Manuel Maria
Carrilho – Diário de Notícias, opinião
Sejamos claros: a
viragem de François Hollande ilustra bem a gravidade do impasse que vive hoje o
socialismo democrático, que em termos europeus se designa por
"social-democracia". Este impasse decorre sobretudo de ele se ter
tornado, nas últimas décadas, uma ideologia sem verdadeira doutrina, que oscila
entre o radicalismo mais ou menos declamatório quando está na oposição e um
conformismo mais ou menos gestionário quando chega ao poder.
Nas vésperas da sua
eleição, em maio de 2012, numa conversa com Edgar Morin publicada pelo jornal
Le Monde, François Hollande definia como o objetivo nuclear do seu futuro
mandato, e cito, "fazer que a democracia volte a ser mais forte do que os
mercados, que a política retome o controlo da finança e o domínio da
globalização".
A audácia destes
objetivos levou-me na altura a perguntar, aqui mesmo, se não se trataria de uma
missão extraordinária para um Presidente que se autoproclamava como normal - o
tempo tem, infelizmente, vindo a confirmar as minhas dúvidas.
Dois pontos
justificavam estas dúvidas. O primeiro é que François Hollande venceu as
eleições presidenciais sem na verdade ganhar a batalha das ideias: os resultados
da primeira volta deixavam antecipar este facto ao dar a F. Hollande o bom
resultado de 28,63% num total em que, contudo, a direita toda junta tinha mais
votos (47%) do que toda a esquerda(43%). E sem a batalha das ideias ganha,
todos os triunfos são frágeis e fugazes.
O segundo é que a
vitória final de François Hollande frente a Nicolas Sarkozy estava minada pela
profunda crise do socialismo democrático europeu, que desde a década de 80 do
século passado se foi revelando incapaz de compreender os múltiplos
acontecimentos com que a história o foi surpreendendo, e de as integrar num
projeto credível e mobilizador.
A crise da
social-democracia europeia traduziu-se, por isso, numa capitulação face à
ascensão e à disseminação de um novo imaginário ideológico liberal, que
conseguiu impor sobretudo duas ideias: a da necessidade de desmantelar o
Estado-Providência, por um lado, e a do reforço dos direitos individuais, por
outro.
A sua grande
astúcia deste liberalismo esteve justamente aqui, no modo como a erosão da
ideia de coletivo e a destruição do mundo comum foram sendo tacitamente aceites
por um número crescente de cidadãos, a troco do maior reconhecimento dos
direitos individuais e do reforço da liberdade individual, na linha da famosa
proclamação de Margaret Thatcher, "a sociedade não existe, só existe o
indivíduo". Este processo tornou-se, de resto, muito visível na crescente
consagração do estatuto do consumidor e dos seus direitos, que desde os anos 80
do século passado foi paulatinamente substituindo nas sociedades
contemporâneas, e nomeadamente nas europeias, a figura e as funções que
tradicionalmente definiam o cidadão e os seus deveres.
E a
social-democracia, que historicamente nasceu do imperativo da igualdade, mas
também do compromisso entre o capital e o trabalho, foi-se acomodando às
desigualdades, baloiçando entre, por um lado, a denúncia do seu carácter
intolerável e, por outro, uma inédita passividade em relação às suas formas
concretas. (Facto que, de resto, toca no coração da atual cultura democrática,
no ponto de convergência das patologias do individualismo e do financismo) .
É por isso tempo de
lembrar uma esquecida evidência: não se muda a sociedade sem uma filosofia
social e política que prepare, estimule e enquadre essa mudança. É aqui que o
socialismo democrático tem falhado. Foi isto que ele esqueceu ao deixar-se
enfeitiçar pelo magma ideológico das últimas décadas, sem compreender a tempo o
significado e as consequências políticas de factos tão extraordinários como a
queda do Muro de Berlim e o fim do comunismo, a globalização e a emergência de
novas formas de concorrência, a fragilização estrutural do Estado-Providência,
o financismo e as armadilhas da generalização do crédito, o individualismo e os
impasses do sentimento coletivo, o tecnologismo e a revolução do espaço e do
tempo, etc., etc...
Perante tudo isto,
o que se impunha ao socialismo democrático europeu era o trabalho, intelectual
e político, de repensar a social-democracia e a matriz de compromisso entre o
capital e o trabalho num mundo globalizado e tão transformado. Em vez disso,
optou em geral por seguir uma estratégia de avestruz, metendo a cabeça na
areia, oscilando entre a nostalgia do seu ultrapassado modelo clássico e a
deriva de um socialismo que no essencial se acomoda ao status quo. Esta
oscilação caracteriza bem o trajeto e as hesitações de François Hollande face
aos problemas que enfrenta desde o começo do seu mandato: a Europa, o
crescimento e o emprego, a despesa pública. A assinatura do "tratado
orçamental" de Merkel, que em campanha ele tinha jurado que iria exigir
que fosse negociado, foi um primeiro sinal inquietante, sobretudo porque em
relação aos outros problemas não se vislumbrou nenhuma estratégia clara, capaz
de os resolver.
Como Paul Krugman
escreveu no New York Times, comentando a intervenção de Hollande - que
intitulou "Scandal in France" -, é difícil compreender o recurso do
Presidente francês às desacreditadas teorias do século XIX de Jean-Baptiste Say
sobre a oferta e a procura, facto que parece traduzir uma derrota que se
inscreve na dimensão mais profunda da política, que é - insisto - a das
doutrinas e dos projetos, dos valores e das ideias.
É ainda aqui,
todavia, que o desafio permanece. E que é agora o de saber em que é que o
"socialismo da oferta", que François Hollande anunciou na conferência
de imprensa no passado dia 14, se vai distinguir das políticas hoje dominantes
na União Europeia. A prova anuncia-se difícil e as suas consequências
projetar-se-ão muito para lá de França, por toda a União Europeia. Oxalá o Novo
Rumo, que os socialistas portugueses preparam para 2015, tenha tudo isto em
conta.
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