Aproveitando
dupla cidadania e extradições negadas, eles levam vidas normais em cidades
italianas, com ajuda de paróquias; um deles, argentino, está na lista de
procurados da Interpol
Três
ex-militares que participaram das ditaduras argentina e uruguaia e que são
acusados em seus países de assassinato, sequestro de pessoas e crimes contra a
humanidade, hoje vivem tranquilamente na Itália, graças à dupla cidadania e às
extradições negadas pela Justiça do país. Em dezembro passado, um grupo de
argentinos residentes na Itália enviou uma carta às
instituições italianas onde expressavam o medo que o país se transformasse numa
zona franca para assassinos e torturadores em pensão. Mas, quem são essas
pessoas e como vivem hoje na Itália?
Um
senhor de cabelos grisalhos, meio calvo, de estatura alta, elegante e
introspectivo, que não gostava de falar da própria vida. É assim que a
comunidade que frequenta a Igreja dei padri Scolopi, em Gênova, descreve o
ex-tenente argentino Carlos Luis Malatto, hoje com 65 anos, acusado de ter
participado do sequestro, assassinato e desaparecimento de pelo menos nove
pessoas. O ex-tenente foi hóspede, por quase um ano, da Congregação San Giacomo
Apostolo de Cornigliano, e viveu ali até maio deste ano, a convite dos padres
argentinos Don Luigi e Don Giuseppe.
Malatto
chegou a ser preso na Argentina, mas escapou para o Chile. Veio para a Itália
em agosto de 2011, logo após ter conseguido a dupla cidadania. Antes de
ir para Gênova, em agosto de 2014, Malatto viveu dois anos na cidade de Áquila
e lá trabalhou como voluntário na Confraternita della Misericordia. Contactada
pela reportagem, ninguém da Confraternita quis dar declarações. “Ele não está mais
aqui e não sabemos para onde foi, nos deixem em paz”, disse o senhor que
atendeu a ligação.
O
argentino, pai de quatro filhos, provavelmente foi a Gênova não só por causa do
convite dos padres, mas porque assim, talvez, se sentisse mais próximo da família.
De fato, seu avô paterno nasceu em Sestri Levante, uma cidade de 18 mil
habitantes que fica na periferia de Gênova. Em 1890, ele deixou o país para
tentar a sorte na América do Sul, tendo se instalado na Argentina.
“Todos
os dias, por quase um ano, [Malatto] vinha pela manhã tomar um café expresso”,
diz Marcello Cerbara, 30, proprietário do bar Chicchi d' Autore, que fica a
poucos metros da casa paroquial. “Era sempre impecável, não era de muita prosa
no início. Mas, depois de um tempo, começou a se abrir, mas nunca contou nada
sobre o passado militar na Argentina”, diz. “Não dava pra desconfiar de nada,
era um sujeito cauteloso, simples, mas se bem que tinha aquela postura ereta,
postura de militar, sabe?”
Malatto
chegou até a assumir a direção do bar do Centro Recreativo da Paróquia. “Ele
assumiu o bar, mas o deixou após dois meses”, diz a secretária. “Disse
que veio da Argentina porque estava triste e deprimido com a morte da mulher”,
continua. “Mas você imagina, aqui é um ambiente frequentado por crianças e
famílias. Quando essa história estourou, ficou todo mundo perplexo. Fomos pedir
explicações a Don Giuseppe, que jurou não saber nada sobre o passado de
Malatto.” Mas ela relata uma frase que foi deixada no ar e que até hoje
não encontrou explicação. “Don Giuseppe disse não conhecê-lo, mas depois soltou
que havia feito o velório de sua esposa na Argentina. Eu não quero acreditar
que eles sabiam de tudo quando o abrigaram.”
Enquanto
Malatto transcorreu seus dias na paróquia, a Corte de Cassação, terceira e
última instância da justiça italiana, em outubro de 2014, negou sua extradição
ao governo argentino. Segundo a corte, não existiam elementos concretos para
mandá-lo de volta ao país. Mesmo sendo um homem livre na Itália, seu
rosto ainda aparece estampado na lista de procurados por crimes contra a
humanidade, no site do Ministério da Justiça Argentino, que continua a oferecer
500 mil pesos para quem der informações sobre o ex-tenente.
Os
padres permaneceram pouco tempo na igreja, cerca de um ano e meio. Por causa da
confusão gerada, foram transferidos para Madri no dia 30 de agosto deste ano.
Nem o capelão, nem a secretária da sacristia souberam dizer para qual igreja
foram mandados. De Malatto, não restou nada em Gênova.
Um
padre torturador
Quem
vê Don Franco, um senhor de 77 anos, que vive na casa paroquial e reza as
missas matutinas na Igreja Matriz da cidade de Sorbolo, não imagina que possa
ser Franco Reverberi Boschi, ex-capelão militar argentino acusado de
participação em sessões de tortura do da repressão da ditadura do general Jorge
Videla, em uma prisão clandestina localizada na província de San Rafael, na
Argentina. Franco teria assistido a torturas e não teria denunciado o ocorrido.
Padre
Franco nasceu em Sorbolo e se mudou com a família para a Argentina quando tinha
11 anos. Sempre negou que soubesse que em San Rafael se torturavam pessoas. Mas
cinco testemunhas descreveram com detalhes as torturas sofridas na prisão
clandestina e confirmaram a presença de Franco. Um deles, Roberto Flores,
disse que o sacerdote não participou da violência diretamente, mas
impassivelmente, com a Bíblia na mão.
Já
Mario Bracamonte disse tê-lo visto quatro vezes. “Lembro-me de uma tarde, fomos
submetidos a uma surra particularmente violenta. O chão da sala estava vermelho
de sangue. Don Franco ordenou que limpássemos com nossos corpos. Era inverno, a
temperatura era de 10 graus abaixo de zero.” Uma noite, Bracamonte foi
torturado por quatro horas, tendo a cabeça enfiada em uma banheira com água
repetidas vezes. Num momento, viu Franco, que lhe disse: "O que você está
olhando? Cão!”
Durante
o primeiro julgamento que aconteceu em 2010, Franco depôs como testemunha,
mas, durante as audiências, surgiram as acusações contra ele. Assim, o promotor
Francisco José Maldonado o acusou de crimes contra a humanidade. Foi
marcada uma nova audiência, à qual Franco não compareceu. Fugiu para a
Itália, encontrando refúgio na sua antiga Sorbolo.
Encontro
com a reportagem
Quando
a reportagem toca a campainha de seu apartamento, um senhor de cabelos brancos,
mas muito bem disposto, ágil e de aparência saudável, abre a porta e a faz
entrar. Numa pequena sala logo na entrada do prédio, se acomoda numa
cadeira e diz: “Olha, se for rápido eu te atendo, senão, volte semana que vem,
pois minha família que não vejo há anos veio da Argentina e vai embora na
próxima semana. O que você quer saber? Você precisa de mim para que?”
Assim
que a reportagem se identifica, Franco se irrita. “Não tenho nada para dizer,
não sabia de nada do que acontecia lá, a Justiça italiana acreditou em mim,
então basta assim. A nossa conversa termina aqui, vá embora.” Da calmaria
pacata do início da conversa, passou-se à agressão e ao nervosismo. “Vá embora,
vá embora”, repetia, aumentando o volume da voz, e expulsou a reportagem de Opera
Mundi. Minutos depois, Franco foi à janela de casa e começou a gritar que, se a
repórter se não fosse embora, a denunciaria à polícia. Um dos parentes que
estavam na casa, provavelmente um sobrinho, saiu e quis agredir a reportagem.
Sorbolo
é pequena e em cidade pequena, se sabe, pessoas falam e cuidam da vida das
outras. No bar ao lado da igreja, onde se encontravam alguns homens que jogavam
carta, o assunto da mesa passou a ser Franco. Eles falavam enquanto a partida
de truco embalava a mesa. Roberto Brea, um escritor que mora na cidade,
diz que nada o surpreende, mas que ficou desgostado com a notícia. “Nos
disseram que ele estava doente e não podia voltar para a Argentina. Pelo que
sei, ele não participou ativamente, a sua culpa é não ter denunciado tudo na
época.” Já seu companheiro de jogo Stefano Friggeri, ficou sabendo da
coisa naquele momento. “Não sabia de nada, isso é novidade para mim”.
Laureta
Pozzi, uma colaboradora da igreja, diz que o conhece bem e não acredita nas
acusações. “Se um terço do que disseram fosse verdade, seria uma coisa
horrorosa, ainda mais porque se trata de um sacerdote. Mas não acredito, visto
que a Justiça italiana não o extraditou. Se fosse verdade, o teriam mandado à
Argentina, não?”, questiona. Pozzi tenta justificar o motivo da fuga de Franco.
“Ele disse que não estava em San Rafael naquela época, que sofre uma
perseguição e que por isso não volta à Argentina. Aquelas pessoas
sofreram, mas o deixem em paz agora, ele é só um senhor de oitenta anos, com
problemas no coração que vai morrer sem poder ser enterrado na sua pátria. Ele
nasceu aqui, mas é argentino de coração.”
Franco
estava aproveitando a visita para levar os parentes para conhecer a cidade. E
parece que estão bem inseridos no contexto local: um deles foi localizado na
lavanderia esperando a roupa ficar pronta, enquanto o outro o tinha acompanhado
ao banco.
Apesar
de ter tido a extradição negada, sua ficha na Interpol continua ativa. Se
colocar os pés fora da Itália, poderá ser preso e levado de volta à Argentina.
Estima-se
que outros ex-militares do cone sul possam estar na Itália. Segundo o sociólogo
Claudio Tognonato, 61 argentinos teriam deixado o país graças à existência de
uma suposta rede internacional de ajuda a repressores acusados ou condenados
por crimes cometidos durante as ditaduras.
Senhor
Troccoli, o torturador uruguaio
Sobre
Nestor Troccoli, Opera
Mundi publicou, em abril, uma extensa reportagem. Ex-tenente
uruguaio de 67 anos, é um dos 37 réus do processo que tramita na Justiça
italiana e julga a responsabilidade de ex-militares no sequestro e assassinato
de 25 cidadãos latino-americanos com nacionalidade italiana cometidos entre
1973 e 1980. Neste período, estava em execução a Operação Condor, uma rede de repressão política e troca de
prisioneiros formada pelos serviços de inteligência das ditaduras do Cone Sul
(Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai).
Militar
responsável pelos interrogatórios da Fusna (Serviço de Inteligência da Marinha
do Uruguai), fugiu da América Latina para não ser processado em seu próprio
país e reside atualmente em solo italiano, onde as autoridades que julgam o
processo têm jurisdição para prendê-lo e privá-lo de liberdade, caso seja
efetivamente condenado pela Justiça.
Se,
no Uruguai, Troccoli era conhecido como o Torturador, em Battipaglia, o chamam
George. A pequena cidade que o ex-militar escolheu para viver, a uma hora de Nápoles,
é terra da máfia Camorra — a junta comunal local foi destituída em 2014 por infiltração
camorrista e hoje vive sob governo comissariado.
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