segunda-feira, 17 de março de 2014

A EXCEPCIONAL CRIMEIA



Martinho Júnior, Luanda

1 – A Crimeia é, em relação à Ucrânia, como uma imensa nave pronta a partir do seu porto de abrigo, com uma entidade própria e isso apesar dos horizontes fechados do Mar Negro.

De todo o território da Ucrânia independente saída da implosão da União Soviética com 606.638 km2, é o de maior expressão cultural russa, fruto da história dos últimos séculos.

Com 26.081 km2, cerca de 4% da área total da Ucrânia, a Crimeia está ligada ao continente através de duas passagens principais a norte e está separada da Rússia por um estreito a leste, em Kerch.

Acompanhando a redução da população da Ucrânia, a Crimeia desceu da fasquia de 2.033.736 habitantes, de acordo com o censo de 2001, para 1.972.094 habitantes (censo de 2006), uma descida relativamente inferior se comparada com o decréscimo populacional acentuado da Ucrânia entre 2001 e 2013: de 48.457.102 habitantes para 44.573.205!

A Crimeia está acima dos valores médios per capita relativos ao Produto Interno Bruto ucraniano, fruto de actividades em vários sectores: comércio, pesca e turismo, são algumas delas.

O facto de albergar a Frota do Mar Negro da Rússia, simultaneamnte a Marinha de Guerra da Ucrânia e ser um terminal de exportação de petróleo e de gás proveniente da Rússia e da própria Ucrânia, confere à Crimeia um adicional papel geo-estratégico, com realce para a cidade de Sebastopol, fundada pelos russos em 1783.

A Crimeia é, sob os pontos de vista físico-geográfico e humano, uma excepção, tanto para com a Ucrânia, como para com a Rússia!

2 – A autonomia da Crimeia em relação à Ucrânia independente e o estatuto especial de Sebastopol, reflectia o estado de excepção da península, numa perspectiva de relativa estabilidade institucional, cultural e sócio-política.

A partir do momento em que a “Revolução Laranja” foi injectada na Ucrânia, as perturbações começaram e tornaram-se mais evidentes à medida que as tendências da oligarquia ucraniana se iam acentuando, inclinando-se a favor do ocidente e dos postulados do capitalismo neo liberal, desequilibrador e selvagem.

A intempestiva tomada do poder em Kiev através da manipulação da EuroMaidan, espezinhando as legíimas aspirações de liberdade do povo ucraniano e promovendo um regime de oligarcas agenciados subtilmente sobretudo pela Alemanha e Estados Unidos, a que se associaram gupos fascistas e nazis, ao excluirem outras sensibilidades estão a ser determinantes nos levantamentos a leste e a sul da Ucrânia e, no rescalo cultural, sócio-político e geo-estratégico, destaca-se desde logo a Crimeia.

Fruto da sua história, da cultura que foi sendo implantada desde o século XVIII e das comunidades humanas que se tornaram dominantes, conforme aliás ao desenrolar dos acontecimentos, a Crimeia vai no dia 16 de Março de 2014 a referendo, escolhando uma das opções: ou se liga nos seus destinos à Ucrânia, ou à Rússia!

A data foi sendo sucessivamente antecipada e com razão: é um crime contra a humanidade sujeitarem-se os povos a golpes de estado que desembocam em políticas fascistas ou nazis e só o império e seus aliados são capazes de tornar isso letra morta, conforme o estão a provar na Ucrânia!

É evidente que o referendo é uma questão de legalidade e de formalização, pois a resposta legítima é comprovadamente espectável!

3 – A ligação da Crimeia à Rússia será como que um rastilho em relação ao leste e sul da Ucrânia, cultural, humana e historicamente ligada à Federação Russa, no rescaldo da implosão da União Soviética e para além dos laços económicos vigentes.

Como as tradições fascistas e nazis foram todas forjadas a ocidente pela Alemanha que hoje catapulta a oligarquia ucraniana saída da “Revolução Laranja”, a rejeição sócio-política do leste, um leste temperado pelas tradições socialistas, não podia deixar de ser esperado pela aristocracia financeira mundial ciosa de domínio e hegemonia e pelas oligarquias europeias agenciadas, incluindo a oligarquia ucraniana, à excepção dos oligarcas pró-russos.

A hegemonia está a procurar a todo o transe colocar a Rússia ao nível duma periferia, como um simples fornecedor de matérias-primas, procurando não levar em consideração que as emergências euro-asiáticas e um universo multi polar são já irreversíveis!

Com esse objectivo, neutralizar as capacidades industriais do leste da Ucrânia tem desde logo repercussões na Rússia.

No Mar Negro a Crimeia situa-se num dos fulcros das tensões correntes entre o projecto “ocidental” anglo-saxónico e o projecto das emergências “orientais” que evoluem em todo o continente euro-asiático, apesar das resistências disseminadas pelo império a partir de suas tradicionais alianças, como no caso das monarquias arábicas que, para se manterem imperturbáveis e inalteráveis, fomentam a seu bel-prazer o fundamentalismo radical islâmico sunita da Al Qaeda e de suas múltiplas ramificações.

Isso resulta da própria história, de acordo com um contexto que passou, por exemplo, pela Guerra da Crimeia, entre 1853 e 1856.

4 – A tentativa de cindir e dividir a Federação Russa teve algum êxito com o tandém Gorbatchov-Ieltsin, precisamente quando os interesses da aristocracia financeira mundial tentaram dramaticamente formatar a sua oligarquia agenciada na Rússia: foi durante a era de Boris Ieltsin que a Rússia perdeu sintomaticamente a Iª Guerra da Chechénia, entre Dezembro de 1994 e Agosto de 1996!

A ascensão do tandém Putin-Medvedev sacudiu o “cavalo de Tróia” na Rússia e as respostas que foram sendo dadas têm vindo a consolidar a Federação Russa, a começar com a vitória na IIª Guerra da Chechánia (entre Junho de 2000 Abril de 2009), com as alterações sócio-políticas na Geórgia, no rescaldo da “Revolução das Rosas” (tendo como episódio decisivo uma guerra-relâmpago ocorrida em 2008).

Em Kiev são convidados especiais quer elementos da oposição russa a Putin-Medvedev (fieis a Gorbathov-Ieltsin), quer Mikheil Saakashvili (o líder da “revolução colorida” da Geórgia), quer alguns dos fundamentalistas radicais chechenos sobreviventes das duas guerras contra a Rússia, todos eles agenciados pelo império, pelos seus aliados europeus da NATO, ou pela reaccionárias monarquias arábicas… tal qual Iúlia Timochenko, oligarca e líder da “Revolução Laranja”…

Em Kiev, a identidade entre fascistas, nazis, líderes das “revoluções coloridas” e fundamentalistas islâmicos radicais, está correntemente reconhecida pelo campo ocidental, como tentáculos que são da hegemonia protagonizada pelo império, seus aliados e panóplia de mercenários… mas tudo isso está a ser rejeitado na Crimeia, num rastilho que se propagará desde o leste e sul da Ucrânia a todo o país… e se poderá estender a toda a União Europeia enquanto domínio exacerbado do capital neo liberal, factor de desequilíbrio e da natureza ditatorial!

A atmosfera da crise e da dívida na União Europeia e nos Estados Unidos, são por si sós um preâmbulo de alterações que se tornam cada vez mais urgentes em benefício dos povos, alterações em relação às quais a aristocacia financeira mundial, o poder dos 1%, sabe que só com uma guerra de terríveis consequências pode evitar!

A Federação Russa avalia que a evolução da situação na Ucrânia comporta riscos calculados, com “timings” que não são propriamente os da Chechénia, ou os da Geórgia, que se irão arrastar durante pelo menos esta década adentro.

Avalia também vários cenários internos e internacionais possíveis, desde a desagregação ucraniana no post referendo da Crimeia, até ao abandono do dólar para as trocas comerciais, o que já está a ser experimentado no quadro dos BRICS e entre a Rússia e a China.

Se uma IIª Guerra da Crimeia estiver na forja, ela será um rastilho em expansão e poderá acarretar consequências incalculáveis, inclusive na ordem geo-estratégica!

A aposta num conjunto de medidas preventivas e dissuasoras que passam desde já pelo referendo na Crimeia é legítima, tendo em conta a pretensão fascista e nazi prevista para 25 de Maio, quando se realizarem as eleições presidenciais após o golpe EuroMaidan: a continuidade no poder em Kiev de fascistas e nazis, ao jeito da ditadura do capital e do exercício da hegemonia do império!

Outra medida em curso é a construção dum gasoduto pelo fundo do Mar Negro que não tocará na Ucrânia, à semelhança da ligação submarina entre a Rússia e a Alemanha no Mar Báltico; prevê-se a sua inauguração em 2015.

É evidente que a aristocracia financeira mundial e as oligarquias agenciadas não o querem, ou não fossem essas entidades que compõem 1% da humanidade as incentivadoras tradicionais e exclusivas de golpes de estado e de ditaduras fascistas, desde que esse tipo de “modelos” foram inaugurados no Chile, há mais de quatro décadas!

O “Condor” chegou à Europa e constitui um desafio a que só os povos e os governos progressistas, de forma integrada e decidida, conseguirão resistir e responder!

Luanda, 9 de Março de 2014 – só agora (17/3) publicado por limitações de Página Global

Mapa: A Crimeia e suas conexões próximas em função das incidências físico-geográficas e humanas.

Consultas:
- Primeira Guerra da Chechénia – http://en.wikipedia.org/wiki/First_Chechen_War
- Segunda Guerra da Chechénia – http://en.wikipedia.org/wiki/Second_Chechen_War
- Crimea´s Putin supporters prepare to welcome possible Russian advance – http://www.theguardian.com/world/2014/mar/02/ukraine-crimea-putin-supporters-russian-troops
- Multitudinarias manifestaciones en Ucrâni oriental a favor del referendum – http://actualidad.rt.com/actualidad/view/121902-ucrania-crimea-manifestaciones-lugansk-rusia
- La situación de la Flota del Mar Negro en Ucrania – http://actualidad.rt.com/actualidad/view/121173-crimea-flota-mar-negro-rusa-ucrania
- Si, las tropas russs estan en Crimea… desde 1783 – http://actualidad.rt.com/actualidad/view/121473-tropas-rusia-crimea-flota-ucrania
- Le chef de la marine ukrainienne prête allégeance aux autorités prorusses – http://www.lemonde.fr/europe/article/2014/03/02/defection-du-navire-amiral-de-la-flotte-ukrainienne_4376203_3214.html
- Na Crimeia o movimento de resistência contra o golpe – http://port.pravda.ru/mundo/02-03-2014/36335-crimeia-0/


Sem comentários:

Mais lidas da semana