Sol, opinião
Aconteça o que acontecer – e apesar de tudo o que tem acontecido – «os portugueses já não estão perante o abismo».
Quem fala assim, quando a evidência do abismo é cada vez mais visível no horizonte português e europeu, já não é José Sócrates, com o optimismo à prova de bala que caracterizava o seu discurso de negação da realidade, mas o seu sucessor como primeiro-ministro: Passos Coelho.
A continuidade da retórica sobreviveu à diferença de estilos, um ano depois da tomada de posse do novo Governo que agora se vê confortado com a passagem em mais um exame da troika (embora ainda insatisfeita com a lei laboral e as rendas excessivas no sector da energia).
A marcha das falências e dos despedimentos, o aumento galopante do desemprego, a recessão em crescendo, o empobrecimento brutal do país parecem resumir-se a dificuldades dolorosas mas previsíveis e necessárias, que não deveriam impedir-nos de olhar para além do abismo. É pelo menos nisso que aparentam confiar Passos Coelho, Vítor Gaspar e o trio de examinadores estrangeiros das nossas contas.
O défice do primeiro trimestre deste ano foi, afinal, mais do dobro do que o previsto, reflectindo o impacto da retracção económica? É um mero acidente de percurso que não afectará o ajustamento final, assegura Passos. A explosão da bomba-relógio das PPP, revelada no último relatório do Tribunal de Contas, onerando o Estado e os contribuintes durante gerações e beneficiando bancos e concessionários privados? Resposta ‘politicamente correcta’: é outra herança funesta da era socrática, que irá – tal como as restantes – criar problemas tremendos mas não insuperáveis se formos ainda mais longe na aplicação do programa de austeridade.
A conjuntura internacional, as ameaças grega, italiana e espanhola – à qual estamos intimamente expostos –, o risco iminente de colapso da zona euro e a desagregação da própria União Europeia são ‘variáveis’ que Portugal obviamente não controla, mas das quais o nosso Governo parece não querer ouvir falar de todo. Como se pudesse escapar delas limitando-se a cumprir o papel de ‘bom aluno’ e a prosseguir um ajustamento caseiro que lhe evitará a queda nesse abismo invisível para os cegos que nos dirigem.
São cegos mas alguns deles também irreprimivelmente desbocados, como o ministro Relvas ou o ministro-fantasma das privatizações, António Borges. Exilado da Goldman Sachs e do FMI – que continua a pagar-lhe um salário de 225 mil euros isentos de impostos –, Borges acumula agora o trono de privatizador-mor com o de administrador não executivo da Jerónimo Martins. Privilégios e incompatibilidades escandalosas? Nem por sombras. Para Borges, segundo uma entrevista recente, o escândalo está nos salários excessivos (não o dele, claro) que se pagam em Portugal e prejudicam a nossa competitividade…
Relvas e Borges falam demais? Pois falam. Mas antes isso do que o contrário. O desbocamento tem a virtude de revelar – a quem ainda tivesse dúvidas – a duplicidade ética e política que podemos encontrar num Governo de ‘bons alunos’. Se Passos imagina Portugal livre do abismo, talvez devesse esforçar-se, pelo menos, em prevenir o abismo da falta de credibilidade que espreita o seu Governo.
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