Pedro
Bacelar de Vasconcelos – Jornal de Notícias, opinião
A
Esquerda foi sempre a expressão do desejo de mudança. Pelo contrário, a Direita
representa a resistência a que algo mude. É assim há mais de dois séculos,
desde que Luís XVI convocou os "Estados Gerais" que, contra a vontade
do rei, se transformaram na Assembleia Constituinte que desencadeou a Revolução
Francesa para acabar com a servidão, o regime senhorial e o absolutismo
monárquico de direito de divino. O Centro, porém, não tem definição nem
substância própria salvo o que resulta das contraposições que pretenda
conciliar. Sem a Esquerda, afunila-se o universo das opções possíveis,
esbatem-se as diferenças que matizam o pluralismo, promovem a cidadania e dão
sentido ao debate público. Degrada-se a política e corrompe-se a democracia.
Não tratamos aqui de categorias morais: o "bem" e o "mal"
apenas qualificam o mais feliz e o mais perverso do que mudou ou persistiu. A
mudança política, porém, marca o destino da Esquerda.
Graças
aos acordos alcançados entre os partidos da Esquerda, foi derrotada a moção de rejeição
apresentada pelo PSD e o CDS na semana passada. O Governo socialista assumiu
por fim a plenitude das suas funções e a maioria que o suporta demonstrou ser
capaz de corresponder às expectativas dos eleitores que lhe confiaram o seu
voto e o seu futuro. Ficou provado que a miséria e o desemprego não são uma
fatalidade inelutável, que, afinal, ao contrário do que o Governo da Direita
obsessivamente afirmou ao longo de quatro anos - ora como justificação para as
suas opções ideológicas ora como disfarce para os seus fracassos - existe, de
facto, uma alternativa política. O reencontro das esquerdas assinalou também a
reconciliação dos socialistas com a tradição progressista da social-democracia
europeia, de Helmut Schmidt e de Mário Soares, há muito abandonada por Blair e
outros apóstolos da "terceira via".
A
etapa que agora se cumpriu não descreve um caminho fácil e linear. O primeiro
passo exigia a obtenção de uma vitória inequívoca nas "eleições
primárias" abertas à participação dos simpatizantes, convocadas para
responder ao desafio lançado por António Costa. É oportuno recordar que uma
parte substancial dos "argumentos" usados pela Direita contra o atual
secretário-geral, numa flagrante manobra de "destruição de caráter",
foram ensaiados, originalmente, no âmbito do combate interno no Partido
Socialista. Depois, a coincidência da prisão de José Sócrates com o congresso
partidário que consagrou a nova liderança do partido, funcionou, perante a
opinião pública, como uma espécie de "certificação" das acusações que
responsabilizavam o PS por todas as desgraças do país. O prolongamento da
prisão preventiva do antigo primeiro-ministro e os sucessivos incidentes
processuais, acompanhados pela violação sistemática do segredo de justiça,
engendraram um fantasma que assombrou toda a campanha eleitoral. Foi neste
contexto profundamente adverso, e apesar dele, que o PS construiu o seu
programa eleitoral, persuadiu os cidadãos da bondade das suas propostas e até
se viu obrigado a demonstrar aos opositores que as suas contas estavam certas,
que as medidas haviam sido calendarizadas com rigor e que os impactos
económicos e financeiros das políticas que propunha tinham sido devidamente
calculados.
A
nova etapa que agora se inicia enfrenta problemas de elevada complexidade e
terá de responder a sérios desafios que reclamam, como dizia aqui, há duas
semanas, a articulação inteligente das duas frentes em que este combate vai ser
travado: a prática governativa e o trabalho parlamentar. O Governo, pela sua
estrutura e composição, mostra que soube resistir à voracidade habitual dos
aparelhos e das clientelas partidárias. A sociedade portuguesa continua a
revelar grandes dificuldades no confronto com os seus preconceitos e práticas
discriminatórias larvares. Apenas por isso, justifica-se destacar a presença,
por mérito próprio, da ministra Francisca Van Dunem na pasta da Justiça, e dos
secretários de Estado Carlos Miguel, nas "autarquias locais", e Ana
Sofia Antunes, na "Inclusão das Pessoas com Deficiência". Por sua
vez, o Parlamento assumiu um papel decisivo que lhe confere uma centralidade
inédita na ação política e que o vai expor, inapelavelmente, ao mais severo
julgamento dos eleitores que representa. Que seja a bem da democracia!
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