Como
um partido não-convencional ousou desapegar-se da retórica e experimentar. A
escuta política. Os “clubes de solidariedade”. O carisma de Tsipras
Paul
Mason - Outras Palavras - Tradução Inês Castilho
A
vitória do Syriza sacudiu a esquerda na Europa – atingindo até mesmo os
social-democratas moderados, que se debatiam em busca de idéias e inspiração
desde a crise de 2008. Agora, há em todo canto conversas sobre “fazer um
Syriza” – e na Espanha, onde o partido de esquerda Podemos está obtendo 25% nas pesquisas, mais do que conversa.
Mas
o percurso do Syriza até tornar-se o primeiro governo europeu de extrema
esquerda nos tempos modernos não foi nem fácil nem inevitável. Nos últimos 22
dias, participei de uma equipe de documentaristas gregos que acompanhou os
ativistas e líderes em campanha, para ver como eles conseguiram vencer. Pude
vê-los oferecendo novas esperanças a agricultores no limiar da pobreza, e
angariar víveres para sua rede de bancos de alimentos. Vi como
conquistaram comunistas da velha guarda, no sindicato dos estivadores, que
sofriam por ver seu local de trabalho vendido aos chineses; e como
apresentaram, em contraposição ao establishment político e à elite
corrupta, uma alternativa jovem e contemporânea. Vi seu líder, Alexis
Tsipras, em ação em seu escritório particular, em momentos críticos.
Tsipras
é tão carismático que nem precisa de uma equipe de imprensa de classe mundial.
Mas quando o entrevistei, na primeira semana de campanha, ficou claro que oSyriza não
tem escassez de assessores de imagem. “Desculpe, mas tenho de vetar isso”,
diz o secretário de imprensa Danai Badogianni, bem quando Tsipras parece
convencido a falar em inglês para a câmera. “Caso contrário, vai abrir um
precedente.”
A
campanha de Tsipras começou a partir de uma atuação sólida na oposição
parlamentar. Em 3 de janeiro, o dia em que ele lotou um estádio com cinco mil
membros do partido, o núcleo interno viu-o levar a esquerda de seu partido a se
resignar e retirar as objeções à sua escolha de candidatos ao parlamento.
Tsipras transformou tanto o partido como seu funcionamento; o comitê central,
em sua sede surrada, tornou-se menos importante do que a equipe política do
candidato.
De
perto, ele fala um inglês perfeito e tem uma risada contagiante. Há alguns
parlamentares do Syriza craques em serem contidos e discretos, nas
conversas em off, mas Tsipras não é um deles. Conversamos francamente sobre
informações controversas que sua equipe econômica deu aos mercados financeiros,
e sobre a tentativa de suborno escandalosa que, segundo ele, torpedeou a
estratégia eleitoral da direita. Ele posa, sem vacilar, para selfies com as
jovens gregas com quem estou filmando, sabendo que as fotos estarão no Facebook
em minutos.
Apesar
de convocar não menos que quarto professores de economia de esquerda para
sua equipe ministerial, Tsipras parece ter, ele próprio, a mais clara
compreensão da economia política, para seu próximo confronto com o Banco
Central Europeu. Os anúncios decisivos, quando vierem, serão feitos por ele.
Mas,
além do profissionalismo e disciplina, Tsipras definiu um ritmo de
campanha avassalador. Sua margem de vitória, nas pesquisas em janeiro, era de 2
pontos percentuais. Com todos os canais da TV grega contra ele, e a maioria dos
jornais, a direita esperava retomar a liderança. Mas, ao contrário, foi o
Syriza que disparou.
O
interior em revolta e a escuta política
No
sol fraco de janeiro, as montanhas ao longo do Golfo de Corinto estão cobertas
de neve. Espalhadas ao longo das encostas estão aldeias conhecidas como
“castelos” políticos, normalmente tão apegadas a um ou outro dos principais
partidos – Pasok [ex-social-democrata] e Nova Democracia [centro-direita] – que
você pode orientar-se, em época de eleição, seguindo os cartazes. Mas esta é,
hoje, uma terra conturbada; dois terços dos plantadores de vinhas e pomares de
limão estão tecnicamente falidos. Foram forçados a hipotecar suas terras, os
bancos querem reaver seus empréstimos e o índice de suicídios avança,
nestas tranquilas cidades agrícolas.
Giannis
Tsogkas, um plantador de uvas de 56 anos de Assos, nos diz: “[O governo] nos
empurrou para o acordo com o FMI e tudo que eles fazem é obedecer os
conservadores. Os pequenos vão morrer. Continuamos ouvindo sobre gente se
suicidando. De modo que tentamos encontrar alguém na esquerda que nos proteja.
E encontramos o Syriza.”
Ao
cair da noite, a taverna próxima a Psari está cheia de idosos e crianças – a
maioria dos jovens adultos se foi. Os rostos sofridos dos agricultores na
miséria observam com cuidado um homem do Syriza que faz um discurso em estilo
bolchevique: “Por que o FMI quer nos destruir? Será que é porque o sol brilha
aqui? Será que é porque somos um povo hospitaleiro? Eles odeiam a vida do sul
da Europa? ”
Mas,
diz o candidato à eleição Theofanis Kourembes, não foi a retórica que tornou
vermelhas cidades como esta. “A gente vai e ajuda as pessoas. Escutamos quando
nos dizem alguma coisa. Quando pedem ajuda, estamos aqui. Você nunca vê o Pasok
ou a Nova Democracia.”
São
pequenos encontros como este, a quilômetros das principais cidades, que
ajudaram a transformar o Syriza, de um partido com 4% dos votos há 10
anos, num outro, que liderava com 32% das preferências, na última semana
de campanha eleitoral.
“Vocês
jornalistas vieram de longe até aqui para nos entrevistar”, diz um fazendeiro.
“O Syriza é o único partido que fez a mesma coisa. Eles vieram e conversaram
connosco. Se quiséssemos falar com os principais partidos, como os
encontraríamos?”
O
campo, uma paisagem árida de galhos e campos transformados, é solo fértil
para a mensagem vencedora do Syriza. Os agricultores sofreram muito com a
“austeridade”: ela significa impostos mais altos e menos subsídios. Mas a
corrupção é também uma questão importante. Em Assos, Tsogkas nos conta como os
comerciantes que compram as uvas regularmente desaparecem sem pagar. “Eles não
nos dão recibos, e a lei os protege. Desaparecem, pedem falência e ficamos sem
nada. Mas temos de pagar por medicamentos, salário de empregados, juros de
empréstimos, eletricidade, tudo isso. Estamos esgotados”, ele suspira,
“acabou.”
O
sistema político grego era tão incompetente, corrupto e lubrificado pelo
que eles chamam aqui de “dinheiro sujo” que, quando o dinheiro acabou, os
alicerces que o sustentavam entraram em colapso.
Embora
o programa econômico do Syriza seja limitado pelos 319 bilhões de euros que a
Grécia deve ao resto da Europa, lutar contra a oligarquia não custa nada.
Tsipras me diz: “Iniciaremos uma nova era política. Vamos fazer uma mudança
maciça na governança do Estado. Não temos responsabilidade pelo estado de
clientelismo criado pelos partidos que governaram o país até agora. Precisamos
de um Estado que funcione e se coloque ao lado dos cidadãos. Precisamos acabar
com essa farra de sonegação e evasão fiscal.”
Por
toda a Grécia, o Syriza organizou bancos de alimentos, conhecidos como Clubes
da Solidariedade. Acompanho os ativistas até um mercado de rua em Atenas. Usam
lenços laranja e, educadamente mas com firmeza, argumentam com os
agricultores que um saco de batatas ou laranjas para os pobres é seu dever
social. Em meia hora, os carrinhos estão cheios de comida.
O
organizador me diz: “Isso é o oposto de caridade. Estamos dando suporte a 120
famílias nesta área, e muito do trabalho que fazemos é lidar com isolamento,
saúde mental e vergonha.” Você não pode agir mais profundamente na
micropolítica do que quando se senta num quarto pequeno e convence as pessoas a
não pensar em suicídio. Não tem volta, a confiança construída é difícil
de destruir.
E
na semana final, quando as pesquisas dão ao Syriza sólidos seis pontos de
liderança, torna-se claro o que está levando à vitória. Ainda que o programa do
partido aponte para algo como uma democracia econômica e social
de esquerda, ele está agindo de modo oposto à prática dos social-democratas em
tempo de eleição. Faz promessas claras e duras, sobre pegar pesado com os
ricos. Um parlamentar sênior prometeu publicamente “destruir a oligarquia”
– taxar os donos de navios e patrões das construtoras, e impor regulação básica
e moderna nos canais de TV privada que a oligarquia possui — os quais,
hoje, não têm sequer que registrar, ou pagar pelo espectro de rádio que
usam.
“A
esperança começa hoje”, é o mantra de Tsipras. Isso se traduz numa nova
atmosfera nos cafés e nas mesas de jantar das famílias: não estamos mais com
medo.
O
centro político se autodestrói
No
momento do último comício eleitoral do Syriza, a mídia global acordou para a
possibilidade de uma derrota. Para quem olha de fora, as bandeiras vermelhas e
amultidão cantando Bandiera Rossa, o hino
comunista italiano, lembram a velha esquerda – mas todos na multidão sabem
que o partido está se dirigindo à direção oposta. Ele não se limitará a
confrontar a Europa, na redução da dívida – exige um novo acordo.
Está determinado a anular as políticas de “austeridade”. Isso, dizem os sagazes
economistas amontoados nos bastidores do comício, joga o problema para o
chefe Banco Central Europeu, Mario Draghi. Ele pode puxar o gatilho de um
colapso bancário e de uma crise que force a Grécia a sair do euro — mas o
Syriza não fará isso.
Enquanto
Tsipras entusiasma a multidão, Pablo Iglesias, o jornalista que levou o novo
partido de esquerda espanhol Podemos a uma posição de 25% nas pesquisas,
encolhe os ombros e balança como um boxeador prestes a entrar no ringue. Ele
ensaia o que vai dizer e, em seguida, dá uma corrida para subir os degraus,
acompanhado por uma música de Leonard Cohen, para juntar-se ao Tsipras. Ele
grita, em inglês: “Primeiro vamos tomar Manhattan; em seguida, tomamos Berlim.”
Em outras palavras, o FMI e o BCE terão de enfrentar um oponente determinado.
Os quadros do Syriza que cercam os dois homens sabem como vai ser pesada a
pressão a partir de agora.
Rena
Dourou, que conheci como uma ativista esfarrapada no acampamento Occupy da
Praça Syntagma de Atenas, quatro anos atrás, não pode conter seu sorriso
conforme balança a mão nas ruas, abarrotadas de apoiadores: “Ninguém nos ouviu
durante anos”, diz ela. “Agora todo mundo está ouvindo. E não se trata apenas
da Grécia. Trata-se da Europa, e especialmente a jovem.”
Dourou
está em suas primeiras semanas como prefeita eleita de Attica, a maior região
da Grécia. Está descobrindo na real o que significa tentar limpar o Estado
grego. Agora penteada e vestida com um terninho como uma política convencional,
não consegue conter o nervosismo. Há quatro anos, conforme nos esquivávamos do
gás lacrimogêneo, ela me disse: “A Europa precisa de um Chirac, ou um Schröder,
ou mesmo alguém como Kirchner na Argentina. Algum tipo de líder convencional
que pare com essa loucura de austeridade.” Eu brinquei: “Provavelmente serão
vocês.” Hoje, ela sabe que não é brincadeira. Conforme todo o centro político
europeu aquiesceu em um programa de “austeridade” que empurrou o continente
para a deflação, apenas um partido de ex-trotsquistas, ecoguerreiros e
ativistas Occupy tomou esse espaço.
Na
noite da eleição, no ultimo andar da sede do Syriza, onde está sentada a equipe
de Tsipras, o nervosismo dá lugar a um alívio estonteante, à medida em que os
resultados vão saindo. As perspectivas de obter maioria no Parlamento sem
coligações estão por um fio mas, minutos depois de encerrada a apuração,
já ficara claro que eles venceram. Tsipras chega, radiante. Ele abraça uma
mulher baixinha de meia idade de sua equipe, chamando-a de “meu pequeno
porquinho”. Seus secretários estão em lágrimas. “Por que vocês estão
chorando?”, brinca. “Quando perdemos em 2012, vocês estavam celebrando; e
agora, que vencemos, vocês choram!”
O
futuro ministro do interior do Syriza liga para os chefes do exército e da
polícia. “Nós confiamos em vocês”, é a essência da mensagem. É um grande ato de
fé, já que as forças militares e policiais da Grécia foram treinadas, desde a
guerra fria, para suprimir a extrema esquerda agora — inclusive com aulas de
“educação política”, aos oficiais, sobre os perigos do marxismo.
Nos
anos que se seguiram à queda da junta militar, em 1974, a oligarquia
bipartidária tolerou a esquerda, mas assegurou-se de que não houvesse chance de
ela chegar ao poder. Isso, em retrospectiva, criou uma consciência de esquerda ampla, mas
dormente. Tsipras está rodeado de quadros partidários que lutaram na rebelião
estudantil que derrubou a junta, mas a geração de seus pais sofreu tortura e
prisão durante e depois da guerra civil. Excluida do poder, a esquerda
construir uma contracultura de canções rebeldes, música folclória, culto a Che
Guevara e poderosas centrais sindicais de trabalhadores manuais, como os
estivadores. Isso é chave para entender o que é replicável sobre o Syriza, e o
que não é. O partido emergiu da cisão do eurocomunismo com Moscou nos anos
1970, mas enxertou uma cultura de esquerda soft, e conquistou a lealdade de
muita gente jovem, cuja vida gira em torno de trabalho precário e sem
qualificação, e que faz a mágica de sobreviver com salários de 400 euros por mês.
Tsipras
transformou o Syriza de uma aliança frouxa em um partido que é a expressão, por
excelência, dos valores deste vasto setor de esquerda do eleitorado grego.
Bastou que o partido natural que a representava — o Pasok — destruisse a si
mesmo.
Na
última semana de campanha, os gregos de esquerda assistiram ao
desabamento das paredes invisíveis à sua volta. As conversas com os
vizinhos de direita e os colegas de trabalho não politizados eram dominados por
uma palavra – Tsipras. E nos últimos dias, apenas “ele”. Assim como o
boca-a-boca incessante, os bancos de alimentos, a identidade visual
elegante, o que levou o Syriza ao poder foi, basicamente, a autodestruição do
centro. E isso, por sua vez, deveu-se ao trabalho da União Europeia e do FMI.
Um
partido da juventude e dos que rejeitam o medo
Na
cidade de Assos, quando os votos foram contados, verificou-se que 1.529
dos 4.000 habitantes votaram Syriza (38%). Os conservadores, que controlaram
a cidade por gerações, tiveram apenas 29%, com o partido neonazista Golden
Dawn chegando a 7% – uma réplica quase exata do resultado nacional. O mapa
eleitoral mostra que, fora a velha direita do interior da Macedônia e da
Península do Peloponeso do Sul, a Grécia profunda tornou-se vermelha.
Kourembes,
que é agora parlamentar do Syriza para Assos, diz: “Simplesmente, desta vez, o
povo começou a pensar de outra maneira. Eles se deram conta de que não há saída
com o grupo atual de políticos. Tomaram consciência de que, para manter-se à
tona, tinham de fazer alguma coisa diferente.”
O
Syriza não empregou nenhuma “tática matadora” na campanha eleitoral. Mas
teve qualidades definitivas: jovialidade, plausibilidade e normalidade.
Muitos de seus candidatos são jovens e elegantes; eles vivem e se comportam
como gente de vinte, trinta e poucos anos. No comício de lançamento do
ministro dos transportes conservador Miltiadis Varvitsiotis, os contrastes eram
óbvios. Como convém a um sistema que permite aos proprietários de navios não
pagar nenhum imposto sobre os lucros no exterior, a multidão aqui era idosa, de
aparência requintada e desavergonhadamente rica.
Embora
o próprio ministro seja parte de uma geração tecnocrática que acena ao
conservadorismo moderno, é impossível ser contemporâneo quando rodeado por
um aparato construído na guerra fria, e dependente do apoio de bilionários.
Ao mostrar ser gente normal, evitar declarações tresloucadas de
parlamentares individuais e projetar e calma, em oposição à campanha de
medo da direita, o pessoal de Syriza ganhou.
Em
Atenas, logo depois de fechadas as urnas, Spiros Rapanakiso, candidato do
Syriza inclina-se, exausto, contra as persianas de uma loja. Ele passou o
dia em sua zona eleitoral, a comunidade do porto de Keratsini, em um Hyundai maltratado, assobiando a International para
ganhar coragem. Fica claro, quando falamos com os eleitores, que até mesmo
conservadores tradicionais votaram no Syriza. Quando se dá conta de que, em vez
de um repórter júnior no jornal do partido, é agora um deputado, ele murmura:
“O povo grego escreveu a história e estou contente de fazer parte dela. Eu de
fato não posso descrever como me sinto. Temos um grande trabalho pela
frente. Amanhã vamos criar a Grécia de novo.”