quarta-feira, 29 de outubro de 2014

O CELESTIAL IMPÉRIO DO MEIO (1)



Rui Peralta, Luanda

I - A China entrou, no início da década de 80, num processo económico acelerado, consequência da profunda alteração das elites politicas - a revolução chinesa - que foi crucial para o prosseguimento e implantação da revolução industrial no país. Devido às suas dimensões e ao elevado número de habitantes, este acentuado crescimento alterou (e continua a alterar) os equilíbrios internacionais. Além do mais esta evolução ocorre num contexto em que o Ocidente corre o risco de transformar-se num imenso pântano económico e financeiro (consequência de uma prolongada estagnação á qual nem o projecto europeu deu resposta) e o resto do mundo permanece atolado a um adiamento constante da neutralização dos efeitos da crise persistente, que em maior ou menor grau, directa ou indirectamente, afecta todas as economias nacionais, em particular e a economia mundial, em geral. Mesmo os BRICS Brasil, India e África do Sul sofrem fortes pressões regressivas (o Brasil em regressão, a India num processo delicado, onde as suas elites económicas, profundamente mergulhadas na corrupção, ensaiam os primeiros passos para a tomada directa do poder politico - as eleições deram a vitória aos ultranacionalistas hindus - afastando o corrupto e ineficiente aparelho instituído na independência  e por fim a Africa do Sul, a não se atrever a ir além da gestão da crise, fugindo ás ameaças inflacionistas, aguardando por melhores dias, mas a mais segura das três). Dos BRICS (grupo de economias autocentradas, com as suas periferias historicamente definidas, factor que alguns candidatos mais entusiastas - em alguns casos periféricos a este desenho - esquecem) permanecem em rota de crescimento a China e a Rússia (esta a uma velocidade menor, em choque com a U.E., os USA e saindo de um traumatizante período de transição).

Que factores permitiram que a China alcançasse resultados tão positivos, num curto período de tempo? A opção capitalista (dizem alguns sempre nas nuvens). Então, se assim é, qual o motivo por que essa opção foi tão dolorosa e menos eficaz na ex-URSS e no Leste da Europa? As respostas variam e situam-se a vários níveis e diferentes planos. Em qualquer das respostas há que considerar o seguinte elemento: a ex-URSS atingiu o apogeu no último período da época estalinista, preparando-se agora - como Federação Russa, correspondendo ao domínio de uma elite pós-bolchevique, mas forjada no capitalismo de estado que caracterizou a opção soviética - para um novo apogeu, enquanto a China sô atingiu o apogeu na fase pós-maoista (embora o maoismo fosse a ideologia da revolução industrial na China). Este elemento provoca uma alteração nas contas. Afinal o período de incubação teve a mesma duração (na China de 1949 á década de 80, na ex-URSS de 1920 a 1950, mais ou menos). A diferença consiste em que no caso soviético o apogeu é atingido na forma de capitalismo monopolista de Estado (o socialismo real), gerado pela elite bolchevique depurada e na China o apogeu surge na forma de capitalismo nacional e social (a mesma forma que assume o novo apogeu russo) implementado pelas elites pós-maoistas, que ajustam, dessa forma, contas com a Revolução Cultural (cujo fracasso obrigou a uma flexão á direita na elite maoista, em busca de consensos).

Na ex-URSS e na Europa de Leste, durante o período de transição do capitalismo de Estado para o capitalismo liberal ou para formas "suaves" de capitalismo de Estado, não existiu um projecto coerente de sociedade, nem qualquer concepção de sociedade. Na China, pelo contrário, a mudança consistiu num projecto coerente, inserido no capitalismo nacional e social, fácil de camuflar como projecto socialista (o "socialismo de mercado", como se alguma vez a Revolução Chinesa - ou outra qualquer - tivesse atingido o ponto de criar relações socialistas no mercado interno, uma vez que o externo é e será capitalista até ser um mercado único global).

A elite chinesa acreditou profunda e convictamente que a integração na economia-mundo é sempre conflituosa e violenta. Nunca acreditou no discurso dos reformadores soviéticos sobre a convergência entre a lógica de expansão do capitalismo á escala mundial (a economia-mundo) e as lógicas de inserção dos diferentes países na economia-mundo. As elites maoistas e pós-maoistas chinesas não acreditavam nisso. Ao contrário dos reformadores soviéticos e do Leste europeu (onde a Polónia experimentou o "processo Pinochet de transição", em que os planificadores da Academia Soviética fizeram, na Polónia, o papel da Escola de Chicago no Chile) as elites chinesas consideravam que a China com o seu êxito económico vergaria as economias centrais do sistema. Os USA, segundo os chineses (apesar das aproximações

ocorridas na ultima fase maoista, iniciadas por Nixon e de nesta fase Mao considerar que o "social-imperialismo" soviético como "inimigo numero dos povos") eram um adversário que tornar-se-iam cada vez mais recalcitrantes á medida que o sucesso da China se acentuasse. 

Se continuarmos na senda da comparação entre a China e a Rússia (como ex-URSS, da qual foi o centro, ou na actualidade, como Federação Russa, parceira da China) encontraremos elementos comuns (a herança da Terceira Internacional, o marxismo-leninismo, a ajuda soviética á Resistência Chinesa contra a invasão japonesa, na II Guerra Mundial, etc.) e também elementos de diferenciação nas condições históricas de ambos os partidos e revoluções.

II - Na Rússia, após a revolução soviética, os debates giraram em torno da participação dos camponeses e da necessidade de estabelecer uma “aliança operaria-camponesa", considerada, nesse período, indispensável para o "desenvolvimento das forças produtivas". Em 1930 a elite bolchevique (já depurada e composta apenas pelas facções que apoiaram Estaline) optou por romper esta aliança, ao acelerar a industrialização, impondo-a nas áreas rurais através da colectivização. Esta opção foi produto da ideologia herdada do movimento operário europeu (posta em causa por Lenine mas retomada por Estaline) e neste sentido coerentemente inserida no ulterior desenvolvimento económico da URSS. Foi uma decisão discutida durante mais de uma década e assumida em função dos parâmetros da filosofia desenvolvimentista da elite bolchevique. 

Na China a situação era muito diferente. A origem do PC Chinês é intelectual e pequeno-burguesa (tal como a do partido russo. Na Rússia a pouco numerosa classe operária aderiu lentamente ao partido operário social-democrata, mesmo depois da separação entre bolcheviques, pois nenhuma das facções tinha origem operária). Tanto o partido russo como o chinês eram partidos da "intelligentzia”, com poucas ligações aos meios operários.

A diferença principal consistiu em que o partido russo não construiu apoios no campo antes de 1917, enquanto o partido chines, na guerra de resistência anti-japonesa, construiu uma forte liderança entre os camponeses apos 1930. De 1949 até hoje a revolução chinesa resolveu o problema da "aliança operário-camponesa", facto visível na sua economia, onde o intercâmbio agricultura-industria sempre foi harmoniosamente resolvido. Uma segunda diferença pode ser observada na análise comparativa entre ambas as revoluções: a burguesia. A revolução soviética eliminou a burguesia, mas o caso chines foi diferente. Largos sectores da burguesia nacional chinesa são cativados pela revolução chinesa. Adquiriram confiança no PC Chinês durante a resistência à invasão nipónica (tal como os camponeses).

Camponeses, burgueses e intelectuais foram a base de apoio do PC Chinês. Quanto á classe operária pareceu não se enquadrar nas teses de Mao...

III - Este conjunto de factores históricos explica a força do projecto de modernização da China, assente num capitalismo nacional e social. Burgueses e camponeses não podiam (nem podem) caminhar para o socialismo (quanto muito utilizam os resíduos ideológicos do socialismo ou o discurso do movimento operário) mas podem ser as forças de arranque para a industrialização modernização social em países semicoloniais onde já existam núcleos industriais e uma burguesia diferenciada (agraria, comercial, industrial e financeira). Os intelectuais e sectores administrativos (ou pequeno-burgueses) assumem a direcção política e ideológica, oferecendo a necessária coesão social, indispensável á implementação de qualquer processo de desenvolvimento.

Existe, por outro lado, um paradoxo que pode ser observado em quase toda a Ásia: a acção limitada do liberalismo. As burguesias asiáticas (todas elas nacionais) nunca constituíram núcleos internacionais (mesmo sendo os seus capitais uma importante componente do capital internacional), ou seja, nunca formaram uma burguesia internacional cosmopolita, como acontece com alguns núcleos avançados norte-americanos e europeus, do capital internacional.

Uma observação atenta dos interesses sociais reais destas camadas permite concluir que as burguesias asiáticas não cortaram ainda o seu cordão umbilical necessitando do espaço nacional para continuarem a desenvolver-se e do Estado para poderem afirmar a sua influência. Não são ainda grupos dominantes (como acontece no Ocidente) mas sim elites influentes. Este fenómeno é observável até nas economias japonesas e sul-coreanas, economias capitalistas instaladas, ou em Singapura.

Ora se em grande parte da Asia assume-se  um liberalismo mitigado (uma dose  quanto baste para manter o processo de modernização), na China largos sectores da burguesia nacional assumem o socialismo e a herança do movimento operário europeu (em particular da III Internacional).

IV - A herança  do movimento operário europeu è visível em três  factores chave da sociedade chinesa: a) a neutralidade das técnicas de produção; b) o papel de vanguarda do Partido; c) as relações Estado-Partido-Classe-Povo. Mao, com a Revolução Cultural, tentou questionar estes factores, mas a Revolução Cultural não descobriu - nem produziu - um novo agente social que colocasse em causa a neutralidade das tecnologias. Quanto às críticas efectuadas  ao Partido (que foi acusado  de ser uma "fortaleza onde se reconstituía a burguesia") não passaram de motivo para mais uma das muitas purgas que  caracterizaram a liderança Mao e a Guarda Vermelha (que pretendia assumir o papel de vanguarda) acabou por ser cilindrada pelo Partido.

Com os objectivos socialistas chegados a um beco sem saída, a China pós-maoista apega-se a um capitalismo "nacional e social", sem grande confiança nos "mercados" e no "capitalismo mundial" (a economia-mundo). Atente-se que a China não renunciou ao socialismo (raiz do seu projecto modernizador), mas metamorfoseou-o em " capitalismo nacional e social" (não em capitalismo de Estado, como aconteceu - desde muito cedo - com a URSS).

As razoes do actual "sucesso" chines devem ser procuradas, pois, na infraestrutura económica, politica e ideológica construída entre 1950 e 1980. Efectivamente, quando o Banco Mundial e os meios de comunicação dominantes - assim como alguns incautos professores universitários que, do alto das suas cátedras "funcionalizadas", martelam as concepções "oficiais" dos seus patrões nas cabecitas dos seus alunos - referem "crescimento", deveriam referir "aceleração". A China já tinha registado uma taxa de crescimento de 5,3% do PIB no período 1957-1975 e de 3,3% do PIB per capita, no mesmo período (para alem de uma taxa de crescimento de 11,2% na industria ligeira e de 8,2% na industria pesada).

Quando a China no tempo de Deng Xiao Ping decidiu "reintegrar-se" na economia-mundo essa infraestrutura permitiu-lhe realizar a "santa trindade" da inserção no sistema mundial (privatização, mercado livre e abertura ao exterior) sem choques traumáticos (ao contrário da URSS e da Europa de Leste).

V - No que consiste a privatização efectuada pelos chineses? Em desconcentrar a propriedade do Estado (assumida como propriedade publica). Em 1981 o Estado dominava a partilha de propriedade e o país apresentava o seguinte cenário: 78% para o Estado, 21% era propriedade das cooperativas e 1% do sector privado. Dez anos depois a propriedade estatal reduzia-se a 55%, surgira uma propriedade colectiva formada por cooperativas, sindicatos, províncias e cidades e que representava 36% e o sector privado com 9%.

O sistema de preços tenta conjugar o princípio da concorrência (a liberdade de fixação de preços da oferta) com a planificação (preços fixados através dos organismos estatais). Este sistema aparenta uma perspectiva racional, mas de facto gera enormes irracionalidades e incongruências, cujas correções conduzem a que no início da década de 90 os preços livres predominem nos mercados agrícolas e da indústria ligeira, embora fosse praticado em menor escala nos mercados de bens de equipamento e de matérias-primas. Na actualidade predomina o sistema de preços livres, embora a teoria oficial consista, ainda, na irracionalidade do "racional sistema misto".

VI - O projecto chines, ou melhor, o projecto das elites dominantes chinesas, foi estritamente confuciano, baseado nas virtudes do bom funcionamento do Estado-Partido, sem intervenção autónoma das camadas populares. As virtudes do Estado (seja este qual for) são ilusões e as elites milenarias da China sempre dominaram em torno dessa "virtude estatal", cujos princípios foram convertidos em superestrutura ideológica e código comportamental por Confúcio.

As actuais elites mantêm esses princípios, visíveis em instituições criadas recentemente, no âmbito da "auscultação" (um  termo que vingou em diversos países africanos em vias de tornarem-se periferias da China, mesmo que isso implique um braço de ferro com a Africa do Sul, nos BRICS), apresentado nos meios propagandísticos chineses e assimilados, como o "expoente da democracia", algo que para o Ocidente è difícil de engolir, uma vez que as democracias representativas ocidentais (democracias "burguesas") acabam por ter mecanismos participativos muito mais conflituosos e eficazes.

Convém observar que o projecto "nacional e social" das elites chinesas è baseado em três regiões, ou seja comporta três elites regionais diferentes: o Norte da embrionária burguesia agraria (esta era a região feudal, atrasada) e das elites burocratas; Xangai, o centro das burguesias financeira e industrial; Cantão, o centro da burguesia comercial. Estas três  componentes arrumam-se, de forma mais ou menos "harmoniosa" no Estado-Partido e digladiam-se no aparelho partidário.

Este cenário pode ironicamente ser descrito como uma simbiose de Confúcio (harmonia e virtude do Estado) e Mao (as contradições e a violência do conflito como motor do desenvolvimento). Talvez esta simbiose seja, afinal, a única produção da Revolução Cultural... 

(continua)

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