MANUEL CARVALHO - Público
1
– António Pires de Lima, na TVI, quinta-feira à noite, falando sobre o
caderno de encargos da privatização da TAP: "Não podemos estender esse
acordo [protecção dos trabalhadores face a eventuais despedimentos] a
sindicatos que não se quiseram sentar connosco à mesa e que não assinaram o
acordo de paz social relativo a esta privatização".
António
Pires de Lima, sexta-feira à tarde, em conferência de imprensa: todos os
trabalhadores da TAP estão protegidos do despedimento colectivo durante 30
meses porque, para lá do acordo com os sindicatos, “prevalece a norma geral do
Direito”. O que fica em causa neste aparatoso recuo de um ministro tido por
sensato e competente não é apenas um confrangedor erro de análise jurídica de
uma intenção de alta sensibilidade; o que perturba neste episódio é a
constatação de que o Governo que se investiu da nobre missão de nos libertar da
tutela do Estado caia assim, tão facilmente, na tentação de manipular o livre
arbítrio de trabalhadores e sindicatos que não lhe obedecem.
Depois
de tudo o que se passou, Pires de Lima e o seu frenético secretário de Estado
dos Transportes recuaram porque lhes era impossível ir em frente. Logo pela
manhã o primeiro-ministro foi preparando o caminho da inflexão. Perante uma
oposição apalermada e incapaz de ir para lá do disco riscado da “austeridade” e
afins, Passos Coelho tratou de dizer que Pires de Lima fora mal interpretado,
que “os acordos de empresa terão de ser respeitados pelos futuros
compradores”. Por essa altura já sindicalistas tinham falado da “infantilidade”
do ministro, já comentadores haviam alertado para o erro político primário, já
personalidades insuspeitas de estar contra o Governo e o CDS, como António Lobo
Xavier, tinham manifestado a sua perplexidade perante o que se anunciara.
Pires
de Lima recuaria invocando a lei que na noite anterior Sérgio Monteiro
garantira não se aplicar ao acordo que protegia os sindicalizados “bons” e
deixava os sindicalizados “maus” ao sabor dos humores da conjuntura ou dos
planos do próximo accionista maioritário da TAP. Querendo perpetuar o seu poder
para lá da privatização, o Governo dispunha-se a fazê-lo sob os ditames de um
paternalismo bafiento que confere ao Estado o direito de puxar as orelhinhas
aos que ousam pagar quotas a sindicatos politicamente incorrectos. Como outrora
com os priores da paróquia, indulgências só seriam concedidas à parte do
rebanho que se porta bem. Os discursos em prol da “libertação” da sociedade que
o primeiro-ministro tanto gosta de propalar foram por algumas horas suspensos,
em favor de uma atitude de comando e controlo digna de um Estado colectivista.
Se
por acaso o castigo aos trabalhadores filiados nos sindicatos incómodos fosse
levado a cabo, ter-se-ia oficializado uma nova forma de coacção social. Que a
pressão e o privilégio são há muito armas de arremesso político para proteger
clientelas e penalizar dissidentes, já se sabia. O que agora haveria de
diferente é que o seu uso passaria a ser feito de forma escancarada. No futuro
próximo, um qualquer secretário de Estado dificilmente cederia à tentação de
usar a mesma discriminação e chantagem para impor um acordo. Se a outra parte
não a assinasse, ou, pior ainda, se se insurgisse contra a proposta,
tornar-se-ia alvo da vingança do Governo. Como o braço do Governo é longo e
poderoso, esse tipo de chantagem poderia acabar na exigência de favores
políticos e eleitorais. O que o ministro da Economia fez em relação à TAP foi
levar à prática a promessa feita um dia por Jorge Coelho, que numa declaração
infeliz avisou que “quem se meter com o PS leva”.
Foi,
de resto, assim que pensaram algumas centenas de trabalhadores da TAP que, como
noticiava o PÚBLICO na sexta-feira, se preocuparam em alinhar-se com os
sindicatos seduzidos pelo Governo. A pressão estava dar resultados. Os maus da
greve estavam a ser castigados e os bons protegidos. O direito de cada um a
escolher a representação laboral de acordo com os seus valores ficara
irremediavelmente comprometido. Ser ou não ser competente, diligente e
produtivo pouco importava nesta fórmula de gestão; mais importante que o
interesse da companhia e dos seus accionistas era o ajuste de contas com os
“culpados”, remetidos para o outro lado da barricada do Governo. O Governo
campeão do liberalismo estava a promover um breve episódio de engenharia social
e política.
O
que todo este folhetim comprova é a emergência de uma ala do Governo que se
julga tão sustentada pela conjuntura que ou se dá ao luxo de ensaiar os limites
da prepotência, ou não revela saber e sensibilidade suficientes para perceber
que num Estado de Direito há limites para a punição dos desafectos. Comprova
também o torpor de uma equipa gasta por três anos de governação difícil. Que um
ministro sensato, experiente e competente como Pires de Lima tenha caído neste
erro é apenas a prova de que os conselhos de ministros se tornaram uma
algazarra sem rumo nem tino. Mais do que um défice pessoal, o diz-não-diz de
Pires de Lima mostra o labirinto subterrâneo que um Governo cansado e dividido
em blocos escavou e onde faz questão de se ir perdendo.
2
– Uma excelente notícia para todos os que não aceitam ver o Estado vestir
a pele do xerife de Nottingham: um tribunal de Braga transformou-se em Robin
dos Bosques e anulou uma série de multas relacionadas com o não pagamento de
portagens. Não porque em causa estivessem erros substanciais ou violações de
preceitos constitucionais. Incapaz de combater o monstro que transforma
portagens de cêntimos em multas de muitas centenas de euros, o tribunal usou as
armas que pôde para defender os cidadãos.
O
Estado pode e deve penalizar quem não cumpre os seus deveres sempre que passa
numa portagem. Não estão por isso em causa nem as multas nem os custos
administrativos dos processos de contra-ordenação. O que está em causa é a
arrogância com que o Estado balança o “crime” e o “castigo”, é a
desproporcionalidade entre a falha e a sua compensação. É uma questão de
Justiça, o vínculo que há séculos cimenta a legitimidade dos “príncipes” e o
seu reconhecimento pelos cidadãos. Quando o Estado nos trata como o xerife de
Nottingham, o primeiro instinto que nos resta é inventar um Robin dos Bosques.
O
caso das portagens mostra que o Estado quebrou esse vínculo. Deixou de ser
“justo” e passou a agir contra nós em sua ilegítima defesa. Aflito por recursos
financeiros, fez do fisco o vilão que anda à cata do pobre cidadão que ora não
pagou deliberadamente, ora se esqueceu de pagar a portagem para lhe extorquir
quantias demenciais. Nós precisamos do Estado para termos uma sociedade e um
conjunto de serviços públicos decentes, mas para que essa necessidade seja
sentida o Estado tem de deixar de nos encarar como meros mealheiros onde se
pode tirar sempre mais um vintém.
PS – Por
motivo de férias, a Memória Futura estará de volta no dia 15 de Fevereiro
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