A seguir ao 27 de
maio de 1977, milhares de angolanos foram torturados e assassinados, sem
julgamento. Hoje, muitas das vítimas ou familiares continuam sem conhecer toda
a verdade sobre os crimes cometidos na altura.
Há 36 anos, houve
manifestações em Luanda a favor de Nito Alves, então ministro da Administração
Interna e membro do Comité Central do MPLA, Movimento Popular de Libertação de
Angola, o partido no poder. As manifestações foram reprimidas por militares
angolanos e cubanos.
A seguir, Nito
Alves e os seus apoiantes foram perseguidos. Agostinho Neto, o primeiro
presidente de Angola – também do MPLA –, classificou o grupo como
"fracionistas" e as manifestações como uma tentativa de golpe de
Estado. Dezenas de milhares de angolanos foram torturados pela polícia política
angolana. Não se sabe, quantos foram assassinados sem julgamento. Hoje, os
angolanos ainda não conhecem tudo sobre o que se passou a seguir ao 27 de maio
de 1977. Alguns familiares das vítimas refugiaram-se no silêncio, na esperança
de um dia fazerem o luto dos seus entes queridos.
Jorge Fernandes –
vítima de tortura
Nasceu em Angola,
de uma família portuguesa que lá vivia. A data de 27 de maio de 1977 não escapa
à memória de Jorge Fernandes, uma das vítimas do levantamento popular atribuído
à fração do MPLA encabeçada por Nito Alves e José Van-Dúnem. Tinha então 22
anos de idade e era militante do MPLA (Movimento de Libertação de Angola).
Jorge Fernandes
conta que foi apanhado de surpresa pelo chamado "golpe de Estado":
"Era estudante universitário, estive preso dois anos e meio na cadeia de
São Paulo e fui torturado", conta. "Segui o percurso normal como
todos os outros. Felizmente sobrevivi. Infelizmente tive muitos amigos que não
podem dizer o mesmo."
"Só venho a
reconstituir a minha história depois do tempo de reflexão que tive na cadeia e
de começar a cruzar informações, histórias e a perspetivar realmente o que é
que tinha acontecido", é a retrospetiva de Jorge Fernandes. "É
evidente que, depois, quando fui libertado em finais de 1979 e vim para
Portugal, resolvi por cá ficar [em Portugal] por razões familiares e pus-me a
investigar para saber afinal o que é que se passou."
27 de maio: golpe
de Estado ou não?
Jorge Fernandes
defende que o que aconteceu a 27 de maio de 1977 em nada tinha a configuração
de um golpe de Estado: "Houve sim uma armadilha da parte do [Presidente]
Neto e do seu pessoal no poder para fazer uma purga junto das tendências que se
opunham à linha do núcleo dirigente na altura."
O objetivo era
liquidar os opositores dentro do partido encabeçado por Agostinho Neto, defende
Jorge Fernandes. Este luso-angolano, hoje engenheiro civil, andou pelas ruas de
Luanda a defender a conquista do poder pelo MPLA, mas acabou por ficar
desiludido:
"Eu que era um
defensor incontestável dos meus dirigentes, nomeadamente do António Agostinho
Neto, é evidente que hoje em dia tenho uma posição totalmente diferente. Vi que
aquela purga, que se fez no 27 de maio de 1977, arrasou uma camada de jovens e
uma camada da população que estava a aprender a gerir um país e que foi
decapitada, sobrando os medíocres e os corruptos que estavam no poder."
Passados estes
anos, interroga-se a si próprio sobre as razões que levaram a chegar a este
ponto. Por isso está a fazer as suas memórias. Tem ido a Angola sem
ressentimento, mas não esquece a história. "Porque acho que é lembrar para
não esquecer. Eu não sou nada apologista de que a memória seja apagada e
branqueada. É uma coisa que eu devo a amigos que sempre me trataram bem e que
desapareceram. Foram brutalmente assassinados", conta Jorge Fernandes com
amargura.
Quantas pessoas
foram assassinadas na "purga do MPLA"?
As informações
sobre o número real de mortes desta "purga" dentro do MPLA são
divergentes. Jorge Fernandes diz ter falado com carrascos, alguns dos atores
dos assassinatos, que segundo ele apontam para um número entre 20 mil e 30 mil
mortos.
Foi o historiador
português, José Milhazes, que no seu mais recente livro 'Golpe Nito Alves'
e Outros Momentos da História de Angola Vistos do Kremlin revelou novos
dados a partir de testemunhos e documentos inéditos. O jornalista e historiador
português afirma que havia divisões muito agudas no seio do MPLA, que explicam
o que aconteceu depois do 27 de maio de 1977.
Uma linha divisória
entre o grupo de Nito Alves e o grupo de Agostinho Neto é a intensidade do
contato com a superpotência de então, a União Soviética, diz Milhazes: "Um
ano antes do golpe Nito Alves tinha estado na União Soviética. Foi
delegado."
O historiador
português lembra que dentro dos chamados golpistas houve pessoas ligadas ao
Partido Comunista Português (PCP) como a portuguesa Sita Valles, que foi
assassinada: "Faz-me lembrar episódios típicos de ditaduras tanto de
esquerda como de direita. Ou seja, como se diz naquela célebre frase clássica A
Revolução começa a devorar os seus próprios filhos." E a seguir começam
dentro do próprio partido lutas internas, conclui José Milhazes, "até que
vence uma linha que se transforma em linha política única. Parece-me exatamente
que o 27 de maio foi isso."
O 27 de maio
continua tabú
Em Angola, o 27 de
maio continua a ser um acontecimento tratado como tabú, o que causou
dificuldades nas pesquisas de José Milhazes: "O grande problema é a falta
de documentação e de acesso às fontes e memórias. Por exemplo, seria
interessante ouvir algumas pessoas." Mas tem sido difícil, porque alguns
intervenientes e responsáveis ainda estão no poder, opina Milhazes.
Mesmo assim ele
chegou a ouvir algumas das pessoas que estavam em Luanda nessa altura.
"Claro que há um problema, algumas das pessoas que participaram nestes
acontecimentos – e até de forma menos positiva – ainda estão vivas. Certamente
que – mesmo que não venham a ser julgadas pelos crimes que cometeram – não
quererão que os outros saibam qual foi o papel delas neste massacre."
Zita Seabra:
"É importante que a verdade venha ao de cima"
A política
portuguesa Zita Seabra pertenceu às fileiras do Partido Comunista Português
(PCP) que, juntamente com o MPLA, lutou contra o colonialismo português. Zita
Seabra já publicou um livro sobre a portuguesa Sita Valles, que também era
militante do PCP e deixou Portugal nos anos 70 para se juntar ao MPLA. Sita
Valles foi juntamente com Nito Alves e José Van-Dúnem uma das três vítimas mais
conhecidas do 27 de maio.
"A história
tem os seus momentos e o importante é que a verdade venha ao de cima e que, a
pouco e pouco, se vá conhecendo a realidade dos acontecimentos", defende
Zita Seabra. Mais de 30 anos depois da morte de Sita Valles, seria importante
que os responsáveis pelas torturas e fuzilamentos encarassem a verdade com
frontalidade, acha Zita Seabra: "Eu creio que, sobretudo não adianta tapar
a história porque ela existe. O importante é sobretudo, a pouco e pouco, que a
história deixe de ter feridas abertas entre as pessoas, e depois possa ser
encarada com o olhar de quem passou pelas coisas e hoje olha para elas."
Falta reconciliação
em Angola
Por seu lado, o
historiador José Milhazes acredita que, mais tarde ou cedo, a verdade virá à
superfície: "Estou perfeitamente convencido que mesmo em Angola, podem
passar alguns anos – não sei quantos –, mas vai ser necessário esclarecer estes
períodos mais tristes da história angolana, porque a própria Angola não se pode
reconciliar, digamos, sem uma ação deste tipo."
Por sua vez, o
ex-militante do MPLA, Jorge Fernandes, insiste sobre a necessidade de se
reconhecer o direito dos familiares fazerem o luto dos que morreram. Diz que o
atual chefe de Estado, José Eduardo dos Santos, que presidiu em Angola à
Comissão de Inquérito aos acontecimentos do "27 de maio", está na
posse de muita informação, de interesse para todos aqueles cujos familiares
foram vítimas dos crimes cometidos pela polícia política angolana (DISA).
José Eduardo dos
Santos poderia saber mais
"O Presidente
José Eduardo dos Santos foi o membro do Bureau Político do MPLA que na altura
foi nomeado para fazer um inquérito sobre o fracionismo e que fez um relatório
de conclusões com elementos escritos, filmados e gravados. É bem visível que da
parte do presidente Eduardo dos Santos há vontade e eu julgo que deveria haver
mais", diz Jorge Fernandes. "Os acontecimentos do 27 de maio têm
mesmo que ser abordados. Os filhos têm de saber dos assuntos quando perguntam
aos mais velhos. As mães e os pais não podem continuar na sua autocensura do
silêncio motivado pelo medo de dizer o que aconteceu, mataram este e mataram
aquele."
"Era
humanamente digno fazer isso pelas pessoas. E que as ideologias, as rivalidades
históricas, os debates pouco construtivos fossem postos de lado", concorda
o sociólogo angolano, Manuel Santos. "Não se consegue chegar à verdade sem
uma assunção de responsabilidade. A geração que hoje tem sido sucessivamente
titular de cargos de poder em Angola pertence justamente a aquela que foi
vítima do 27 de maio."
Porém, Manuel
Santos pensa que as pessoas provavelmente ainda não se sentem preparadas para
assumir estas contrariedades que são incómodas para elas próprias: "São
questões fraturantes e, como são incómodas, ninguém quer falar sobre
elas."
Na opinião dos que
foram entrevistados para este Contraste da DW África, mais que erguer um
memorial em Angola em homenagem às vítimas, o mais importante é repor a verdade
e assumir as responsabilidades sobre os factos do 27 de maio de 1977.
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