Verdade (mz), em
Tema de Fundo
Os agentes da
Polícia da República de Moçambique continuam a fazer vítimas. Chande e
Zandamela são dois exemplos da negligência dos agentes da lei e ordem. O
primeiro encontrou a morte num local inesperado. Quito, outro dos infortunados,
sobreviveu graças à tenacidade da mãe. Em suma, representam uma gota no oceano
dos enteados do Estado. com o destino, mas não sabia que o mesmo era a morte.
Um polícia à
paisana disparou para a multidão e a bala foi-se alojar no seu corpo, no
interior de uma mercearia, e pôs um ponto final na sua vida. Era tarde de
domingo. Uma multidão assistia a uma sessão de rali protagonizada por alguns
jovens na via pública quando se ouviu um estrondo. Depois seguiram-se outros.
Os presentes, em pânico, procuraram abrigo onde o desnorte os levou. De
repente, as balas cessaram e a rua voltou a ter vida. Aliás, nem tudo era vida.
Um corpo ficou tombado a esvair-se em sangue.
Um cadáver que era
o testemunho de que pelo menos um tiro não fora para o alto como a Polícia
dizia. Este acontecimento, que se parece com o argumento de um filme de ficção
de Hollywood, sucedeu no passado dia 25 de Abril, numa das principais vias do
bairro do Choupal, arredores da cidade de Maputo, deixou os moradores perplexos
e os familiares da vítima indignados e, acima de tudo, inconformados.
Eram 15 horas
quando Irachande Ismael, ou simplesmente Chande – como era tratado pelos
familiares e amigos –, de 23 anos, estudante da 10ª classe, decidiu ir a uma
mercearia, onde também se vendem bebidas alcoólicas, que se localiza a três
passos da sua casa, com o propósito de espairecer. A rua estava repleta de
pessoas que pareciam estar satisfeitas com o habitual espectáculo de
malabarismo com viaturas ligeiras proporcionado por um grupo de jovens do
bairro naquele dia de semana. Na mercearia, foi puxando conversa com algumas
pessoas conhecidas que por ali estavam e pediu uma cerveja.
Nunca havia ficado
naquele local por mais de cinco minutos, “quando entrava era apenas para
cumprimentar os seus amigos e ia-se embora”, explica Acácio Cumbe que há um ano
se encontra a gerir aquele estabelecimento comercial. Mas naquele dia “ficou
mais tempo do que o costume” para um encontro com a morte.
Na verdade, Chande
pediu uma cerveja porque deparou com uma amiga com a qual há muito não se
avistava. O rali acontecia defronte da mercearia e ao lado de um posto de venda
de energia para os usuários do sistema de Credelec, guarnecido por um polícia
que estava vestido à paisana por causa de um assalto que aquele estabelecimento
sofreu há alguns dias, segundo nos deram a conhecer os residentes do bairro.
Enquanto o público
se excitava com as cenas que testemunhavam in loco, o polícia de turno
“irritava-se com a situação”, o que o terá levado a retirar o revólver que
trazia escondido e “disparou vários tiros para o ar e contra os jovens que
faziam rali”, conta Omar Rufino, amigo e primo de Irachande. Em seguida,
instalou-se um tumulto, uma vez que as pessoas procuravam um lugar seguro para
fugir das balas.
Os que estavam na
mercearia lançaram-se ao chão. Volvidos poucos minutos, os gemidos de dor deram
a entender que alguém havia sido alvejado naquele recinto: era o Chande. As
pessoas aproximaram-se do moribundo e verificaram que fora ferido por uma bala
que lhe atravessou o lado esquerdo do corpo, na zona das costelas, de onde
jorrava sangue. De seguida, tratou-se de chamar os parentes da vítima que
acabaram por arranjar transporte para levar o seu ente querido aos cuidados
médicos no Hospital Geral José Macamo.
Antes disso, a
população revoltou-se contra a atitude do atirador, que foi levado para a
esquadra mais próxima, visto que aquele ponderava a hipótese de perpetrar uma
fuga. Devido à escassez de recursos, Irachande Ismael fora evacuado do leito
hospitalar onde se encontrava internado, para o Hospital Central de Maputo,
onde viera a perder a vida na madrugada de segunda-feira quando se lhe extraía
a bala.
Uma família
inconformada
O dia 25 de Abril
ficará na memória colectiva dos amigos e parentes de Chande porque “a sua morte
causou um impacto de enormes proporções”, disse Momed Ibrahimo, tio do
malogrado, para depois acrescentar que a família “não se conforma com a
situação e não acredita na história de bala perdida. Como as coisas
aconteceram, isso leva-nos a duvidar que realmente se tratou de uma bala
perdida”. Os parentes também estão indignados com a Polícia devido à sua
atitude de indiferença desde o momento em que lhe foi dado a conhecer o caso.
“Que a justiça seja feita”, é o que exigem.
“Sabemos que não
nos vão trazer o Chande de volta mas se o polícia não pagar pelo que fez, não
nos iremos sentir sossegados”, adianta um parente. Além da família da vítima,
amigos e pessoas mais próximas também clamam por justiça, tendo afirmado em
uníssono que “a justiça deve ser feita para dignificar o país” e lamentaram o
facto de a polícia reagir logo após assistir a uma reportagem televisiva onde
apareciam os membros da família a repudiarem o comportamento da mesma.
Aliás, foram
enviados dois polícias alheios ao caso para a casa da família enlutada, levando
uma cesta básica alimentar. “Extrovertido, simpático e uma pessoa com uma
imagem marcante”. São estas as palavras usadas por parentes, amigos e outras
pessoas mais próximas de Irachande Ismael para descrevê-lo.
Onde está o
polícia?
Segundo os
moradores, o polícia, cujo nome não nos foi facultado, encontrava-se sob efeito
de álcool na ocasião e tentou fugir quando se apercebeu de que havia uma pessoa
ferida. Porém, foi imobilizado pela população e de seguida levado à esquadra,
onde este afirmou que disparou para assustar as crianças que brincavam próximo
de onde acontecia o espectáculo e os próprios protagonistas. Volvida uma semana
em que esteve detido, o polícia é dado como desaparecido, o que forçou a
família da vítima a levar o caso à Liga dos Direitos Humanos.
No entanto, a Polícia
afirma que o indivíduo fora transferido da esquadra onde estava afecto para a
de Choupal “A” e desta para o comando da cidade porque ainda não estava em
condições de responder a qualquer tipo de questões.
Um tema que, sem
sombra de dúvidas, está presente na sociedade moçambicana: a responsabilidade
do poder público nos casos de “bala perdida”. Diante de uma notícia como esta,
muitos afirmam que o Estado responde, civilmente, perante a vítima. Mas, será
que essa premissa se aplica sempre?
Outra vítima
A história de
Chande não é um caso isolado. Aliás, assemelha- se à de muitos outros cidadãos
neste país. A esperança de justiça, que se seguiu à amputação da perna de
Quito, foi comprometida quando o Estado se furtou à sua responsabilidade pelo
sucedido. Hoje, ainda mais do que ontem...
Numa residência no
bairro do Maxaquene, as balas de 1 e 2 de Setembro deixaram uma vítima. Não lhe
tiraram a vida, mas levaram-lhe os sonhos. Primeiro, Quito foi atingido na
perna quando regressava da escola por um projéctil disparado pela Polícia.
Depois, por conta de uma “falha de procedimento” médico, amputaram-lhe duas
vezes a perna direita. Actualmente, ele e a família batalham na vã esperança de
que o Estado intervenha para reparar os danos. Agora, com menos fé do que no
período pós-manifestações.
Antes da tragédia
de 1 de Setembro, a progenitora ia frequentemente à vizinha África do Sul com o
fito de comprar produtos, os quais revendia em Moçambique. Uma actividade que
tinha os seus contratempos, mas que garantia o sustento do agregado familiar e
dava para guardar algum dinheiro para pequenas eventualidades. O negócio,
diga-se, corria de feição, até se dar a tragédia.
Assim, Maria do
Carmo trocou o país vizinho, símbolo máximo da prosperidade familiar, pelo
papel de enfermeira do filho que o Estado abandonou. Impossibilitada de se
deslocar à África do Sul, tem de se desenvencilhar no bairro do Maxaquene para
aumentar o minúsculo orçamento familiar. Passou a vender pão num local mais
próximo de casa para não abandonar o filho.
“Este país
inferniza a vida dos seus cidadãos”, diz. “Foi uma desgraça tremenda. O miúdo
já fazia os seus próprios biscates, mas logo virou um dependente total”, afirma
um vizinho.
Não fossem as
marcas profundas, o primeiro dia de Setembro de 2010 seria uma data para
esquecer. Com a notícia do incidente, o mundo dos Manganhelas quase desabou. Do
Carmo, qual mãe sem útero, andou desnorteada pelos hospitais de Mavalane e
Xipamanine e só ficou a saber do filho às 12 horas na Ortopedia 2 do HCM, onde
foi atendida às 16h30.
“Andei assustada.
Havia muitos cadáveres nos hospitais”, lembra. No entanto, saber que Quito não
tinha morrido, diz, foi o mesmo que sentir que lhe devolviam o útero. De acordo
com as palavras de Quito, no carro onde se faziam transportar, vários feridos
foram torturados pela polícia. Alguns agentes pisavam as suas feridas, alegando
que se tratava de marginais.
Logo que a mãe
avistou o médico no HCM, tratou de ouvir o diagnóstico sobre o filho. O
especialista garantiu que o problema não era complicado. Mas, uma semana
depois, outra sentença veio a terreiro: a perna de Quito devia ser amputada. O
sangue já não circulava de cima para baixo. “Implorei, mas o doutor mostrou-se
irredutível, sublinhando que outra solução seria impossível”, conta.
Afinal, Quito foi
atingido por uma bala na perna, mas o projéctil não ficou alojado no seu corpo.
Durante dois meses e três dias consecutivos a frequentar o HCM, Maria do Carmo
levava uma vida que se resumia à ida da sua casa ao hospital. Numa sexta-feira,
o filho começou a ter convulsões. Procurou o terapeuta e só o encontrou na
segunda-feira.
“O médico disse que
a perna seria amputada na quinta-feira e eu discordei, pois o garoto estava com
convulsões há três dias. O especialista disse que não sabia e decidiram
eliminar a perna na mesma segunda-feira, corria o dia 15 de Setembro”, conta.
Anteriormente, a
mãe havia falado com o médico para saber se o hospital ofereceria muletas. A
resposta veio pronta: “Não”, conta. Ela teve de pagar uma taxa de 700 meticais
referente ao internamento do filho.
Na verdade, desde 1
de Setembro que uma bala mudou completamente a rotina de uma família. Talvez
por isso, no dia 1 de Setembro, Quito imaginou, mais uma vez, que voltava da
escola sem passar pelo local onde as balas lhe amputaram os sonhos.
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