Rui
Peralta, Luanda
I
- A China entrou, no início da década de 80, num processo económico acelerado,
consequência da profunda alteração das elites politicas - a revolução chinesa -
que foi crucial para o prosseguimento e implantação da revolução industrial no
país. Devido às suas dimensões e ao elevado número de habitantes, este
acentuado crescimento alterou (e continua a alterar) os equilíbrios
internacionais. Além do mais esta evolução ocorre num contexto em que o Ocidente
corre o risco de transformar-se num imenso pântano económico e financeiro
(consequência de uma prolongada estagnação á qual nem o projecto europeu deu
resposta) e o resto do mundo permanece atolado a um adiamento constante da
neutralização dos efeitos da crise persistente, que em maior ou menor grau,
directa ou indirectamente, afecta todas as economias nacionais, em particular e
a economia mundial, em
geral. Mesmo os BRICS Brasil, India e África do Sul sofrem
fortes pressões regressivas (o Brasil em regressão, a India num processo
delicado, onde as suas elites económicas, profundamente mergulhadas na
corrupção, ensaiam os primeiros passos para a tomada directa do poder politico
- as eleições deram a vitória aos ultranacionalistas hindus - afastando o corrupto
e ineficiente aparelho instituído na independência e por fim a Africa do
Sul, a não se atrever a ir além da gestão da crise, fugindo ás ameaças
inflacionistas, aguardando por melhores dias, mas a mais segura das três). Dos
BRICS (grupo de economias autocentradas, com as suas periferias historicamente
definidas, factor que alguns candidatos mais entusiastas - em alguns casos
periféricos a este desenho - esquecem) permanecem em rota de crescimento a
China e a Rússia (esta a uma velocidade menor, em choque com a U.E., os USA e
saindo de um traumatizante período de transição).
Que
factores permitiram que a China alcançasse resultados tão positivos, num curto
período de tempo? A opção capitalista (dizem alguns sempre nas nuvens). Então,
se assim é, qual o motivo por que essa opção foi tão dolorosa e menos eficaz na
ex-URSS e no Leste da Europa? As respostas variam e situam-se a vários níveis e
diferentes planos. Em qualquer das respostas há que considerar o seguinte
elemento: a ex-URSS atingiu o apogeu no último período da época estalinista,
preparando-se agora - como Federação Russa, correspondendo ao domínio de uma
elite pós-bolchevique, mas forjada no capitalismo de estado que caracterizou a
opção soviética - para um novo apogeu, enquanto a China sô atingiu o apogeu na
fase pós-maoista (embora o maoismo fosse a ideologia da revolução industrial na
China). Este elemento provoca uma alteração nas contas. Afinal o período de
incubação teve a mesma duração (na China de 1949 á década de 80, na ex-URSS de 1920 a 1950, mais ou menos).
A diferença consiste em que no caso soviético o apogeu é atingido na forma de
capitalismo monopolista de Estado (o socialismo real), gerado pela elite
bolchevique depurada e na China o apogeu surge na forma de capitalismo nacional
e social (a mesma forma que assume o novo apogeu russo) implementado pelas
elites pós-maoistas, que ajustam, dessa forma, contas com a Revolução Cultural
(cujo fracasso obrigou a uma flexão á direita na elite maoista, em busca de
consensos).
Na
ex-URSS e na Europa de Leste, durante o período de transição do capitalismo de
Estado para o capitalismo liberal ou para formas "suaves" de
capitalismo de Estado, não existiu um projecto coerente de sociedade, nem
qualquer concepção de sociedade. Na China, pelo contrário, a mudança consistiu
num projecto coerente, inserido no capitalismo nacional e social, fácil de
camuflar como projecto socialista (o "socialismo de mercado", como se
alguma vez a Revolução Chinesa - ou outra qualquer - tivesse atingido o ponto
de criar relações socialistas no mercado interno, uma vez que o externo é e
será capitalista até ser um mercado único global).
A
elite chinesa acreditou profunda e convictamente que a integração na
economia-mundo é sempre conflituosa e violenta. Nunca acreditou no discurso dos
reformadores soviéticos sobre a convergência entre a lógica de expansão do
capitalismo á escala mundial (a economia-mundo) e as lógicas de inserção dos
diferentes países na economia-mundo. As elites maoistas e pós-maoistas chinesas
não acreditavam nisso. Ao contrário dos reformadores soviéticos e do Leste
europeu (onde a Polónia experimentou o "processo Pinochet de
transição", em que os planificadores da Academia Soviética fizeram, na
Polónia, o papel da Escola de Chicago no Chile) as elites chinesas consideravam
que a China com o seu êxito económico vergaria as economias centrais do
sistema. Os USA, segundo os chineses (apesar das aproximações
ocorridas na ultima fase maoista, iniciadas por Nixon e de nesta fase Mao considerar que o "social-imperialismo" soviético como "inimigo numero dos povos") eram um adversário que tornar-se-iam cada vez mais recalcitrantes á medida que o sucesso da China se acentuasse.
Se
continuarmos na senda da comparação entre a China e a Rússia (como ex-URSS, da
qual foi o centro, ou na actualidade, como Federação Russa, parceira da China)
encontraremos elementos comuns (a herança da Terceira Internacional, o
marxismo-leninismo, a ajuda soviética á Resistência Chinesa contra a invasão
japonesa, na II Guerra Mundial, etc.) e também elementos de diferenciação nas
condições históricas de ambos os partidos e revoluções.
II
- Na Rússia, após a revolução soviética, os debates giraram em torno da
participação dos camponeses e da necessidade de estabelecer uma “aliança
operaria-camponesa", considerada, nesse período, indispensável para o
"desenvolvimento das forças produtivas". Em 1930 a elite bolchevique (já
depurada e composta apenas pelas facções que apoiaram Estaline) optou por
romper esta aliança, ao acelerar a industrialização, impondo-a nas áreas rurais
através da colectivização. Esta opção foi produto da ideologia herdada do
movimento operário europeu (posta em causa por Lenine mas retomada por
Estaline) e neste sentido coerentemente inserida no ulterior desenvolvimento económico
da URSS. Foi uma decisão discutida durante mais de uma década e assumida em
função dos parâmetros da filosofia desenvolvimentista da elite
bolchevique.
Na
China a situação era muito diferente. A origem do PC Chinês é intelectual e
pequeno-burguesa (tal como a do partido russo. Na Rússia a pouco numerosa
classe operária aderiu lentamente ao partido operário social-democrata, mesmo
depois da separação entre bolcheviques, pois nenhuma das facções tinha origem
operária). Tanto o partido russo como o chinês eram partidos da
"intelligentzia”, com poucas ligações aos meios operários.
A
diferença principal consistiu em que o partido russo não construiu apoios no
campo antes de 1917, enquanto o partido chines, na guerra de resistência
anti-japonesa, construiu uma forte liderança entre os camponeses apos 1930. De
1949 até hoje a revolução chinesa resolveu o problema da "aliança
operário-camponesa", facto visível na sua economia, onde o intercâmbio
agricultura-industria sempre foi harmoniosamente resolvido. Uma segunda
diferença pode ser observada na análise comparativa entre ambas as revoluções:
a burguesia. A revolução soviética eliminou a burguesia, mas o caso chines foi
diferente. Largos sectores da burguesia nacional chinesa são cativados pela
revolução chinesa. Adquiriram confiança no PC Chinês durante a resistência à
invasão nipónica (tal como os camponeses).
Camponeses,
burgueses e intelectuais foram a base de apoio do PC Chinês. Quanto á classe
operária pareceu não se enquadrar nas teses de Mao...
III
- Este conjunto de factores históricos explica a força do projecto de
modernização da China, assente num capitalismo nacional e social. Burgueses e
camponeses não podiam (nem podem) caminhar para o socialismo (quanto muito
utilizam os resíduos ideológicos do socialismo ou o discurso do movimento
operário) mas podem ser as forças de arranque para a industrialização
modernização social em países semicoloniais onde já existam núcleos industriais
e uma burguesia diferenciada (agraria, comercial, industrial e financeira). Os
intelectuais e sectores administrativos (ou pequeno-burgueses) assumem a
direcção política e ideológica, oferecendo a necessária coesão social,
indispensável á implementação de qualquer processo de desenvolvimento.
Existe,
por outro lado, um paradoxo que pode ser observado em quase toda a Ásia: a
acção limitada do liberalismo. As burguesias asiáticas (todas elas nacionais)
nunca constituíram núcleos internacionais (mesmo sendo os seus capitais uma
importante componente do capital internacional), ou seja, nunca formaram uma
burguesia internacional cosmopolita, como acontece com alguns núcleos avançados
norte-americanos e europeus, do capital internacional.
Uma
observação atenta dos interesses sociais reais destas camadas permite concluir
que as burguesias asiáticas não cortaram ainda o seu cordão umbilical
necessitando do espaço nacional para continuarem a desenvolver-se e do Estado
para poderem afirmar a sua influência. Não são ainda grupos dominantes (como
acontece no Ocidente) mas sim elites influentes. Este fenómeno é observável até
nas economias japonesas e sul-coreanas, economias capitalistas instaladas, ou
em Singapura.
Ora
se em grande parte da Asia assume-se um liberalismo mitigado (uma
dose quanto baste para manter o processo de modernização), na China
largos sectores da burguesia nacional assumem o socialismo e a herança do
movimento operário europeu (em particular da III Internacional).
IV
- A herança do movimento operário europeu è visível em três
factores chave da sociedade chinesa: a) a neutralidade das técnicas de
produção; b) o papel de vanguarda do Partido; c) as relações
Estado-Partido-Classe-Povo. Mao, com a Revolução Cultural, tentou questionar
estes factores, mas a Revolução Cultural não descobriu - nem produziu - um novo
agente social que colocasse em causa a neutralidade das tecnologias. Quanto às
críticas efectuadas ao Partido (que foi acusado de ser uma
"fortaleza onde se reconstituía a burguesia") não passaram de motivo
para mais uma das muitas purgas que caracterizaram a liderança Mao e a
Guarda Vermelha (que pretendia assumir o papel de vanguarda) acabou por ser
cilindrada pelo Partido.
Com
os objectivos socialistas chegados a um beco sem saída, a China pós-maoista
apega-se a um capitalismo "nacional e social", sem grande confiança
nos "mercados" e no "capitalismo mundial" (a
economia-mundo). Atente-se que a China não renunciou ao socialismo (raiz do seu
projecto modernizador), mas metamorfoseou-o em " capitalismo nacional e
social" (não em capitalismo de Estado, como aconteceu - desde muito cedo -
com a URSS).
As
razoes do actual "sucesso" chines devem ser procuradas, pois, na
infraestrutura económica, politica e ideológica construída entre 1950 e 1980.
Efectivamente, quando o Banco Mundial e os meios de comunicação dominantes -
assim como alguns incautos professores universitários que, do alto das suas
cátedras "funcionalizadas", martelam as concepções
"oficiais" dos seus patrões nas cabecitas dos seus alunos - referem
"crescimento", deveriam referir "aceleração". A China já
tinha registado uma taxa de crescimento de 5,3% do PIB no período 1957-1975 e
de 3,3% do PIB per capita, no mesmo período (para alem de uma taxa de
crescimento de 11,2% na industria ligeira e de 8,2% na industria pesada).
Quando
a China no tempo de Deng Xiao Ping decidiu "reintegrar-se" na
economia-mundo essa infraestrutura permitiu-lhe realizar a "santa
trindade" da inserção no sistema mundial (privatização, mercado livre e
abertura ao exterior) sem choques traumáticos (ao contrário da URSS e da Europa
de Leste).
V
- No que consiste a privatização efectuada pelos chineses? Em desconcentrar a
propriedade do Estado (assumida como propriedade publica). Em 1981 o Estado
dominava a partilha de propriedade e o país apresentava o seguinte cenário: 78%
para o Estado, 21% era propriedade das cooperativas e 1% do sector privado. Dez
anos depois a propriedade estatal reduzia-se a 55%, surgira uma propriedade
colectiva formada por cooperativas, sindicatos, províncias e cidades e que
representava 36% e o sector privado com 9%.
O
sistema de preços tenta conjugar o princípio da concorrência (a liberdade de
fixação de preços da oferta) com a planificação (preços fixados através dos
organismos estatais). Este sistema aparenta uma perspectiva racional, mas de
facto gera enormes irracionalidades e incongruências, cujas correções conduzem
a que no início da década de 90 os preços livres predominem nos mercados
agrícolas e da indústria ligeira, embora fosse praticado em menor escala nos
mercados de bens de equipamento e de matérias-primas. Na actualidade predomina
o sistema de preços livres, embora a teoria oficial consista, ainda, na
irracionalidade do "racional sistema misto".
VI
- O projecto chines, ou melhor, o projecto das elites dominantes chinesas, foi
estritamente confuciano, baseado nas virtudes do bom funcionamento do
Estado-Partido, sem intervenção autónoma das camadas populares. As virtudes do
Estado (seja este qual for) são ilusões e as elites milenarias da China sempre
dominaram em torno dessa "virtude estatal", cujos princípios foram
convertidos em superestrutura ideológica e código comportamental por Confúcio.
As
actuais elites mantêm esses princípios, visíveis em instituições criadas
recentemente, no âmbito da "auscultação" (um termo que vingou
em diversos países africanos em vias de tornarem-se periferias da China, mesmo
que isso implique um braço de ferro com a Africa do Sul, nos BRICS),
apresentado nos meios propagandísticos chineses e assimilados, como o
"expoente da democracia", algo que para o Ocidente è difícil de
engolir, uma vez que as democracias representativas ocidentais (democracias
"burguesas") acabam por ter mecanismos participativos muito mais conflituosos e eficazes.
Convém
observar que o projecto "nacional e social" das elites chinesas è
baseado em três regiões, ou seja comporta três elites regionais diferentes: o
Norte da embrionária burguesia agraria (esta era a região feudal, atrasada) e
das elites burocratas; Xangai, o centro das burguesias financeira e industrial;
Cantão, o centro da burguesia comercial. Estas três componentes
arrumam-se, de forma mais ou menos "harmoniosa" no Estado-Partido e
digladiam-se no aparelho partidário.
Este
cenário pode ironicamente ser descrito como uma simbiose de Confúcio (harmonia
e virtude do Estado) e Mao (as contradições e a violência do conflito como
motor do desenvolvimento). Talvez esta simbiose seja, afinal, a única produção
da Revolução Cultural...
(continua)
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