A
Hungria está a gastar 21 milhões de euros em 175 quilómetros de comprimento —
sem um único centímetro de compaixão
João
Gaio e Silva* – Público, crónicas
Caríssimo
Sr. Órban,
Este
não é, certamente, um texto que se coadune com a sua fação política. Mas também
não sei se se coadunará com qualquer outra. Creio que quaisquer ideologias
serão irrelevantes perante o valor da vida humana, o valor que isolará com um
muro. Serão 175 quilómetros de comprimento — sem um único centímetro de
compaixão. Serão quatro metros de altura, com dez de profundidade — o
insuficiente para lhe alcançar o âmago. Serão 21 milhões de euros investidos —
sem que um cêntimo seja empregue em ajuda humanitária. O muro que construirá
será o monómio de uma equação cujo resultado não dá lugar a quaisquer
incógnitas. Isola-nos da identidade europeia genuína e dos valores primordiais
que lhe estão inerentes: o acolhimento e o respeito; a solidariedade e a
humanidade.
Rejeitar
a identidade europeia e os pilares em que esta se edificou, durante dezenas de
séculos, é esvaziar o conceito de Europa. Não podemos esquecer as raízes.
Porque, quando nos perguntarem “que Europa somos?”, a nossa resposta não se
pode enclausurar nos limites espaciais que a geografia nos delimita. A Europa
transcende as fronteiras do tempo e do espaço e encontramos a sua marca
indelével nos quatro cantos do mundo. A Europa é expressão viva de civilização,
de tolerância e de integração.
O
projeto europeu de Monnet, de Schuman e de muitos outros é a sua maior
evidência: o desejo de unificar a Europa, fundado em alicerces fundamentais — a
liberdade, a igualdade, a democracia. Daqui, nasceu a futura UE, um espaço de
união entre culturas e ideologias necessariamente diferentes. E para ela
nascia, volvidos 47 anos, a Hungria.
O
alargamento de 2004, Sr. Órban, constitui, talvez, o maior desafio e,
simultaneamente, a maior oportunidade para todos. O alargamento de 2004, Sr.
Órban, traduz-se em verbo de paz, unificação, estabilidade, prosperidade e
progresso, sobretudo a Leste — onde a sua conjugação escasseava. Enquanto
membro desta união de povos, é este mesmo verbo que se comprometeu a conjugar.
Exemplo
de humanidade e de paz
Pertencer
à UE é, também, ser e partilhar um exemplo de humanidade e de paz. Por isso, e
permita-me que cite Jean Monnet, “a Europa far-se-á por realizações concretas,
desenvolvendo antes de mais uma solidariedade de facto”. E a solidariedade, de
facto, Sr. Órban, não se fará por muros. Tal como a Europa. A Europa far-se-á
de pontes — de diálogo e de diretrizes de pensamento, ampliando o nosso modo de
perspetivar o mundo.
Porque
há, de igual modo, outras perspetivas deste drama que, no respeito pela matriz
de valores europeus, nos sugerem outras soluções. Repare bem: com 21 milhões,
mutila a dignidade humana e obtura a esperança dos que procuram uma vida
melhor, construindo um muro; com 21 milhões, poderia investir em condições de
acolhimento, possibilitando-lhes uma vida digna. Mas poderia, também, investir
na promoção da paz, segurança e liberdade, nos países de origem, contribuindo para
minorar este drama, com impactos diretos na vida daqueles que a procuram.
É
da guerra e dos conflitos que fogem e é fundamental ir à raiz dos problemas —
somente dirigindo a nossa ação para as suas causas, dirimindo-as, se resolvem
estes dramas. Porém, não se pode agir sozinho. E a Europa tem uma hipótese de
agir. A identidade constrói-se (e destrói-se) com atos.
A
terminar, não lhe peço, Sr. Órban, que apenas reflita sobre estas palavras.
Deixo-lhe, também, um lembrete. Em 2015, vivemos o Ano Europeu para o
Desenvolvimento. Ao abrigo desta iniciativa, o mês de agosto é dedicado à ajuda
humanitária. Não se esqueça. Porque a Europa não se fará de muros. Far-se-á de
pontes.
*João
Gaio e Silva tem 16 anos e é estudante de Línguas e Humanidades
Na
foto: Polícia húngara ataca homens, mulheres e crianças refugiados com gás lacrimogéneo e canhões de água.
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