portugueses.
O erro de palmatória tem explicação? É difícil...
Ontem, em Vila Nova de Famalicão, considerou-se o "provedor do Povo" por receber mais de três mil cartas por mês de cidadãos angustiados e em busca de uma solução para as aflições do dia-a-dia. Não fez a antevisão, mas não é difícil adivinhar: nos próximos tempos, sujeita-se a ver multiplicada a recepção de correspondência de portugueses abespinhados com a desfaçatez do seu lamento.
A um provedor do Povo pede-se bem mais. E os reformados na verdadeira penúria agradeceriam um pedido de desculpas do presidente da República.
- Nota PG: As assinaturas na Petição Pública para que Cavaco Silva se demita já ultrapassam as 6.400 neste momento.
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