É preciso bodes expiatórios para que 1% continue empilhando riquezas, controlando produção e alimentando crises cada vez mais profundas.
Flávio Lyra* - Outras Palavras
A crise de endividamento da Grécia tem sido tema obrigatório da imprensa em todo o mundo. A Grécia é um pequeno país, membro da Zona do Euro desde 2001. Diariamente, atribui-se à crise grega as flutuações nos índices das bolsas de valores em todo o mundo.
A Zona do Euro, que adotou a moeda comum em 1990, abarca 17 dos 27 países que constituem a União Européia. Trata-se da maior economia do mundo, com cerca de 321 milhões de habitantes.
A Grécia, com 11 milhões de habitantes, representa apenas 3,4% da população da Zona e sua renda per capita é de 39 mil dólares, ou seja, o quádruplo da brasileira, portanto, um país “desenvolvido”.
Tem sido crescente a resistência que a população vem manifestando para submeter-se ao plano de austeridade que a União Europeia, em articulação com o Fundo Monetário Internacional, negociou com o governo do país, como condição para rolagem de sua dívida externa em condições de perdão parcial do valor devido.
O impacto inicial da execução do plano, que implica fortes reduções nos gastos públicos, tem agravado sensivelmente a situação social do país, em decorrência dos cortes nos salários, dispensa de funcionários públicos e outras medidas de contenção, produzindo queda no nível da produção e aumento nas já elevadas taxas de desemprego.
Coloca-se, agora a possibilidade de o país abandonar a zona do Euro e reconstituir sua moeda nacional, para o que será determinante o resultado de nova eleição para o parlamento a ser realizada em 17 de junho, e a escolha de um novo primeiro-ministro.
Numa primeira eleição, realizada há poucos dias, os partidos que estavam no governo e aprovaram o plano de austeridade em execução foram fragorosamente derrotados. Não foi possível, porém, montar uma maioria entre os partidos vitoriosos para instalar um novo governo.
Para os menos informados, fica a impressão de que o que vem ocorrendo na Grécia é um fenômeno localizado, fruto da inapetência de sua população para o trabalho e de seu governo para com a austeridade fiscal. A “grande” imprensa não tem se furtado a atribuir a esses fatores a causa principal das dificuldades gregas atuais.
A atitude dos dirigentes da Zona do Euro, sob a influência de seus mais importantes membros, Alemanha e França, que inicialmente resistiram à renegociação da dívida grega em condições compatíveis com o quadro de dificuldades atravessado pelo país, contribuiu para o agravamento da situação.
A renegociação, finalmente realizada implicou forte redução no valor da dívida, porém com a exigência de realização de um plano de austeridade fiscal que deixa dúvida sobre sua viabilidade política, em face da resistência que a população tem apresentado à luz da sensível piora já ocorrida nas condições gerais de vida.
O que vem acontecendo na Grécia não é de maneira alguma um fato isolado, tem atingido vários outros países, como a grande imprensa muitas vezes procura insinuar, no intuito de minimizar os efeitos da crise profunda que o sistema capitalista como um todo está vivendo, a maior crise de sua história iniciada com a Revolução Industrial em meados do século XIX. Crise inerente a uma ordem socioeconômica fundada na propriedade privada e na busca do lucro como objetivo primordial.
O resultado natural do funcionamento dessa ordem socioeconômica tem sido à concentração da renda e da riqueza em poucas mãos em detrimento do poder de consumo da maioria da população. A forma de viabilizar o aumento do consumo, que mantém o sistema produtivo em expansão tem sido o aumento explosivo das operações de crédito e do endividamento da população.
Quando o nível do endividamento ultrapassa certos limites, a renda da população já não permite fazer face aos custos da dívida, como aconteceu em 2008. Surge um movimento em cadeia de inadimplências, que acaba por atingir todo o sistema.
Operações nada criam, em termos materiais. Mas são meios de transferência e concentração da riqueza nas mãos da oligarquia internacional que comanda grandes corporações privadas
Agrava sensivelmente a situação o fato de que, no estágio atual de desenvolvimento do capitalismo, o sistema financeiro internacionalizou-se e adquiriu um alto grau de autonomia em relação à produção material. Passou a comandar as decisões econômicas e políticas no âmbito internacional.
A busca do aumento dos lucros nas operações financeiras levou os bancos a expandiram de forma descontrolada as operações de crédito que servem de base para uma ampla variedade de operações com títulos financeiros. Nada criam em termos de produção material, mas funcionam como meios de transferência e concentração da riqueza nas mãos da oligarquia internacional que comanda as grandes corporações privadas.
A atual crise foi desencadeada no setor imobiliário dos Estados Unidos, onde a farta disponibilidade de crédito gerou um movimento especulativo que produziu uma “bolha imobiliária” – ou seja, um exagerado aumento da oferta e dos preços de imóveis.
Como o crescimento da renda dos compradores não acompanhou o aumento dos juros e obrigações das dívidas, desencadeou-se um processo de inadimplência. Ele se propagou facilmente a toda a economia, e ao resto do mundo, graças à vulnerabilidade criada pela expansão exagerada e cada vez mais arriscada das operações de crédito.
As companhias de seguros e os bancos foram duramente atingidos, não apenas pela inadimplência nos empréstimos para as famílias. Também sofreram com o colapso de operações de crédito destinadas a financiar aplicações nos mercados de títulos financeiros e empréstimos vinculados à divida soberana de países que, devido às facilidades do crédito, tornaram-se crescentemente deficitários em suas contas externas.
No início da crise, o terceiro maior banco sediado nos Estados Unidos, o Lehman Brothers, foi à falência. Outros grandes bancos não seguiram o mesmo caminho porque o governo dos Estados Unidos destinou cerca de 700 bilhões de dólares à cobertura de seus passivos gerados pela inadimplência das operações com os chamados “ativos tóxicos”. Na Europa, os governos também tiveram que entrar em cena para salvar seus grandes bancos da insolvência.
A crise continua muito presente nos países desenvolvidos, onde as taxas de crescimento da produção são muito baixas ou até mesmo negativas e as taxas de desemprego muito elevadas. As políticas econômicas que esses países vêm adotando visam transferir os custos da redução de suas dívidas públicas para a classe trabalhadora, via contenção dos gastos sociais.
Na Europa, além da Grécia, onde o problema do financiamento da dívida soberana junto aos bancos vem assumindo caráter dramático, também estão em situação crítica Irlanda, Portugal, Espanha e Itália, que sob pressão dos bancos credores de suas dívidas soberanas, estão adotando políticas de vigorosa austeridade fiscal, obtendo como resultado recessão da atividade econômica e altas taxas de desemprego.
A crise assumiu dimensão política nova, frente a crises semelhantes ocorridas no passado. Os dois traços principais agora são: a) grande influência do poder financeiro sobre os sistemas políticos nos países centrais, o que favorece a adoção de políticas econômicas norteadas pela mal-chamada “austeridade” fiscal; b) surgimento em vários países de movimentos de protesto contra a atuação dos governos e rejeição nas urnas dos partidos políticos tradicionais.
Nada mais injusto que atribuir a culpa aos gregos, quando mercado internacional está em crise e produção do país não se mostra capaz de competir externamente
A Grécia é hoje o palco onde ocorre, em escala reduzida, o desdobramento de uma crise mundial. Sua população foi colocada diante da alternativa de abandonar a moeda da zona monetária a que pertence, por não suportar os custos sociais inerentes à política que lhe está sendo exigida, como condição para renegociar sua dívida externa.
Essa dívida externa, que se tornou impagável, foi constituída para estimular as exportações dos demais países da União Europeia para a Grécia, sob o beneplácito dos bancos que a financiaram. Portanto, nada mais injusto do que atribuir inteiramente ao povo grego a culpa por não poder arcar com os elevados custos do endividamento, mormente num contexto em que o mercado internacional está em crise e a produção do país não se mostra capaz de competir externamente.
O caso da Grécia é apenas um exemplo do que pode vir a ocorrer com os países da América Latina, com a persistência da crise e o acúmulo de dívida externa junto aos grandes bancos que controlam as finanças internacionais.
Diante desse quadro caótico da economia internacional, faz todo sentido indagar-se até quando a humanidade vai suportar a existência da ordem social capitalista, na qual a busca incessante do lucro empresarial e da acumulação de riqueza privada conduz a crises tão destrutivas como a atual. Crise profunda, num contexto em que a abundância é perfeitamente realizável.
* Flávio Lyra é economista. Cursou doutorado de Economia na UNICAMP. Ex-técnico do IPEA.
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