Manuel Maria Carrilho – Diário de Notícias, opinião
Mas, afinal, porque é que a espiral de escandalosas revelações de privilégios e de rendas, de exceções e de derrapagens, que nos últimos tempos parece anunciar o crepúsculo do regime, não se transforma em cólera ativa dos cidadãos? E porque é que ela não suscita alternativas políticas credíveis e mobilizadoras, limitando-se a dar forma a ondas de protestos mais ou menos declamatórios, eventualmente reforçados em dia de greve geral, como o de hoje?
A pergunta tem tanto mais sentido quanto esta espiral vem confirmar uma outra, a espiral das desigualdades, que em Portugal tem vindo a atingir proporções brutais, como o mostra um estudo recente da Comissão Europeia sobre as consequências da austeridade em diversos países europeus, entre o começo de 2009 e meados de 2011 ainda antes, portanto, das medidas do atual Governo.
Este estudo não só coloca Portugal no topo da queda do rendimento das classes mais pobres, como assinala que somos o país em que a austeridade recaiu mais fortemente sobre os já desfavorecidos: os mais pobres perderam mais de 6% (podendo as famílias com filhos atingir os 9%), os mais ricos não chegaram a perder 4%.
Esta espiral das desigualdades que hoje nos atinge, como atinge toda a Europa (e não só), pode ser abordada de duas maneiras: uma, imediata, consiste em vê-la como consequência do triunfo do capitalismo financeiro, e da multifacetada crise que ele desencadeou, como Nouriel Roubini apontou há tempos num notável artigo sobre a "instabilidade da desigualdade".
Nesse texto, ele sublinhava o modo como o generalizado bloqueio do rendimento das populações nas últimas décadas, com a exceção cada vez mais marcada dos cada vez mais ricos (a diferença de rendimentos entre o topo e a base passou de 20 para 400 vezes), tinha sido um dos fatores decisivos da eclosão e do arrastamento da crise dos últimos tempos.
Contudo, e sem subestimar o enorme impacto da reconfiguração da economia mundial no aumento das desigualdades, uma outra abordagem se impõe hoje, que dê atenção a outros fatores, decorrentes da emergência de um novo imaginário social. Porque este novo imaginário, a que em geral se atribui escassa importância, foi na verdade a mola mais eficaz na consolidação do ultraliberalismo das últimas décadas, ao conseguir impor, ao mesmo tempo e solidariamente, duas ideias: a da necessidade de desmantelar o Esta- do providência, por um lado, e a do reforço dos direitos individuais, por outro.
A astúcia está aqui: no modo como a erosão da ideia de coletivo, a destruição do mundo comum e a deslegitimação do imposto foram sendo tacitamente aceites por muitos cidadãos, desde que simultaneamente se aumentasse o reconhecimento dos seus direitos individuais e se reforçasse a sua margem de liberdade pessoal.
Este processo é, de resto, muito visível na consagração do estatuto do consumidor e dos seus direitos, que desde os anos 80 substituiu progressivamente nas sociedades contemporâneas, e nomeadamente nas europeias, a figura e as funções que tradicionalmente definiam o cidadão.
A democracia, que historicamente nasceu do imperativo da igualdade, foi-se assim acomodando às desigualdades num crescendo de indiferença que parece estar a chegar aos limites. Mas nada é certo. E nada é certo porque aquela indiferença tem vivido numa oscilação paradoxal entre, por um lado, uma generalizada unanimidade sobre o carácter intolerável das desigualdades e, por outro lado, uma inédita passividade em relação às suas múltiplas formas e consequências concretas.
Isto toca no coração da nossa cultura democrática, no ponto de convergência das patologias do individualismo e do financismo, umas e outras só possíveis no contexto do mais cego deslumbramento tecnológico. E, se assim for, é justamente pela revitalização da cultura democrática que é preciso começar para acabar com a indiferença, exigindo à igualdade bem mais do que reconhecimento individual e redistribuição social.
É por isso talvez tempo de lembrar uma evidência: não se muda a sociedade sem uma filosofia social e política que prepare, estimule e enquadre essa mudança. É de resto a experiência desta evidência que a esquerda francesa está hoje em dia a fazer, na campanha presidencial em curso. Com resultados que, por enquanto, se anunciam bem incertos.
Miguel Sousa Tavares diz tantas vezes a mesma coisa, que a única conclusão a tirar é que, mais do que pensar, ele rumina. Do jornal para a televisão, e vice-versa, nada mais simples do que adivinhar o que vai dizer: é sempre o mesmo. A sua crónica do fim de semana passado revela, contudo, sintomas preocupantes: é que à custa de tanto reciclar crónicas anteriores, MST já ganhou reflexos condicionados, de tipo pavloviano: por mais a despropósito que seja, sempre que escreve "Unesco", logo a seguir dedilha "o mais apetecível tacho" do Estado para, imediatamente (e ainda mais automaticamente), acrescentar o meu nome. Já vamos para aí na décima repetição do mesmo... e fala ele de "tachos"!
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