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Alberto
Castro é correspondente de Afropress em Londres |
Alberto
Castro – Afropress, em colunistas
A
X Cimeira da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), realizada no
passado 23 de julho em Díli, capital de Timor-Leste, admitiu por
unanimidade a Guiné Equatorial como o nono Estado-membro de pleno direito da
organização, culminando assim um processo de dez anos de aproximação ao bloco
lusófono pelo único país africano de língua castelhana cujas partes do
território, entre os séculos XV e XVIII, pertenceram à Coroa portuguesa.
Um
processo nada pacífico, principalmente pela forte oposição à adesão do país de
Teodoro Obiang, o homem que o dirige com pulso de ferro há mais de três
décadas, por parte de setores da política, imprensa e sociedade civil
portuguesa. Os argumentos dos críticos, essencialmente políticos, assentam em
temas como a ditadura, corrupção, falta de transparência na governança e
violações dos direitos humanos e, entre estes, principalmente a existência
da pena de morte no regime de Malabo.
Mas,
mesmo perante aquelas fortes e justificadas críticas, o Governo de Lisboa,
ainda mergulhado numa grave crise econômico-financeira, foi praticamente
forçado pelos demais parceiros da CPLP a aceitar a adesão do que muitos vêem
como ''indesejável'' membro na família. Assim não fosse e arriscaria uma
situação de isolamento que seria ''muito negativa'', segundo o pragmatismo
do primeiro-ministro Passos Coelho.
Não
deixou, no entanto, de ser caricata, patética e incoerente o
posicionamento do presidente Cavaco Silva. Opositor aberto à adesão,
justificou a sua presença na Cimeira da capital timorense com o pretexto,
diga-se paternalista e pretensioso, de ''ajudar Timor-Leste para que a mesma
fosse um sucesso.'' E numa demonstração de falta de sentido de Estado e tato
diplomático comparou, em conferência de imprensa, a situação da Guiné
Equatorial com a da Coreia do Norte, desta feita justificando a adesão argumentando
que ''o isolacionismo nunca conduziu à democracia e ao respeito pelos
direitos humanos''.
Se
fosse coerente consigo mesmo, Cavaco Silva teria optado pela ausência na
Confêrencia de Díli e permanecido em silêncio no conforto do Palácio de Belém,
demonstrando assim a sua reprovação. Foi o que fizeram, em sentido oposto,
Dilma Rousseff e José Eduardo dos Santos, apontados como os principais
patrocinadores da integração da Guiné Equatorial como membro de pleno direito
da CPLP.
Vozes
e opiniões indignadas e bem inflamadas de políticos, jornalistas e comentadores
contra a adesão encheram páginas de jornais e espaços de comentários nas rádios
e TVs portuguesas fustigando o governo luso, particularmente a sua
diplomacia, por um desenlace que consideram ser uma autêntica humilhação
nacional.
Houve
quem sugerisse que Portugal abandonasse de imediato a CPLP e os esquerdistas do
Bloco de Esquerda propuseram dois dias depois ao Parlamento um voto que pedia a
condenação da entrada do país de Obiang na organização lusófona. O mesmo foi
chumbado pela maioria PSD/CDS que apoia o Governo e por parte da bancada
Socialista, com abstenções de Comunistas e Verdes.
A Cimeira
da cobiça e da desvergonha (I), titula em editorial o jornal
Público, um dos mais ferrenhos nas críticas à adesão, na sua edição online
de 23 de julho afirmando no primeiro parágrafo que a ''“carteira” de
Obiang fala mais alto do que quaisquer outros valores. ''A memória
deles pode ser curta, a minha não (II), escreve no mesmo dia e no mesmo
jornal a eurodeputada socialista Ana Gomes para quem ''a entrada da Guiné
Equatorial presta-se, desde já, a ensombrar a imagem da CPLP. Pois confere um
carimbo de respeitabilidade internacional a um regime ditatorial que
procura lavar mais, e mais facilmente, no exterior, os proveitos da tirania e
da corrupção''. Para o colunista Vasco Pulido Valente, o que aconteceu em
Díli foram "merecidos vexames'' (III).
Escreve
o articulista que: ''A nós que por aqui andamos a contar tostões não nos faz
mal o vexame público do país, que é uma tradição histórica e, pior ainda, um
hábito de vida''. E referindo-se ao governo angolano acrescenta: ''Embora
obedecer ao Império Britânico seja em princípio menos comprometedor do que
obedecer a um bando de cleptocratas”. Mas o colunista acabaria por, no
essencial, dar razão ao editorial do Jornal de Angola com o título
''A grandeza da língua'' (IV) no qual aquele diário estatal qualifica certos
setores das elites portuguesas com adjetivos como ''preconceituosa”,
“incoerente”, “estrábica'', ''ignorante'', ''corrupta e ''soberba''.
Ainda
no Público, a colunista Teresa de Sousa questiona dias depois: ''O
que anda a fazer a diplomacia portuguesa?''(V). Uma diplomacia que, segundo
ela, ''verga-se aos editoriais “ameaçadores” do Jornal de Angola'' e ao
Brasil azul (Atlântico Sul), a nova prioridade estratégica prevalecente no
Itamaraty, depois do Brasil verde (Amazônia), que visa o fortalecimento das
relações Sul-Sul. A colunista sugere que a ''última coisa que passaria pela
cabeça de Dilma era ver este objetivo estratégico prejudicado por uma qualquer
teimosia de Portugal sobre a questão dos direitos humanos.''
No
essencial os argumentos dos críticos são válidos, não apenas do ponto de
vista da argumentação meramente política. Credíveis relatos internos e externos
mostram que o regime de Obiang choca-se com princípios e valores
fundadores da CPLP como o primado da paz, da democracia, dos direitos humanos,
da boa governança e da justiça social.
Mas
a politização dessas evidências peca por carregar igualmente uma grande dose de
cinismo, hipocrisia, paternalismo, suposta superioridade moral e a tentativa de
tutela exclusiva de uma língua comum por parte do país de origem da mesma para
fins meramente políticos. Uma breve radiografia política à todos os países da
CPLP mostraria a olhos nus que os citados princípios e valores são violados e
fragilizados diariamente e de forma chocante em todos os espaços lusófonos, sem
exceção.
Citando
apenas o Brasil, no maior dos lusófonos milhares de brasileiros, na maioria
negros e índios, vêem seus direitos de cidadania diariamente violados, suas
vidas ceifadas pelo simples ''pecado'' da cor. Raras são as vozes em Portugal
que se levantam contra e se indignam.
No
que respeita à pena de morte, um dos argumentos mais esgrimidos pelos
críticos contra o regime equato-guineense, nunca vi de algum comentador,
político ou orgão de imprensa vocalmente contrários a adesão Guiné Equatorial à
CPLP, críticas ferozes à consagração da mesma na atual Constituição Federal
brasileira.
Embora
se aplique apenas em caso de guerra, ela existe e o condenado, em certas
situações, pode ser executado sumariamente, sem que seja sequer julgado.
Portugal, membro da sinistra OTAN, tem relações de parceria
estratégica com os EUA e a China, dois países com pena capital.
No
que toca à ditadura, Portugal ainda hoje se ajoelha e suspira por uma parceria
estratégica com Angola. No ano passado o Governo de Lisboa apavorou-se quando o
poder de Luanda, constantemente retratado em setores da mídia e da política
lusa com sendo uma ditadura disfarçada de democracia formal, engavetou a tão
desejada parceria estratégica que vinha sendo trabalhada entre os
Governos dos dois países.
No
que toca a corrupção, transparência e boa governança, nenhum dos
Estados-membros da CPLP está em condições de dar lições de moral a
outros. Quanto aos banalizados conceitos de democracia e dos direitos humanos,
idem.
Estados
recentemente saídos de experiências dolorosíssimas de guerras e ditaduras dão
os seus primeiros passos na experimentação democrática e deles se exigem
comportamentos e práticas que outros vêm experimentando e aperfeiçoando há
séculos. Outros, mal consolidaram as suas democracias e já se arrogam ao
direito de moralistas, espelhando-se pretensiosamente como modelos a seguir.
Modelos
esgotados onde o que na verdade domina é a Televicracia, termo cunhado
pelo jornalista e escritor mexicano Jorge Saldaña para explicar a
complexidade de uma aberração política onde as mídias se
transformaram em ''poderes de facto'' que não resultam dos votos mas que os
influenciam, sendo a televisão o núcleo principal desses poderes. Um embuste
mediático que nega a democracia em todos os seus conceitos.
A
barulheira eurocêntrica que se fez sentir em Lisboa por causa da adesão da
Guiné Equatorial revela igualmente uma visão estreita do que deve ser a
CPLP, uma amnésia histórica que roça o insulto aos africanos e um
desconhecimento do enquadramento do país agora oficialmente trilingue (caso
raro) de grande importância geoestratégica nas relações
internacionais. Vivemos num mundo globalizado, cada vez mais competitivo e
interdependente.
A
entrada na lusofonia não pode nem deve ser condicionado apenas à dimensão da
língua falada e escrita como muitos defendem. Fazer isso é um exercício de
negação fundamentalista do passado e reducionista da história. Assim fosse e os
países africanos lusófonos sequer fariam parte da CPLP porque a maioria das
suas populações sequer fala e escreve o Português. E quem assim demagogicamente
pensa sequer tem dinheiro para manter uma comunidade meramente de afetos.
A
dimensão econômica da adesão da Guiné Equatorial deve ser vista como uma
vantagem para a CPLP e não reduzida a um mero aproveitamento de petróleo e gás
natural que elimina importantes dimensões identitárias da mesma como a
histórica e a cultural. Tão pouco deve ser usada para nos mantermos em silêncio
e à margem dos atropelos aos nobres valores consagrados estatutáriamente na
Comunidade. Sou dos que defendem uma exigência cada vez maior na observância
dos mesmos em todos os espaços da lusofonia.
E
creio que isso apenas se consegue com uma verdadeira democratização da CPLP
como organização verdadeiramente comunitária de bem e não um clube de
interesses elitistas e obscuros.
Vejo,
por tudo isso, a integração da Guiné Equatorial como um feliz reencontro com a
história dos povos da lusofonia e um enorme desafio à própria
comunidade que os diz representar. É falacioso defender que a mesma
confere um selo de respeitabilidade internacional à ditadura de Obiang.
A
Guiné Equatorial é membro da francofonia e de diversas organizações
multilaterais regionais, continentais, intercontinentais e globais. A
CPLP é uma organização que mal se firmou no plano internacional e,
mais preocupante, mal se afirmou nos espaços da lusofonia onde ainda é
praticamente desconhecida.
A
barulheira portuguesa confirmou uma grande verdade: esquecer o passado é correr
o risco de deixar desprotegido o futuro. Demonstrou-se um grande
desconhecimento, amnésia histórica e desrespeito pela história de Portugal e
dos povos com que no passado privou criando fortes elos identitários comuns.
Foram
inquestionavelmente séculos de convivências bem mais violentas do que
pacíficas. No entanto, neles se criaram e se fortaleceram laços de identidades
histórico-culturais inquebrantáveis que não se reduzem apenas à enorme
responsabilidade portuguesa no hediodno comércio e tráfico de escravos.
Assim
fosse e a Guiné Equatorial, ao invés da adesão, estaria hoje a instaurar um
processo internacional contra Portugal reivindicando justas
compensações morais e materiais pelos enormes danos causados pelo horrendo
tráfico negreiro.
Nesse
quesito os africanos dão uma lição a Portugal ao mostrarem-se, por
enquanto, tolerantes para com as páginas mais obscuras da sua história. Isso
demonstra, por um lado, a grandeza de alma dos filhos daqueles a quem um dia se
tirou a alma para fossem escravizados. Por outro, mostra que apesar de todos os
pesares, alguma coisa de bom ficou do relacionamento secular de Portugal com
a África.
A
visão estreita e a amnésia histórica de parte de inúmeros políticos,
comentadores e da generalidade da imprensa em Portugal, ignorantes da sua
própria história, fica resumida no parágrafo final do citado editorial do Jornal
de Angola: ''Os portugueses têm um grande orgulho na expansão marítima da qual
resultou o seu império. Mas agora há países e povos que guardam a memória desse
passado comum e querem pertencer à CPLP. Alguns renegam esse passado e
opõem-se ao alargamento da organização. São demasiado pequenos para a grandeza
da Língua Portuguesa.''
Perde-se
muito tempo e energias com críticas avulsas, mesquinhices, birrinhas e
ciumimhos quando o que se deveria fazer era publicitar a CPLP, explicar
aos povos da lusofonia o que ela significa e representa, fortalecê-la, torná-la
conhecida e visível através de programas de intercâmbios culturais,
desportivos, empresariais, políticas de livre circulação para todos no
espaço geográfico lusófono etc.
Não
tê-la como uma organização que, até agora, em que pese toda a sua
validade, tem servido praticamente como instrumento de aproveitamentos
políticos, de passeios turísticos e negócios das elites políticas,
econômicas e culturais. São os povos, apenas eles, que podem fazer a
grande Comunidade da Lusofonia em todas as suas dimensões. Não políticos
demagogos, jornalistas e intelectuais vaidosos com agendas próprias.
Por
isso há que começar a democratizá-la já dando vez e voz aos seus povos
através de iniciativas e instituições como, por exemplo, um Parlamento Lusófono
que a possa escrutinar.
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