quinta-feira, 7 de junho de 2012

A AMPLA CIDADE



Rui Peralta

Das arábicas Primaveras e das Primaveras do Género, do ser e do viajar

Ser mulher não é fácil. Ser mulher e homossexual é complicado. Ser lésbica e árabe é duro. Ser lésbica, árabe e muçulmana é uma mistura explosiva. Mas existem. Discretas, passando pelos intervalos da chuva, ocultam o ser. A improbabilidade desta identidade é aparente. A homossexualidade feminina é um tema tabu no mundo árabe, abordado de forma muito discreta, tão discreta como a forma como elas se movem nas suas respectivas sociedades.

Em Marrocos a homossexualidade é condenada com uma pena de prisão até 3 anos e uma multa de mil dirhams, uns cem euros. Têm as suas redes sociais, fechadas, as suas redes de cafés e bares, entre Casablanca e Rabat e os seus clubes exclusivamente femininos. No Egipto, onde a Revolução da Praça de Tahir pareceu ignorá-las, a Constituição em vigor não apresenta qualquer regulação sobre os seus direitos e a Irmandade Muçulmana já reiterou que condena todo o tipo de conduta não heterossexual. No Líbano as lésbicas estão quotidianamente sujeitas a detenções domiciliárias, casamentos forçados, abusos verbais e assédio sexual. Na Arábia Saudita e no Iémen a homossexualidade feminina pode ser castigada com a pena de morte e nos restantes países as penas oscilam entre a multa e a prisão, excepto no Kuwait onde a homossexualidade feminina não é penalizada, só a masculina. Também no Iraque o texto legal não deixa claro se a homossexualidade feminina é castigada ou não, o que deixa espaço às maiores arbitrariedades por parte dos juízes.

Seja qual for o país islâmico ser discreta é o código imposto e autoassumido. A homossexualidade é socialmente rejeitada e banida, um estigma social, uma doença e uma imoralidade. O estigma é tal que muitas lésbicas optam por casamentos heterossexuais, levando uma vida dupla (onde os véus se sobrepõem aos véus e as mentiras imperam sobre a omissão da verdade) ou emigram para países onde possam assumir a sua condição. A ruptura familiar é inevitável para a maioria.

No entanto, da mesma forma que no plano jurídico, existe uma tolerância maior para com a homossexualidade feminina do que com para a masculina. E isso porque as sociedades árabes e as sociedades islâmicas são essencialmente patriarcais. As sobrevivências das famílias dependem dos varões. As mulheres vivem numa maior invisibilidade, silenciadas, independentemente das suas preferências sexuais. São sociedades falocêntricas onde as regras estabelecem uma posição algo assexuada á mulher. O feminino complementa o masculino e esse princípio é um pilar da harmonia da família e da sociedade. Ser lésbica implica uma dupla subversão: a do sexo e a da sexualidade.

Árabe, lésbica e muçulmana é uma tripla identidade que implica um conflito moral. É assim que nos últimos tempos surgiram (e surgem) iniciativas dispersas e minoritárias, mas que dão voz a este colectivo. Por exemplo o documentário do indiano Parvez Sharma, “A Jihad for Love”, onde o estigma e a repressão a que a homossexualidade é sujeita no mundo islâmico são expostos, de uma forma crua. Outro exemplo vem da Palestina com uma organização de lésbicas palestinas, a Aswat. Recentes são a revista “online” árabe, Bekhsoos, uma magazine lésbico, muito interessante, que cobre o problema nesta parte do mundo através de entrevistas, reportagens, artigos de opinião e trabalho criativo e o blog http://iamnotharaam.tumblr.com (Eu não sou proibido). Estas são as primeiras pedras de uma estrutura em construção no mundo árabe. Uma estrutura emancipadora que quer um mundo mais Primaveril.

Antes de passar ao outro tema que vos trago hoje, também sobre o mundo árabe (estou em maré de Primavera) quero completar o relato do meu amigo e colega de Turim, Chris Two, que decidi apresentar-vos aos poucos. Eis o final:

A saída do Inferno foi efetuada através de Jerusalém onde situa-se o Templo. Continuaram a Peregrinação passando por Damasco, Bagdad e Teerão, daí para Riade e regressaram a casa. A Peregrinação tinha terminado. Sentaram-se em silêncio, no terraço da casa de Chris, a observavam-se minuciosamente até que o Anjo quebrou a mútua contemplação: “Para onde vais agora, Chris?” “Para onde tu fores Anjo” respondeu Chris olhando para o céu nublado “Para onde vou tu não podes ir é vedado ao Homem desde que este saiu do Paraíso Terreno” afirmou o Anjo “Então como faço para ver-te?” Questionou, com um ar triste, Chris Two. O Anjo acariciou-o e deu-lhe um longo beijo nos lábios. “Sempre que tu quiseres, Chris, desde que sejas Peregrino podes estar comigo sempre que me desejes” Chris sorriu e o Anjo cobriu-lhe o corpo com as enormes asas. Sentiu-se confortável, aninhado, como se estivesse no ventre materno. Deixaram-se ficar assim enquanto a Lua Cheia iluminava os céus da noite.

Quero agora falar-vos um pouco sobre a liberdade de viajar, ou melhor, o direito a viajar, na Arábia Saudita. Começa, este relato, em 10 de Abril de 2012, no Tribunal Especializado em Assuntos Penais, em Riade, que sentenciou um cidadão (ao qual foi negado o direito de dispor de advogado) a uma pena de prisão de 4 anos e á proibição de viajar durante 5 anos. No dia seguinte, o mesmo tribunal, sentenciou um professor universitário da Faculdade de Direito da Universidade Islâmica do Íman Mohammed Bin Saud, de Riade, a 5 anos de cadeia e á proibição de viajar durante outros 5 anos, após cumprimento da pena de prisão.

Ambos os cidadãos sauditas são activistas políticos e as respectivas sentenças revelam duas alterações nos procedimentos penais aplicados a prisioneiros de consciência. A primeira é o facto de os activistas políticos estarem a ser julgados num tribunal especial do Ministério do Interior, criado para o julgamento de actividades terroristas e não de participantes em manifestações pacíficas. A segunda o facto de ter sido introduzida a figura inconstitucional da proibição de viajar. A utilização desta proibição é uma violação á Carta Árabe dos Direitos Humanos e á Lei Fundamental de Governação da Arábia Saudita, para além de ser contrária a todas as leis sauditas sobre a figura e o acto de viajar e ao Direito Internacional.

Estas proibições de viajar são um reflexo da mentalidade policiomaniaca do regime saudita e um tique nervoso do regime que recorre á política de segurança prevalecente no reino até á década de 90. Eram prácticas anteriores á Internet e às novas tecnologias informativas e comunicativas. Naqueles tempos idos a informação era controlada pelo estado. Havia dois canais de televisão, meia dúzia de periódicos, telefones fixos…nesses tempos a proibição de viajar era uma constante aplicada às penas legais. Limitava-se assim o acesso á informação e ninguém sabia o que se passava no mundo. Na actualidade limitar a vida politica e social é cada vez mais difícil, pois as novas tecnologias permitem ter uma informação não controlada pelos censores.

A segunda parte do Artigo 6 da Lei Saudita sobre Documentos e Viagens (promulgada no ano 2000) estipula que não se pode proibir alguém de viajar excepto se um tribunal assim o decidir ou por uma decisão emitida pelo Ministério do Interior por razões referentes á segurança, durante um período específico de tempo, devendo a pessoa em causa ser avisada no período de uma semana a contar da decisão. No caso das decisões emitidas pelos tribunais o objectivo é assegurar que quem está a ser julgado, não escape do país e esteja presente até ao fim do processo. Para além desses casos a lei admite a coibição de viajar em casa de tráfico de drogas (Artigo 56), fraude comercial (Artigo 23), branqueamento de dinheiro (Artigo 5) e litígios por dívidas (Artigo 586). Estas restrições são absolutamente normais e estão de acordo com o Direito Internacional. É absolutamente comum que uma pessoa que esteja a ser objecto de uma investigação ou de um processo em tribunal seja condicionada, desde que tal procedimento esteja previsto na lei, assim como pela lei seja delimitado a forma de o fazer, em que casos, em que período de tempo, etc.

Ora o problema é quando este castigo é aplicado de forma generalizada e desrespeitando os princípios que gerem os direitos, liberdades e garantias. Para além da Arábia Saudita este é um castigo aplicado com frequência e para além do âmbito das legislações nacionais, pela Birmânia, China, Israel, Irão, Rússia, Bielorrússia, Síria, Bahrein, Uzbequistão, Emiratos, e Iémen. Contrariam estes países a Declaração Universal dos Direitos do Homem, em particular nos artigos 13 (direito de viajar e retornar) e ao artigo 29 (sobre a liberdade de movimentos), além do artigo 12 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (sobre as restricções ao direito de viajar), embora este pacto não tenha sido assinado pela Arábia Saudita. Com esta práctica também é violado o artigo 27 da Carta da Liga dos Estados Árabes sobre Direitos Humanos, assinada pelos 22 estados, entre os quais a Arábia Saudita.

Não ser, não conhecer. É a utopia dos Senhores do mundo. De Riade a Washington, de Pequim a Moscovo ou de Berlim ao resto do mundo, todos eles, os Senhores do mundo, juntos num imenso murmúrio sussurrante e ameaçador: não sejas, não conheças.

Fontes
Carmen Valina; Lesbianárabes; http://www.aish.es
Norah Al-Molhim; The war against activists. Turning Saudi Arabia into a big jail; http://www.jadaliyya.com

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