ANA DIAS CORDEIRO – Público –
foto Enric Vives-Rubio
Querer saber se a
Renamo tem armas seria o mesmo que perguntar “Quem matou Kennedy?” diz o
académico moçambicano Elísio Macamo. “Nunca vamos ter resposta.” Mas apesar da
fragilidade do país e das ameaças de Afonso Dhlakama, não acredita num regresso
à guerra em Moçambique.
A África de muitas
latitudes tem também várias camadas. Como o mundo inteiro. Ou um país apenas:
Moçambique. África pode ser ilusão. Pelo menos como a conhecemos, ou seja, sob
a forma de narrativas muito simples que escondem os efeitos acumulados de uma
história complexa. As palavras são do académico moçambicano do Centro de
Estudos Africanos da Universidade de Basileia na Suíça Elísio Macamo que agarra
esta imagem para explicar A Ilusão da África conhecida – título da sua
apresentação em Lisboa na conferência O tratamento dado à informação sobre
África pelos media inserida no programa Próximo Futuro da Fundação Calouste
Gulbenkian no fim de Novembro.
Elísio Macamo falou
mais tarde ao PÚBLICO desse fio de narrativas com o qual criamos “a ilusão que
entendemos Moçambique”; da oposição política da Renamo que, nos 20 anos dos
Acordos de Paz assinados a 4 de Outubro de 1992 em Roma, ameaça voltar à
guerra; e de uma Frelimo dominante, produto de uma ideia fantástica porque
sobre ela se projectam medos e esperanças. Uma Frelimo com um rosto: Guebuza
que deixa a presidência do partido e do país em 2014. O sucessor (daquele que
sucedeu a Joaquim Chissano) será uma escolha dentro da Frelimo. “Não da
maioria, de uma minoria influente.”
Se a Frelimo é
fantasia, será a Renamo ilusão?
Ilusão por existir
sem perspectiva, pelo menos para já, de vencer eleições gerais. “A Renamo não é
uma ilusão”, salienta Elísio Macamo. Mas é à luz da ilusão e da fantasia que o
académico doutorado em Sociologia olha para o seu país. As suas respostas podem
ter “várias dimensões”; e a mesma pergunta receber um “sim” e um “não”. Como
a questão de saber se as ameaças da Renamo, nos últimos meses, de um
regresso à luta contra a Frelimo são para levar a sério. “Sim e não.”
Do lado do sim:
“Moçambique é uma construção muito frágil. É como um castelo de cartas que pode
cair ao mínimo sopro. Qualquer pessoa, qualquer grupo de pessoas, com vontade e
com meios, pode inviabilizar um país como Moçambique. Esse é um perigo real.”
Do lado do não: “Muita coisa mudou. A situação na região é muito diferente
daquela que tivemos quando a Renamo foi criada, a África do Sul não é a mesma
África do Sul, o Zimbabwe não é a Rodésia do Sul. Temos uma situação
internacional completamente diferente. Os países que, no passado, deram apoio
moral e material à Renamo estão hoje mais interessados em investir em
Moçambique. Perante a actual explosão de recursos, ninguém está
interessado em apoiar uma rebelião em Moçambique.”
A Renamo não é
ilusão. Pelo contrário. “A Renamo existe verdadeiramente. Sentiram-se os
efeitos da sua existência com a guerra civil em Moçambique mas também com a
abertura do sistema político." A principal motivação da Renamo, porém,
“não foi necessariamente” lutar pela democracia. “Essa é uma questão que não
precisamos de discutir”, diz Elísio Macamo. O importante, acrescenta, é que “a
Renamo existe pelos seus efeitos e esses efeitos são palpáveis”.
Na realidade,
explica, “a Renamo foi algo muito mais ligado à geopolítica da região, à
Rodésia do Sul, ao apartheid na África do Sul e também à Guerra
Fria”. Noutra dimensão, foi mais do que isso. “Ela também se nutriu de
problemas reais criados pelo totalitarismo da Frelimo nos anos imediatamente a
seguir à independência. Isso também desempenhou um papel muito importante para,
ao longo do tempo, conferir um cunho mais moçambicano à rebelião.”
Caixa negra da
história
Querer saber se a
Renamo tem armas seria o mesmo que perguntar “Quem matou Kennedy?” diz Elísio
Macamo. “Nunca vamos ter resposta.” O problema é que às vezes convém ao líder
da Renamo dizer que tem armas e outras vezes ao Governo dizer que a Renamo tem
armas, refere. E homens? “Ele pode dizer que tem, mas não tem. Eu acho que ele
nunca vai fazer nenhuma acção militar.”
Com ou sem
alternância política, podemos imaginar estas ameaças da Renamo – a exigir o fim
da partidarização do Estado e do domínio da Frelimo e uma alteração da Lei
Eleitoral para, segundo diz, evitar fraudes nas eleições – a serem
colocadas numa caixa negra que mistura tudo, ora ocultando ora expondo. Uma
caixa negra, diz Macamo, que permita apenas a quem tenha acesso a ela
entender Moçambique.
Mas entenderemos?
Para além do que se vê, há a complexidade de efeitos acumulados do mosaico de
acontecimentos passados: “Da história colonial, do namoro que houve em
Moçambique com ideologias revolucionárias, de todos os conflitos provenientes
da tensão da Guerra Fria. Os efeitos acumulados disso tudo produzem o pano de
fundo, uma espécie de caixa negra. Só quem tem acesso a ela, pode entender
Moçambique.”
Foi lá que Elísio
Macamo nasceu – em Xai-Xai em 1964. Está lá o seu farol. Foi lá que começou os
estudos antes de os prosseguir em Inglaterra e Alemanha onde vive.Todos os dias
atravessa a fronteira com a Suíça, onde trabalha. É, desde 2009, director do
Centro de Estudos Africanos da Universidade de Basileia onde também é professor
e dirige o Doutoramento e o Mestrado em Estudos Africanos. Talvez por isso seja
capaz de olhar a Europa e a África quase em espelho, para apontar diferenças e
semelhanças à vista de todos mas não vistas por todos.
A possibilidade
de alternância
É esse “olhar o todo” que o leva a dizer que a ausência de alternância política
não é necessariamente uma coisa má, desde que haja coerência “no agir político”
e força da sociedade civil. Não é o que acontece em Moçambique. Mas podia ser.
Por isso a sua resposta continua a ser que “a dominação de um partido não tem
de ser uma coisa necessariamente má”.
Moçambique terá
este ano eleições autárquicas. No próximo realizam-se as legislativas e
presidenciais. As quatro últimas eleições gerais realizadas no país desde a paz
em 1992 foram ganhas pela Frelimo, primeiro com Joaquim Chissano e depois
Armando Guebuza que prepara a sucessão para abandonar o cargo em
2014.
“A alternância para
mim é apenas uma possibilidade. A democracia não precisa necessariamente da
alternância. A democracia precisa da possibilidade da alternância”, diz. E
explica: “Temos experiências disso na Escandinávia, onde depois da II Guerra
Mundial, a Suécia ou a Finlândia foram praticamente governadas por um único
partido – o Partido Social Democrata.” Acrescenta o exemplo do estado alemão da
Baviera governado por um único partido – a União Social Cristã (CSU), irmão da
CDU – até 2008 e quase ininterruptamente desde o fim da II Guerra Mundial.
Em Moçambique, no
entanto, “a dominação de um partido cria condições para a emergência de uma
cultura cívica e política problemática em que as pessoas com melhor formação,
por conveniência ou oportunismo, se associam a esta formação dominante e ajudam
a perpetuar coisas nocivas para o país”.
Zonas rurais e
redes sociais
Com a sua presidência aberta de Norte a Sul do país, Armando Guebuza, eleito
pela primeira vez em 2004, tornou-se uma figura popular fora das cidades. Mas é
também contestado nos debates e nas redes sociais, como o Facebook, onde se
questiona o seu estilo de liderança, os seus interesses empresariais, a falta
de transparência e a não distinção entre o público e o privado.
Guebuza sairá antes
das eleições de 2014. A questão da sua sucessão foi deixada em aberto no
Congresso de Novembro. Mas é ele quem está "numa posição forte para
escolher o sucessor”, nota Elísio Macamo. E para a escolha, mais do que a
eleição, o que conta é a negociação. “Nunca vai ser uma escolha da
maioria. Vai ser sempre a escolha de uma minoria influente."
Pela história
recente de Moçambique – com a luta de libertação nacional – e por ser um
partido dominante, criou-se “uma ideia fantástica da Frelimo” como “força todo
poderosa”, diz o académico. "Porque estamos a viver neste sistema dominado
por um único partido, é muito difícil ver que este partido é feito de pessoas,
de conflitos…e que não precisam dos desígnios maquiavélicos que temos por
hábito projectar sobre eles", considera. "A Frelimo não é aquilo que
muitos de nós, em Moçambique, pensamos que é. Com os nossos medos, a nossa
autocensura, o nosso oportunismo, produzimos essa ideia fantástica da Frelimo.
E é essa ideia que nos governa.”
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