Abrupto
1. A Juventude
Popular propôs numa moção ao Congresso do CDS a diminuição da escolaridade
obrigatória do 12º ano para o 9º ano porque “a liberdade de aprender (…) é um direito
fundamental de cada pessoa”. Cinco secretários de estado, que pertencem à
distinta agremiação, subscreveram a moção, que exprime o direito inalienável à
ignorância, como direito individual.(*) Isto escrito por membros de um partido
que se diz “personalista”. Aliás há outras puras imbecilidades na moção, como
seja a igualização do “autoritarismo do Estado Novo”, com “o autoritarismo do
défice e da dívida”, uma “ideia” igualmente muito reveladora do que vai na
cabeça dos candidatos a senhoritos do CDS, que, como se vê, nos governam.
2. Num processo de
habituação e impregnação pelo veneno dos “argumentos” do poder a que vimos
assistindo nos últimos anos, já não se reage a nada, nem sequer a perigosas
enormidades, em que o próprio facto de terem sido enunciadas no âmbito do
actual poder político já é de si muito preocupante. Há mais extremismo aqui do
que no mais obscuro grupo anarquista ou maoista.
3. Vamos pois
“explorar” a “ideia” da Juventude Popular e dos seus (nossos) secretários de
estado. Comecemos pela “ideia” de que a escolaridade obrigatória até ao 12º
ano, um requisito mínimo no actual débil mercado de trabalho, "limita a
liberdade". Não custa perceber pela justificação que a mesma é valida para
a educação obrigatória em geral. Ou seja, cada um, famílias e pessoas, são
livres de escolherem o grau de escolaridade que pretendem ter, como se isto
fosse de facto livre. Eu percebo-os, se precisam de marceneiros, trolhas,
carpinteiros e electricistas, que dispêndio é terem que ter o 12º ano? Bastava
a quarta classe, enquanto Harvard fica para a elite da elite. Aliás, educação e
exigência, algumas vezes vão a par e por isso convém perceber que a educação é
sempre perigosa para a “ordem social”.
4. Muito bem, mas
vamos aprofundar o "conceito". Deixando de haver educação
obrigatória, também não tem sentido impedir o trabalho infantil. De facto, que
sentido tem a liberdade de não ir à escola sem a liberdade de se poder ir
trabalhar? Os pais encontram nessa possibilidade uma maneira de combater as crises,
colocando as suas filhas a gaspeadeiras com 14 anos e os rapazes nas obras aos
12. Para além disso, que adolescente gosta da escola? Por que razão não há-de
ter a liberdade de ir berrar para uma claque de futebol em vez de ir para as
aulas, ou de viver à custa dos pais até aos trinta anos?
5. Vamos ainda
aprofundar mais. Na verdade, nós devemos ser senhores do nosso próprio corpo,
apenas com a excepção das mulheres grávidas que queiram abortar, porque isso é
um crime. Só assim a minha liberdade é plena, por que posso vendê-la, ou
comprar a liberdade de alguém. Sendo assim, por que é não tenho a liberdade de
me vender como escravo, digamos que por um período de dez ou vinte anos, para
poder pagar uma dívida, salvar a casa da família, educar um filho? Quando digo
escravo, é escravo mesmo, agora num novo conceito que agradará certamente ao
pensamento dos blogues “liberais”, a que podemos chamar a Nova Escravatura
Civilizada (NEC).
6. Na NEC há
algumas coisas que não se podem fazer a um escravo, como por exemplo, matá-lo,
ou mutilá-lo, mas tudo o resto é livre. É por isso que é “civilizada”. Também
não se pode marcar com um ferro em brasa, mas pode-se implantar um chip como se
faz aos cães. O escravo é propriedade e é defendido pelas regras intangíveis da
propriedade. Se fugir está a roubar o seu dono, pelo que pode e deve ser
devolvido ao seu legítimo proprietário. Este pode prendê-lo, se quiser, em
cárcere privado ou numa nova empresa que forneça serviços de cadeia. Pode
fazê-lo trabalhar 18 horas por dia, pode alojá-lo numa casota, pode mandá-lo
desactivar uma bomba, dormir com, servir à mesa vestido de libré, ou fazer
salamaleques às visitas. Se for literato pode servir de négre do livro de
receitas de Madame ou do manual de empreendedorismo do patrão, escrever umas
crónicas engraçadas de caça ou touros e cantar o fado se tiver talento. Pode
servir de guarda-costas, mordomo ou trabalhador rural, depende das propriedades
e virtualidades do senhor. Pode deixá-lo de herança ou oferecê-lo como prenda
de casamento. Mas, acima de tudo, pode comprá-lo e vende-lo num mercado
regulado, pagando IVA pela transacção. No fundo, no fundo, não há já muitos
escravos destes? Não seria melhor para eles a segurança da NEC, a “civilização”
de um estatuto baseado na liberdade de cada um se vender por necessidade e de
cada um comprar o que pode? Só sociedades socialistas é que podem atentar
contra estas liberdades.
7. A minha sugestão
à Juventude Popular é que não se acobarde, mas explore as muitas virtualidades
do seu projecto. Seria interessante ver, num próximo Congresso do CDS, a
bancada superior dos meninos a fazer de gentleman farmer (à portuguesa, claro),
ou vestidos de lordes ingleses, e em baixo os seus escravos a distribuir
comunicados de imprensa, com a caixa, a escova e graxa prontas para polir as
botas de couro, e umas criaditas com a quarta classe, mas a quem as patroas
deixam ler a Nova Gente da semana passada, a sussurrar inconfidências e prontas
para lhes levar a muda de vestido. Isto sim é que era um Portugal a sério. Só é
pena que os malvados do Tribunal Constitucional o impeçam.
(*) O CDS veio
posteriormente negar que os Secretários de Estado tivessem assinado a moção e
que isso se devia à forma como os seus nomes apareciam no documento e que
permitia essa confusão.
José Pacheco
Pereira
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