Nove
guerras civis simultâneas devastam mundo islâmico. Há algo comum entre elas: a
destruição dos Estados nacionais árabes e o estímulo ao ultra-fundamentalismo,
promovidos por EUA e seus aliados
Patrick
Cockburn – Outras Palavras - Tradução: Inês Castilho
São
tempos de violência no Oriente Médio e Norte da África, com nove guerras civis
acontecendo em países islâmicos, situados entre o Paquistão e a Nigéria. É por
isso que há tantos refugiados tentando escapar para salvar suas vidas. Metade
da população de 23 milhões da Siria foi expulsa de suas casas; quatro milhões
transformaram-se em refugiados em outros países.
Cerca
de 2,6 milhões de iraquianos foram deslocados pelas ofensivas do Estado
Islâmico, o Isis, no último ano, e se espremem em tendas ou edifícios
inacabados. Invisíveis para o mundo, cerca de 1,5 milhão de pessoas foram
deslocadas no sul do Sudão, desde que os combates recomeçaram por lá, no final
de 2013.
Outras
partes do mundo, notadamente o sudeste da Ásia, tornaram-se mais pacíficas nos
últimos 50 anos, mas na grande faixa de terra entre as montanhas Hindu Kush e o
lado ocidental do Saara, conflitos religiosos, étnicos e separatistas estão
destroçando os países. Em toda parte há Estados em colapso, enfraquecidos ou
sob ataque; e em muitos desses lugares, as insurgências islâmicas radicais
sunitas, em ascensão, usam o terror contra civis para provocar fuga em massa.
Outra
característica dessas guerras é que nenhuma delas parece estar próxima do fim,
de modo que as pessoas possam voltar para suas casas. A maioria dos refugiados
sírios que fugiram para a Turquia, Líbano e Jordânia em 2011 e 2012 acreditava
que a guerra acabaria em pouco tempo e elas poderiam voltar. Só perceberam nos
últimos dois anos que isso não vai acontecer e que precisam buscar refúgio
permanente em outro lugar. A própria duração destas guerras significa uma
destruição imensa e irreversível de todos os meios de se ganhar a vida, de modo
que os refugiados, que a princípio buscavam apenas segurança, são também
movidos por necessidade.
Guerras
estão sendo travadas atualmente no Afeganistão, Iraque, Síria, Sudeste da
Turquia, Iêmen, Líbia, Somália, Sudão e Nordeste da Nigéria. Algumas começaram
há muito tempo, a exemplo da Somália, onde o Estado entrou em colapso em 1991 e
nunca foi reconstruído, com senhores da guerra, jihadistas radicais, partidos
rivais e soldados estrangeiros controlando diferentes partes do país. Mas a
maioria desses conflitos começou após 2001, e muitos depois de 2011. A guerra
civil total no Iêmen só começou no ano passado, enquanto a guerra civil
turco-curda, que matou 40 mil pessoas desde 1984, recomeçou em julho com
ataques aéreos e de guerrilha. É rápida a escalada: um caminhão carregado de
soldados turcos foi explodido há poucas semanas por guerrilheiros do PKK curdo.
Quando
a Somália caiu, num processo que os EUA tentaram reverter em uma tentativa
fracassada de inteverção militar, entre 1992-1994, parecia ser um evento
marginal, insignificante para o resto do mundo. O país tornou-se um “Estado
fracassado”, frase usada para exprimir pena ou desprezo, à medida em que ele se
tornava o paraíso dos piratas, sequestradores e terroristas da Al-Qaeda. Mas o
resto do mundo deveria olhar para esses Estados fracassados com medo, além de
desprezo, porque foi nesses lugares – Afeganistão nos anos de 1990 e Iraque
desde 2003 – que foram incubados movimentos como o Talibã, o Al-Qaeda e o Isis.
Os três combinam crença religiosa fanática e conhecimento militar. A Somália pareceu
um dia ser um caso excepcional, mas a “somalização” mostrou-se destino de uma
série de países — notadamente Líbia, Iraque e Síria — onde até recentemente as
pessoas tinham acesso a comida, educação e saúde.
Todas
as guerras são perigosas, e as guerras civis sempre se notabilizaram pela
impiedade, sendo as religiosas, as piores. É o que está acontecendo agora no
Oriente Médio e Norte da África, com o Isis – e clones da Al-Qaeda como Jabhat
al-Nusra ou Ahrar al-Sham na Síria. Assassinam ritualmente seus opositores e
justificam suas ações alegando o bombardeio indiscriminado de áreas civis pelo
governo de Assad.
O
que é um pouco diferente nessas guerras é que o Isis faz publicidade deliberada
das atrocidades que comete contra xiitas, yazidis ou qualquer outra pessoa que
considere seu inimigo. Isso significa que as pessoas apanhadas nesses
conflitos, particularmente desde a declaração do Estado Islâmico, em junho do
ano passado, sofrem uma carga extra de medo, o que torna mais provável que
fujam para não voltar. Isso é verdade tanto para professores da Universidade de
Mosul, no Iraque, quanto para moradores dos vilarejos da Nigéria, Camarões ou
Mali. Não por acaso, os avanços do Isis no Iraque têm produzido grandes ondas
de refugiados , os quais têm uma perfeita ideia do que acontecerá a eles se não
fugirem.
No
Iraque e na Siria, estamos de volta a um período de drástica mudança
demográfica, jamais vista na região desde que os palestinos foram expulsos ou
forçados a fugir pelos israelenses em 1948, ou quando os cristãos foram exterminados
ou empurrados para fora do que hoje é a Turquia, na década que se seguiu a
1914. As sociedades multiconfessionais do Iraque e da Síria estão se
esfacelando, com consequências terríveis. Potências estrangeiras não sabiam ou
não se importavam com os demônios sectários que estavam liberando, nesses
países, ao quebrar o velho status quo.
O
ex-conselheiro de Segurança Nacional do Iraque, Mowaffaq al-Rubaie, costuma
dizer aos líderes políticos norte-americanos, que levianamente sugeriram que os
problemas coletivos do Iraque poderiam ser resolvidos dividindo o país entre
sunitas, xiitas e curdos, que eles deviam compreender como seria sangrento esse
processo, provocando inevitavelmente massacres e fuga em massa “semelhantes aos
da partilha da Índia em 1947 “.
Por
que razão tantos desses Estados estão caindo aos pedaços e gerando essas ondas
de refugiados? Que falhas internas ou insustentáveis pressões externas têm em
comum? A maioria conquistou autodeterminação quando as potências imperiais se
retiraram, depois da Segunda Guerra Mundial. No final dos anos 1960 e início
dos 1970, foram governados por líderes militares que dirigiam Estados policiais
e justificavam seus monopólios de poder e riqueza alegando que eram necessários
para estabelecer a ordem pública, modernizar seus países, assumir o controle
dos recursos naturais e resistir às pressões separatistas sectárias e étnicas.
Eram
geralmente regimes nacionalistas e com frequência socialistas, cuja perspectiva
era esmagadoramente secular. Por essas justificativas para o autoritarismo
serem geralmente hipócritas e auto-interessadas; por mascararem a
corrupção generalizada da elite dominante, frequentmente se esquecia que países
como o Iraque, a Síria e a Líbia tinham governos centrais muito poderosos por
alguma razão – e se desintegrariam sem eles.
São
esses regimes que vêm enfraquecendo e estão entrando em colapso em todo o
Oriente Médio e Norte da África. Nacionalismo e socialismo não oferecem mais o
cimento ideológico para manter juntos Estados seculares ou para motivar as
pessoas para lutar por eles até a última bala — ao contrário do que fazem os
que creem, em relação ao islamismo sunita de tipo fanático e violento
incorporado pelo Isis, Jahat AL-Nusra e Ahrar AL-Sham. As autoridades
iraquianas admitem que uma das razões por que o exército de seu país
desintegrou-se em 20014 e nunca foi reconstituído com êxito é que “muito poucos
iraquianos estão dispostos a morrer pelo Iraque.”
Grupos
sectários como o Isis cometem deliberadamente atrocidades contra os xiitas,
sabendo que isso irá provocar retaliação contra os sunitas — o que os deixará
sem alternativa senão ver no Isis seus defensores. Fomentar o ódio comunal
trabalha a favor do Isis, e está contaminando as comunidades, umas contra as
outras, como no Iêmen, onde anteriormente havia pouca consciência da divisão
sectária, embora um terço de sua população de 25 milhões pertencessem à seita
xiita Zaydi.
A
probabilidade de fugas em massa torna-se ainda maior. No início deste ano,
quando houve rumores de um ataque do exército iraquiano e de milícias xiitas,
para recapturar a cidade de Mosul, esmagadoramente sunita, a Organização
Mundial de Saúde e o Alto Comissariado da ONU para os Refugiados (Acnur)
começaram a estocar comida para alimentar um milhão de pessoas a mais, que
calcularam em fuga.
Os
europeus foram sacudidos pelas fotos do pequeno corpo inerte de Alyan Kurdi
numa praia na Turquia e por sírios quase mortos de fome amontoados em comboios
húngaros. Mas no Oriente Médio, a nova diáspora miserável dos impotentes e
despossuídos é evidente há três ou quatro anos. Em maio, eu estava prestes a
cruzar o rio Tigre entre a Síria e o Iraque, num barco com uma mulher curda e
sua família, quando ela e seus filhos foram colocados pra fora por causa de uma
letra errada em um nome, em seus documentos.
“Mas
estou há três dias com minha família na beira do rio!”, ela gritou desesperada.
Eu estava indo para Erbil, a capital curda, que até um ano atrás aspirava ser
“a nova Dubai”, mas agora está cheia de refugiados amontoados em hotéis
inacabados, shoppings e quarteirões de luxo.
O
que precisa ser feito para deter tais horrores? Talvez a primeira pergunta seja
como evitar que fiquem piores, recordando que cinco das nove guerras começaram
a partir de 2011. A presente crise dos refugiados na Europa é muito mais
o impacto real, sentido pela primeira vez, do conflito na Siria sobre o
continente. É verdade: o vácuo de segurança da Líbia significou que o país é
agora o canal de fuga, para as pessoas dos países empobrecidos e atingidos pela
guerra às margens do Saara. É pela costa libia, de 1,8 mil quilêmetros, que 114
mil refugiados passaram até agora, este ano, em direção à Italia, sem contar os
vários milhares que se afogaram pelo caminho. Ainda assim, embora tão ruim, a
situação não é muito diferente da do ano passado, quando 112 mil fizeram essa
rota para a Itália.
Bem
diferente é a guerra na Síria e no Iraque, onde saltou de 45 mil para 239 mil,
no mesmo período, o número de pessoas que tentam alcançar a Grécia pelo mar.
Por três décadas o Afeganistão produziu o maior número de refugiados, de acordo
com a Acnur. Mas no ano passado, a Siria tomou seu lugar, e um em cada quatro
novos refugiados, um agora é sírio. Uma sociedade inteira foi destruída, e o
mundo fez muito pouco para deter esses acontecimentos. Apesar de uma recente
onda de atividade diplomática, nenhum dos muitos atores na crise síria mostra
urgência na tentativa de acabar com eles.
A
Síria e o Iraque estão no centro das crises atuais de refugiados também de uma
outra maneira. É lá que o Isis e grupos tipo al-Qaeda controlam parte
significava do território e conseguem espalhar seu veneno sectário para o resto
do mundo islâmico. Eles revigoram as gangues de matadores que operam mais ou menos
do mesmo modo — estejam na Nigéria, no Paquistão, no Iêmen ou na Síria.
A
fuga em massa de pessoas vai continuar enquanto a guerra na Síria e no Iraque
continuarem.
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