quinta-feira, 12 de julho de 2012

PORTUGAL PASMADO




José Maria Carrilho – Diário de Notícias, opinião

A crise que vivemos em Portugal é, para lá das suas características bem conhecidas e do seu evidente carácter global e sistémico, uma aguda crise das elites, tanto no plano moral como intelectual. E de todas as elites, sejam elas políticas ou jornalísticas, financeiras ou universitárias.

No plano moral, isto ressalta claramente da ascensão do "xico-espertismo" em todos os tipos de poderes, sem exceções. No plano intelectual, isto revela-se no esgotamento do modelo que condicionou as opções políticas da última década (e não só), que resiste e persiste apesar de todas as denúncias, críticas e lamentações.

Um penoso retrato desta situação tem sido dado, tanto pelas novelas que se repetem sobre as falcatruas de percursos académicos de altos responsáveis políticos, como pelos casos de contumazes plágios de "senadores" da República que, apesar das cumplicidades de que beneficiam, lá se vão descobrindo. E a procissão ainda só vai no adro!...

No momento em que se avalia o "estado da Nação", Portugal olha assim pasmado para um deplorável espetáculo em que a contínua exortação do rigor, da eficiência e da competitividade se misturam com a inverosímil multiplicação de sinais em sentido contrário: de despautério, de ignorância e de amoralidade.

É desolador. Sobretudo porque, para lá das heranças e do que tem que ser feito, a margem de manobra é muito superior ao que se faz crer, há muito que devia e podia ser feito. Paulo Portas parece ver isto, percebendo que no mundo da globalização só é possível compensar a perda de capacidade e de poder no interior com estratégias ousadas no exterior.

Vivemos de facto uma crise nova, que exige uma nova compreensão do mundo. E esta passa por perceber que, como explica Marcel Gauchet, se vive uma crise de crescimento da própria democracia. A tese nuclear de Gauchet (que o leitor pode encontrar no pequeno mas precioso livro que a Editorial Estampa acaba de publicar em português com o título A Democracia entre Duas Crises) é que, historicamente, a democracia se estruturou em torno de três polos, o político, o direito e a história. O político emergiu com o Estado nação e consagrou o poder de cada comunidade se governar a si própria. O direito veio garantir a crescente preponderância dos indivíduos, a ponto de ser a partir dele que se pensa (ou não) o próprio coletivo. E a história correspondeu à viragem da tradição para o futuro, abrindo-a à mudança e organizando a sua própria transformação.

Se as dificuldades atuais configuram uma crise "de crescimento" da própria democracia, é porque a harmonia entre estas vertentes deu progressivamente lugar a um aceso atrito entre elas, com todas a procurarem impor-se "a solo", com exclusão das outras. E ao fazê-lo desencadeiam tensões que expõem as sociedades às aventuras mais imprevisíveis, como já aconteceu no século XX com a primeira crise de crescimento da democracia, que conduziu à irrupção dos diversos totalitarismos, por um lado, e à formação das democracias liberais, por outro.

A nova crise de crescimento que agora vivemos consiste em que, diz M. Gauchet, "por um lado, a legitimidade democrática penetra irresistivelmente na realidade dos factos e impõe o reino das massas, enquanto, por outro lado, esta progressão teórica da autonomia, garantida pelo poder através do sufrágio universal, longe de conduzir a um efetivo autogoverno, leva na prática a uma perda de controlo coletivo" (p. 33).

E acrescenta: "O regime parlamentar revela-se pois simultaneamente enganador e impotente; a sociedade, atormentada pela divisão do trabalho e pelo antagonismo das classes, dá a impressão de se desunir; a mudança histórica, ao mesmo tempo que se generaliza, acelera-se, amplifica-se, subtrai-se a todo e qualquer controlo. No próprio momento, por conseguinte, em que os homens deixam de poder ignorar que são eles quem faz a história, são forçados a admitir que não sabem que história é que fazem. Obtiveram a sua completa liberdade enquanto atores, mas foi apenas para mergulharem no caos e na impotência face a si mesmos." Surge por isso a dúvida sobre se não se terá desembocado numa sociedade insustentável.

Nos anos 40/50 do século passado construiu-se na Europa uma síntese que se revelou durante algumas décadas prodigiosamente eficaz, ao conseguir harmonizar o papel do Estado, a afirmação do indivíduo e o sentido da história. Mas esta síntese traria com ela um conjunto de problemas de que só muito mais tarde haveria uma consciência clara, nomeadamente pela irrupção de um agudo desequilíbrio entre aqueles três fatores, agora a favor do direito, que conduziu a uma "entronização majestática" do indivíduo e dos seus direitos.

Toca-se aqui no ponto central da fragilização das democracias contemporâneas, colocando-as perante responsabilidades que parecem esquecidas. Marcel Gauchet, que é um pensador muito atento à realidade concreta da política contemporânea, tem chamado bem a atenção para este ponto nas suas intervenções públicas, nomeadamente depois da mudança presidencial de maio passado, em França.

E tem-no feito insistindo muito num aspeto que comecei por referir: a crise em curso é uma crise das elites, no sentido em que, como explicou numa recente entrevista ao Le Nouvel Observateur, ela "é uma crise do modelo intelectual que condicionou todas as políticas públicas dos últimos trinta anos. As conceções da economia e da sociedade que se traduziram nas reformas do Estado e nas regras do funcionamento da Europa face à globalização foram radicalmente postas em causa. Uma situação excecional que dá uma excecional responsabilidade ao poder socialista, que está condenado a ser particularmente inventivo se não quiser falhar" - e o inventivo, em política, exige não só a novidade, mas também a sua combinação com a eficácia na resolução dos problemas.

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