Talvez a obra de
Lobato possa servir como instrumento de docentes empenhados em demonstrar que o
racismo precisa ser superado, que a odiosa distinção entre negros e brancos,
baseada tão somente na diferença de cor, admitida em tempos antigos de triste
memória, é hoje, no mínimo, injustificável
O Supremo Tribunal
Federal protagonizará uma das mais importantes discussões da atualidade,
diretamente relacionada ao amadurecimento do Estado Democrático de Direito, por
envolver assuntos polêmicos e de envergadura constitucional como censura, livre
opinião e racismo. Refiro-me à controvérsia acerca da distribuição, em escolas
públicas, da obra “Caçadas de Pedrinho”, de Monteiro Lobato, que alegadamente
conteria adjetivações ofensivas à personagem Tia Nastácia.
A questão foi parar
no Supremo por provocação do Instituto de Advocacia Racial – IARA, após o
Conselho Nacional de Educação – CNE manifestar-se favoravelmente à distribuição
em escolas públicas. Há que se notar que a pretensão, portanto, não é a de
proibir a publicação ou a comercialização do livro. Ainda assim, a manifestação
da Corte estabelecerá paradigma com possíveis efeitos a situações mais
abrangentes.
Intelectuais de
renome têm se manifestado contrários a restrição. Argumentam que é preciso
examinar o contexto histórico e sociológico no qual a obra foi escrita. Que em
trabalhos importantes de Aristóteles e Platão, por exemplo, são identificadas
passagens abertamente escravagistas ou machistas, sem que por isso tenham sido
censuradas.
Na oportunidade em
que escritos, a escravidão se impunha como direito dos conquistadores sobre os
vencidos, ou dos civilizados helênicos sobre os povos que reconheciam como bárbaros,
assim como era natural considerar os homens superiores às mulheres, as quais
sequer podiam participar das celebradas deliberações democráticas da antiga
Grécia.
Pois Monteiro
Lobato escreveu influenciado por idéias eugenistas, numa conjuntura onde os
negros eram representados de maneira estigmatizada e aviltante. O discurso
racista, em voga na época, e não restrito ao Brasil, terminou por resultar numa
das maiores tragédias da humanidade, o Holocausto. Embora os judeus tenham sido
as maiores vítimas da infâmia, outras etnias e grupos religiosos também foram
perseguidos sob o argumento da superioridade ariana.
Outra consideração
plausível é a necessidade de encarar-se franca e radicalmente o problema do
racismo. Podem ser reduzidas atualmente suas manifestações ostensivas, mas é
inegável a habitualidade com que aparece de forma velada ou disfarçada. Em
plano mais genérico, basta observar as estatísticas a respeito de quais os
grupos étnicos que compõem as classes socialmente menos e mais privilegiadas do
país, quais integram majoritariamente os quadros universitários, quais
ingressam em maior quantidade no sistema penitenciário, e cotejá-las aos
números absolutos de negros e brancos que se incorporam à população brasileira,
para notar visível distorção.
Por que
dissimulado, é que o racismo deve ser exposto. Uma das construções
psicanalíticas mais interessantes sugere a figura do recalque como origem de
manifestações neuróticas em alguns indivíduos. Por não lidarem na oportunidade
adequada com suas exigências pulsionais, depositam no inconsciente tensões que
surgirão de maneira perturbadora noutro momento. Mal comparando caberia indagar
se os efeitos perversos desse racismo escuso, reprimido pelo golpe de uma
decisão proibitiva, não retornaria no futuro de maneira agressiva e
incontrolável.
Nesse sentido,
talvez a obra de Lobato possa servir como instrumento de docentes empenhados em
demonstrar que o racismo precisa ser superado, que a odiosa distinção entre
negros e brancos, baseada tão somente na diferença de cor, admitida em tempos
antigos de triste memória, é hoje, no mínimo, injustificável. Antes que a obra
seja encarada como estímulo ao racismo, que seja utilizada exatamente como arma
contra ele, desencadeando o tratamento aberto que o tema merece, cumprindo ao
estado – a despeito de suas ineficiências – preparar adequadamente os professores
e atuar pontualmente nas situações em que identificado mediante imposição de
sanções penais, indenizações etc.
Mas há uma questão,
de natureza bastante pessoal, porém não por isso menos importante, que preciso
considerar. Não sou negro. Jamais fui vítima do que amigos negros identificam
como preconceito. Não senti na pele, e em razão da pele, essa execrável
hostilidade.
A controvérsia é de
dificílima resolução. É provável que não se chegue a qualquer consenso. Mas é
premente seu enfrentamento, por propiciar que se descortine uma realidade que
sempre foi convenientemente ocultada ou eufemisticamente tratada sob o mito da
democracia racial, e para fazer frutificar, nesta sociedade etnicamente plural,
soluções socialmente integrativas.
*Artigo de Gerson
Godinho da Costa, Juiz Federal, publicado na 37ª edição do Jornal Estado de
Direito
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