Argumento de que há
uma relação perniciosa entre alta dívida pública e crescimento do PIB,
encampado por políticos conservadores, começa a ser derrubado na academia.
Economistas da Universidade de Massachusetts acabam de publicar estudo que
invalida os achados estatísticos de Kenneth Rogoff e Carmen Reinhart (foto), os
'papas' daquela teoria.
Tomas Rotta -
Marx21 - Carta Maior
O influente estudo
de Kenneth Rogoff e Carmen Reinhart sobre a relação negativa entre dívida
pública e crescimento, publicado originalmente em 2010 na American Economic
Review e com a versão preliminar no NBER, acaba de ser desbancado por
economistas da Universidade de Massachusetts em Amherst.
O estudo de Rogoff e Reinhart foi base para o também livro best seller “This
Time Is Different: Eight Centuries of Financial Folly”. O argumento dos autores
é o de que há uma relação perniciosa entre alta dívida pública e crescimento do
PIB, o que foi imediatamente encampado por políticos conservadores como
justificativa científica para os programas de austeridade fiscal.
Mas outro recente estudo de Thomas Herndon, Michael Ash e Robert Pollin acaba
de invalidar os achados estatísticos de Rogoff e Reinhart ao mostrarem que
estes cometerem “erros” básicos de metodologia, além de “erros” ao utilizarem
funções no Excel. Pior ainda, o “erro” de Rogoff e Reinhart no Excel alterou
por completo a principal conclusão do estudo de que países com relação dívida
pública sobre PIB acima dos 90% sofrem, em média, crescimento negativo.
A história é a seguinte. Kenneth Rogoff e Carmen Reinhart, professores de
Harvard, queriam avaliar a relação entre crescimento do PIB e dívida pública.
Mas como ambos pesquisadores tem um viés ideológico evidentemente conservador,
lhes interessava encontrar uma correlação negativa entre a razão dívida pública
sobre PIB e a taxa de crescimento médio do PIB. E este foi o resultado que eles
de fato encontraram ao analisarem vários países em várias décadas.
Rogoff e Reinhart separam os países em quatro subgrupos de acordo com a relação
dívida pública sobre PIB: (1) abaixo de 30%; (2) entre 30% e 60%; (3) entre 60%
e 90%; (4) acima de 90%. E perceberam que o crescimento médio do PIB era
negativo (-0.1%) para os países no grupo com índice de dívida sobre PIB acima
de 90%. Concluíram então que o acúmulo de dívida pública ocorre em detrimento
do crescimento econômico.
Rogoff e Reinhart não escreveram que há uma relação causal entre dívida e
contração econômica. Limitaram-se a postular a correlação, sem implicar
qualquer causalidade. Mas o faziam em entrevistas para jornais e para a
televisão. Fora do mundo acadêmico, Rogoff e Reinhart afirmavam que de fato há
uma relação causal entre dívida e retração do crescimento.
Nada mais propício para os austeros de plantão que ansiavam por uma
justificação científica e objetiva para a contração fiscal e redução da relação
dívida-PIB. O achado foi utilizado diversas vezes no congresso dos EUA tanto
por senadores como por deputados como prova cabal de que o governo deveria
cortar gastos, em especial os gastos sociais.
Mas havia uma pedra no meio do caminho. O primeiro problema foi que vários
outros economistas tentaram replicar os resultados de Rogoff e Reinhart, todos
sem sucesso. Até que os autores tiveram que liberar seus dados e cálculos para
dois economistas da Universidade de Massachusetts em Amherst, nomeadamente
Michael Ash e Robert Pollin, os quais deixaram Thomas Herndon, colega de
doutorado em economia, encarregado de checar os cômputos.
Resulta que Herndon descobriu que Rogoff e Reinhart tinham cometido “erros”
básicos ao utilizarem o Excel para calcular médias de crescimento do PIB, além
de utilizarem pesos injustificáveis para as observações. No estudo original,
Rogoff e Reinhart excluem arbitrariamente algumas observações cruciais e ainda
dão o mesmo peso para observações de uma década e uma observação de um simples
ano, o que acaba por viesar os resultados a favor da conclusão de que mais
dívida se correlaciona com menor crescimento:
“We replicate Reinhart and Rogo ff (2010a and 2010b) and nd that coding errors,
selective exclusion of available data, and unconventional weighting of summary
statistics lead to serious errors that inaccurately represent the relationship
between public debt and GDP growth among 20 advanced economies in the post-war
period. Our finding is that when properly calculated, the average real GDP
growth rate for countries carrying a public-debt-to-GDP ratio of over 90
percent is actually 2.2 percent, not -0.1 percent as published in Reinhart and
Rogoff . That is, contrary to RR, average GDP growth at public debt/GDP ratios
over 90 percent is not dramatically diff erent than when debt/GDP ratios are
lower. We also show how the relationship between public debt and GDP growth
varies signi ficantly by time period and country. Overall, the evidence we
review contradicts Reinhart and Rogoff ’s claim to have identifi ed an
important stylized fact, that public debt loads greater than 90 percent of GDP
consistently reduce GDP growth.”
Rogoff e Reinhart, em bom português, usaram uma metodologia altamente duvidosa
com exclusão seletiva de dados, manipulação injustificável dos pesos e, pior
ainda, erro nos códigos das médias. Se corrigidos, os resultados apontam que
países com relação dívida-PIB acima de 90% crescem em média 2.2% ao ano, e não
-0.1%.
O achado de Herndon, Ash e Pollin já ganhou repercussão internacional. Artigos
no New York Times (aqui também), Businessweek, Financial Times, blog do Krugman
(aqui, aqui, e aqui), Wall Street Journal, Bloomberg, Guardian etc. deram
publicidade global para o fato de que as conclusões favorecendo a austeridade
fiscal se assentavam sobre cálculos equivocados. Resulta que agora Rogoff e
Reinhart já admitiram publicamente o “erro” (aqui também), mas não abrem mão do
argumento de que a contração fiscal é necessária para obter maior crescimento.
Bom, neste caso a ideologia da direita vence a realidade.
No final das contas, se utilizarmos os dados corretamente, haveria correlação
entre dívida e crescimento? Em gráfico obtido por Herndon, Ash e Pollin, os
autores utilizam todos os dados para todos os países e anos originalmente
usados por Rogoff e Reinhart. Aparentemente há uma correlação negativa entre
dívida pública e crescimento. Mas esta correlação é mera aparência, afinal a
qualidade do ajuste (fitness) da regressão é muito baixa. Vejam como as
observações se espalham ao redor da regressão, com R-quadrado = 0.04.
Uma questão central é o problema da causalidade. É o aumento da dívida que
causa baixo crescimento, ou o baixo crescimento do PIB que causa aumento da
dívida pública? O estudo original de Rogoff e Reinhart sugeria uma correlação,
não causalidade. Mas o argumento foi tomado pelos políticos como uma evidência
que maior endividamento causa menor crescimento. Mas não poderia haver
causalidade reversa com baixo crescimento causando aumento da dívida pública? A
teoria keynesiana nos fornece fortes razões teóricas para crer que a
causalidade vai do baixo crescimento para o aumento da dívida pública.
Outro problema é o do significado da razão estoque sobre fluxo. Ao medir dívida
pública sobre PIB estamos medindo o estoque total da dívida (em dólares) sobre
o fluxo de valor agregado em um ano (em dólares por anos), o que nos deixa com
um número puro por ano. Além disso, por que usar 1 ano como referência de tempo
para a dívida pública? Por que não 10 anos? Não há nada especial em utilizar
dívida por ano como um bom indicador de endividamento, pois muito desta dívida
é de longo prazo.
“After all, debt (which is measured in currency units) and GDP (which is
measured in currency units per unit of time) yields a ratio in units of pure
time. There is nothing special about using a year as that unit. A year is the
time that it takes for the earth to orbit the sun, which, except for seasonal
industries like agriculture, has no particular economic significance.” – Robert
Shiller
A retratação pública de Rogoff e Reinhart se resume ao argumento de que se a
análise não reflete a realidade, pior para a realidade.
“Reinhart and Rogoff have admitted to a “coding error” in the spreadsheet that
meant some countries were omitted from their calculations. But the economists
denied they selectively omitted data or that they used a questionable methodology.
[...] Reinhart and Rogoff, however, say their conclusion that there is a
correlation between high debt and slow growth still holds. “It is sobering that
such an error slipped into one of our papers despite our best efforts to be
consistently careful,” they said in a joint statement. “We do not, however,
believe this regrettable slip affects in any significant way the central
message of the paper or that in our subsequent work.” - NYT
Ambos continuam a defender abertamente o ajuste recessivo via políticas de
austeridade fiscal como solução para o baixo crescimento. Cabe então indagar
sobre quem se beneficia com as políticas de austeridade.
Adendo:
Para aqueles que estiverem interessados em uma análise econométrica da relação
entre crescimento e dívida pública, recomendo o excelente e curto artigo
preparado por Arin Dube, também professor da UMass Amherst. Dube invalida a
ideia de que mais dívida leva a menor crescimento, mostrando justamente o
contrário: é o baixo crescimento do PIB que leva ao aumento do quociente dívida
pública sobre PIB. O problema é o baixo crescimento, não a alta dívida.
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