Chomsky abre
avaliações sobre movimento, que completa três anos. Para ele, momento é
difícil, “mas fagulhas explodirão em chamas novamente”
Entrevista a Michael
Bröning, por Noam Chomsky no IPG Journal - Tradução: Inês
Castilho - em Outras Palavras
Em 17 de dezembro
de 2010, Mohamed Boazizi, um vendedor ambulante humilhado pela polícia, ateou
fogo ao próprio corpo em Túnis e deflagrou uma revolução que se espalhou pelo
Norte da África e Oriente Médio. Dois regimes que duravam décadas – o tunisiano
e o egípcio – caíram em poucas semanas; outros, estremeceram. Meses depois, os
ecos espalharam-se pela Espanha e Estados Unidos. Continuam correndo o mundo
(inclusive o Brasil), ainda que com sentidos possivelmente distintos.
Que balanço fazer,
três anos depois? No texto a seguir, Noam Chomsky vê a Primavera Árabe num
momento de desconstrução. Passada a surpresa inicial, os grandes poderes
globais rearticularam-se. Hoje, seus principais aliados no Oriente Médio
sentem-se mais seguros. Pelo menos no Egito, o exército pró-EUA, voltou ao
poder, agora mais repressor que antes.
Não significa uma
reversão total, diz, porém. Chomsky A reação era previsível. Atacado, “o poder
não diz: ‘agradecemos por nos desmantelar’ e sai andando calado”, ironiza ele.
Além disso, prevê: “as fagulhas acesas pela Primavera Árabe provavelmente
explodirão em chamas de novo”.
Para que a
esperança se realize, será necessário, provavelmente, analisar com rigor estes
três anos. Não é algo que diga respeito apenas aos árabes, mas a todos os que
nos entusiasmamos com a semente lançada em Túnis e seus desdobramentos. É uma
satisfação, por isso, publicar a entrevista que segue. (A.M.)
Três anos após o
início das revoluções árabes, o Oriente Médio testemunhou um caleidoscópio de
desdobramentos, que vão de eleições livres à repressão violenta de mudanças.
Como você descreveria, hoje, a Primavera Árabe?
No passado eu a
descrevi como uma “obra em progresso”. Lamentavelmente, agora a expressão “obra
em retrocesso” seria mais apropriada. As ditaduras do petróleo foram capazes de
reprimir a maioria das tentativas de fazer até mesmo reformas moderadas. A
Síria foi empurrada violentamente para o suicídio e provavelmente a divisão. O
Iêmen está submetido à campanha terrorista global dos drones. A Tunísia
encontra-se numa espécie de limbo. A Líbia carece de um governo capaz de
controlar as milícias. No Egito, o maior país do mundo árabe, os militares
agiram com extrema brutalidade – e um apoio popular que não deveriam receber, a
meu ver – no que parece ser um esforço para restaurar seu rígido controle
político e manter seu império econômico, ao reverter algumas das conquistas
mais significativas do período anterior, tais como a liberdade de imprensa e a
indpendência. Os sinais não parecem bons.
Além disso, o
conflito sunita-xiita instigado pela agressão dos Estados Unidos e Reino Unido
ao Iraque está despedaçando o país e espalhando-se ameaçadoramente por toda a
região. Há duas partes do mundo árabe que permanecem sendo efetivamente
colônias: o Sahara Ocidental, onde as manifestações por democracia no final de
2010 foram duramente reprimidas e a luta de sua população por liberdade foi
quase esquecida; e, claro, a Palestina. Lá, as negociações estão em andamento
conforme as duas precondições essenciais impostas pelos EUA e Israel: que não
haja barreiras à expansão dos assentamentos israelenses ilegais e que as
negociações sejam encaminhadas pelos EUA. Ocorre que Washington é parte no
conflito (ao lado de Israel) e vem bloqueando um consenso internacional
indiscutível sobre um acordo diplomático desde 1976, com raras e temporárias
exceções.
Sob tais
precondições, as negociações tendem a ser pouco mais do que um disfarce para
Israel levar adiante seus programas de integrar o que considera aproveitável,
na Cisjordânia (inclusive alguns poucos árabes, para evitar o “problema
demográfico”, e de separar a Cisjordânia de Gaza – o que viola os Acordos de
Oslo e mantém um cerco brutal. Não é um momento brilhante, mas as fagulhas
acesas pela Primavera Árabe provavelmente explodirão em chamas novamente.
As esperanças
iniciais de uma trajetória linear em direção ao empoderamento e à democracia há
muito desapareceram. A euforia teria sido um engano? Onde e quando as coisas
deram errado?
Nunca deveria ter
havido esperança de uma trajetória linear. A Primavera Árabe foi um processo de
importância histórica, que ameaçou muitos interesses poderosos. O poder não diz
“agradecemos por nos desmantelar” e sai andando calado.
As reações do
Ocidente oscilaram desde a intervenção militar até a indiferença, como vimos
nos Estados do Golfo. Você percebe algum padrão subjacente?
O padrão implícito
é familiar: apoio ao ditador favorito durante o maior tempo possível. Se isso
tornar-se impossível, porque os militares ou a elite econômica voltaram-se
contra ele por alguma razão, então trate de enviá-lo para algum lugar, faça
declarações tocantes sobre seu amor à democracia, e tente restaurar a velha
ordem tanto quanto possível. Acontece repetidas vezes. Para mencionar apenas
algumas: Somoza, Ferdinando Marcos, Duvalier, Suharto, Mobutu…
É uma política
natural para um poder imperial – logo, completamente familiar. Também é natural
que isso seja ocultado. A tarefa da comunidade intelectual é apoiar o poder e
justificá-lo, não miná-lo – embora alguns quebrem as regras.
Uma das linhas de
clivagem regional parece ser o conflito entre forças seculares e religiosas. De
que maneira essa dicotomia pode ser tratada construtivamente? Que papel devem
desempenhar os governos ocidentais?
Nem a história, nem
a lógica, nem a análise política ou qualquer outra fonte que não a propaganda
nos dá razões para esperar que os sistemas de poder desempenhem um papel
construtivo, a não ser em seu próprio interesse. Isso vale para os sistemas
ocidentais, em especial. Na do Oriente Médio e Norte da África, os maiores
poderes – EUA e Grã Bretanha – têm apoiado de modo bastante consistente o Islã
radical contra o nacionalismo secular. O favorito tem sido a Arábia Saudita, o
estado islâmico de radicalismo mais extremo, e um estado missionário, que
espalha suas doutrinas wahabistas-salafistas por toda a região.
Há estudos
acadêmicos excelentes e detalhados sobre a “promoção da democracia” dos EUA por
seus mais proeminentes defensores, que admitem, com relutância, que o governo
apoia a democracia apenas se e quando ela está de acordo com os interesses
econômicos e estratégicos – como qualquer pessoa racional poderia prever.
Que papel eles
deveriam desempenhar? Isso é fácil. Eles deveriam apoiar a liberdade, a
justiça, os direitos humanos, a democracia. Podemos dizer o mesmo sobre a
Rússia e a China. Até certo ponto, forças populares organizadas podem
pressionar os governos nessa direção, mas há poucos sinais disso, hoje, por
várias razões.
Em outro nível,
tensões religioss parecem estar em ascensão. Já em 2004 o rei Abdullahda
Jordânia falou de um “Crescente Xiita”. A imagem de uma guerra por procuração
entre sunitas e xiitas é apropriada para compreender os atuais conflitos na
região?
Uma das
conseqüências mais sombrias da agressão dos EUA e Reino Unido ao Iraque foi
acender conflitos entre sunitas e xiitas que já haviam sido controlados,
levando a uma história de horror que está despedaçando o Iraque e espalhando-se
pela região, com efeitos terríveis e ameaçadores.
E a honestidade nos
levaria a recordar o julgamento de Nuremberg, um dos fundamentos do direito
internacional moderno. Definiu-se que a agressão seria “o supremo crime
internacional, diferindo de outros crimes de guerra na medida em que contém, em
si, o mal acumulado no todo”. Isso inclui os conflitos sectários, entre muitos
outros crimes. A honestidade também nos levaria a recordar a frase que Robert Jackson, um
membro da Suprema Corte dos EUA proferiu no mesmo tribunal: estamos dando a
esses réus “um cálice envenenado”; se cometermos crimes semelhantes, devemos
sofrer as mesmas consequências – ou então este Tribunal é uma farsa, não passa
de justiça dos vencedores. Uma medida do abismo entre a cultura
moral-intelectual do Ocidente e sua civilização é o quão bem estas palavras
foram ouvidas…
*Noam Chomsky é
professor emérito do Departamento de Linguística e Filosofia do MIT — Instituto
de Tecnologia de Massachussets. Colaborador regular do TomDispatch, é autor de
diversas obras políticas de grande repercussão.
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